A maioria dos países da ONU
adotou em junho passado um novo tratado que proíbe armas nucleares, colocando-as na
mesma categoria do direito internacional que outras armas de destruição em
massa, armas químicas e biológicas, ou que causam danos inaceitáveis, como as
minas terrestres e munições de fragmentação. Apesar de este ser o
desenvolvimento mais significativo na política nuclear global desde o fim da Guerra
Fria, a discussão do Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) está quase
ausente dos meios de comunicação e das discussões de política internacional.
Os acordos tradicionais de
controle de armas nucleares, como o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP),
os Tratados ABM, SALT
I & II, START I & II e Novo START,
não mencionam os custos humanos e ambientais das armas atômicas. Em
contrapartida, o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares é o primeiro
grande acordo a enquadrar especificamente as armas nucleares como uma ameaça
para a humanidade e como contrárias ao direito internacional humanitário e aos
direitos humanos.
Como os tratados de Zonas Livres
de Armas Nucleares(Bangcok – Sudeste da Ásia; Pelindaba – África; Rarotonga
– Pacífico Sul; e Tlatelolco – América Latina e Caribe), o Tratado de Proibição
Parcial de Testes Nucleares (LTBT) e o Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT), o TPAN,
também reconhece os danos ao meio ambiente, e vai além, afirmando que armas
nucleares trazem grande perigo para o desenvolvimento sustentável, incluindo “desenvolvimento
socioeconômico, economia global, segurança alimentar e saúde das gerações
atuais e futuras”.
Daremos a seguir uma visão geral
básica sobre o texto integral do Tratado e suas contribuições para o
direito internacional e o desarmamento nuclear.
Preâmbulo: Armas nucleares
como contrárias aos princípios da humanidade
A primeira seção do preâmbulo
estabelece uma abordagem humanitária, expressando preocupação com as “consequências
humanitárias catastróficas” de uma detonação nuclear que “não podem ser
adequadamente avaliadas, transcendendo as fronteiras nacionais” e colocam “riscos [para]
… a segurança de toda a humanidade”. Como tal, “as armas nucleares são
eticamente abomináveis aos princípios da humanidade”.
Isso estabelece a “necessidade
consequente de eliminar completamente as armas [nucleares], que
continuam a ser a única maneira de garantir que elas nunca mais sejam usadas
novamente”. De fato, o preâmbulo observa que na primeira resolução da
Assembleia Geral da ONU, em 1946, assim como em outros acordos internacionais,
como o TNP, de 1968, os países do mundo se comprometeram a prosseguir “negociações
que levem ao desarmamento nuclear … sob um controle internacional
rigoroso e efetivo”. Infelizmente, o ritmo do desarmamento tem sido “lento” e “muitos
países continuam a contar com armas nucleares em conceitos, doutrinas e
políticas militares e de segurança”.
Como resultado, o Tratado é
enquadrado como um instrumento que visa estigmatizar as armas nucleares,
estabelecendo um regime internacional de proscrição desses instrumentos
bélicos, de forma a gerar pressão política para uma aceleração do desarmamento
através de “educação para o desarmamento”, “conscientização” e “divulgação dos
princípios e normas deste Tratado”.
Vale ressaltar que o preâmbulo
esclarece que o Tratado se aplica exclusivamente às armas nucleares,
reconhecendo o “direito inalienável” dos Estados para usos pacíficos da energia
nuclear, derivado do TNP.
Artigo 1: Proibições
categóricas
As disposições essenciais do
Artigo 1 do TPAN constituem uma série de proibições categóricas (“nunca sob
nenhuma circunstância”) contra armas nucleares, incluindo:
Artigo 1 (a) – Desenvolvimento,
teste, produção, fabricação, aquisição, posse ou armazenamento;
Artigo 1 (b) e (c) –
Transferência;
Artigo 1 (d) – Usar ou ameaçar
usar;
Artigo 1 (e) e (f) – Ajudar,
encorajar ou induzir qualquer dos atos proibidos acima, ou procurar assistência
de outros para praticar atos proibidos;
Artigo 1 (g) – Permitir que
outros Estados armazenem, instalem ou implementem armas nucleares em seus
territórios.
Estas disposições deixam claro
que todos os membros signatários não podem, de qualquer forma, por qualquer
motivo, se envolver com armas nucleares.
Artigos 2–4: Um caminho para
a renúncia por armas nucleares
Embora o Tratado tenha sido
negociado por Estados que não possuem armas atômicas, ele busca prover
condições para permitir que os países que as possuem ou que permitem que outros
países as armazenem no seu território possam juntar-se a ele. O Documento
oferece dois caminhos: os Estados podem destruir seus estoques antes de aderir
ao TPAN, ou aderir e, em seguida, iniciar um processo planejado de
desarmamento, ou seja, com metas e prazos definidos.
O Artigo 2 exige que todos os
Estados que se juntem ao Tratado façam uma declaração sobre se possuem ou
controlam armas nucleares e se já as eliminaram. O artigo 4 oferece a
oportunidade de aderir ao Tratado com armas nucleares ainda em sua posse ou no
seu território, desde que elas sejam imediatamente removidas da sua condição
operacional e concordem com um “plano juridicamente vinculante estabelecendo um
tempo para que a eliminação irreversível seja verificada e aprovada pelos
membros do tratado”.
Para verificar se os armamentos
atômicos estão sendo destruídos e que o material nuclear é mantido seguro,
evitando o desvio, o Artigo 3 exige que todos os membros do TPAN adotem acordos
de salvaguardas específicos, supervisionados pela Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA). Requer-se que o regime de salvaguardas seja fortalecido ao
longo do tempo e proíbe o seu enfraquecimento (Artigos 3 e 4).
Artigo 5: Criminalização das
armas nucleares
Para garantir que o novo Tratado
tenha efeito, o Artigo 5 exige que os membros implementem “todos os
procedimentos legais e administrativos apropriados e outras medidas para
enfrentar os danos causados por armas nucleares e fazer cumprir as proibições”.
Isso inclui “a imposição de sanções penais para prevenir e reprimir qualquer
atividade proibida […] realizada por pessoas ou em território sob sua
jurisdição ou controle”.
Artigo 6–7: Reconhecendo
Direitos, Remediando Danos
Dado que o processo de negociação
envolveu fortemente o testemunho dos sobreviventes do uso e testes de armas
nucleares, os ativistas da sociedade civil pressionaram para garantir que o
texto final incluísse fortes provisões sobre a assistência às vítimas e
remediação dos ambientes contaminados.
O artigo 6.1 exige que os membros
que tenham “indivíduos sob sua jurisdição afetados pelo uso ou teste de armas
nucleares … [devem] fornecer adequadamente assistência adaptada à
idade e gênero …, incluindo cuidados médicos, reabilitação e apoio psicológico,
bem como proporcionar sua inclusão social e econômica”. Esclarece que isso deve
ser feito “sem discriminação”, dado que a assistência aos sobreviventes tem
sido frequentemente fornecida de forma desigual, por exemplo, prestando-se mais
assistência aos veteranos militares do que aos civis afetados, e “de acordo com
o direito internacional aplicável em matéria humanitária e de direitos humanos”.
O artigo 6.2 exige que os Estados
com áreas contaminadas como resultado de atividades relacionadas ao teste ou
uso de armas nucleares … [devem] “tomar as medidas necessárias e adequadas para
a remediação ambiental”. Houve um debate considerável durante a conferência
preparatória do Tratado sobre quem seria o responsável último pela mitigação
dos danos causados pelas armas nucleares. Vários Estados queriam que estivesse
claro que os governos que causaram o problema deveriam ser responsáveis por
ajudar aqueles que sofreram dano e limpar a contaminação que causaram. No
entanto, como um delegado na conferência afirmou durante uma reunião plenária, “se
um carro me atingir atravessando uma avenida e se evadir, não devo esperar que
ele chame uma ambulância para me socorrer”. Consistente com o direito
internacional humanitário e os direitos humanos, e de acordo com o princípio da
soberania do Estado, o TPAN coloca a responsabilidade e o controle primário da
ajuda às vítimas e remediação dos ambientes contaminados para os Estados
afetados.
No entanto, como se considera as
armas nucleares como uma ameaça a toda a humanidade, fica estabelecido que
mitigar os danos da violência nuclear é dever de todas as pessoas. Portanto, o
Artigo 7 expande o círculo de responsabilidade a todos os signatários, que são
obrigados a cooperar e fornecer “assistência técnica, material e financeira”
para ajudar outros Estados a cumprir suas obrigações. Também encoraja o
envolvimento do sistema das Nações Unidas, da Cruz Vermelha e da sociedade
civil.
No entanto, o Artigo 7.6 afirma
que países que aderirem ao Tratado, mas que usaram ou testaram armas nucleares,
“têm a responsabilidade de prestar assistência adequada aos Estados Partes
afetados”. Nada pré-exclui os Estados afetados de buscar reparação dos Estados
usuários e testadores através de outros meios pacíficos legais, diplomáticos e
políticos.
Os defensores do TPAN também
esperam que os artigos 6 e 7 ofereçam oportunidades para persuadir os países
fora do Tratado a se envolverem com suas normas. Ao convidá-los a prestar
assistência às pessoas e ambientes prejudicados pelas armas nucleares como
parte de sua ajuda externa, teriam que negociar com os membros signatários e
assim se conscientizar sobre as consequências catastróficas humanitárias e
ambientais das armas nucleares.
O artigo 8–12: Convocando um
novo fórum e mecanismos para estigmatizar as armas nucleares
O processo de desarmamento
nuclear foi bloqueado por décadas pelo impasse nos fóruns multilaterais com
mandato para negociá-lo. Na prática, os únicos Estados que, historicamente,
promoveram o total desarmamento nuclear foram a África do Sul, após a queda do
regime doapartheid e a Ucrânia e o Cazaquistão, após a dissolução da União
Soviética. O Conselho de Segurança da ONU, a Conferência de Desarmamento e as
Conferências de Revisão do TNP dão margem a que os Estados que possuem armas
nucleares possam bloquear quaisquer tentativas de avanço nesse sentido.
O TPAN estabelece reuniões
bianuais dos membros signatários (artigo 8), bem como conferências de revisão
de seis em seis anos. Essas reuniões permitirão que os Estados avaliem o
progresso na implementação e universalização do Tratado, bem como possíveis
medidas adicionais de desarmamento. Atendendo ao propósito estigmatizante, o
artigo 12 exige que todos seus membros encorajem os Estados fora do seu regime
a ele se juntarem, estabelecendo o “objetivo da adesão universal”. O Artigo 9
estabelece uma forma de financiar as reuniões dos membros. O Artigo 10 permite
que se adote emendas para se adaptarem a novos desafios e o Artigo 11 esclarece
como os Estados resolverão pacificamente as controvérsias “relacionadas à
interpretação ou aplicação do presente Tratado”.
Artigos 13–20: Arranjos
institucionais
O restante do TPAN trata em
grande parte de detalhes dos seus aspectos legais, incluindo como os países
podem aderir (artigos 13 e 14) e quando entrará em vigor, o que ocorrerá 90
dias após 50 Estados o ratificarem (artigo 15). Esclarece que os Estados não
podem colocar reservas à sua assinatura (artigo 16) e que ele será de “duração
ilimitada” (artigo 17 (1)). Estabelece o Secretário-Geral da ONU como seu
depositário oficial (artigo 19) e que suas versões em todas as línguas oficiais
da ONU, árabe, chinês, inglês, francês, russo e espanhol, “serão igualmente
autênticas” (artigo 20).
Os elementos do Tratado foram
sujeitos a um debate significativo. Vários Estados lutaram arduamente para
garantir que o novo TPAN não prejudicasse o TNP ou o CTBT. Como resultado, o
preâmbulo reafirma o TNP como “a pedra angular do regime de desarmamento
nuclear e não proliferação” e a “importância vital” do CTBT. Isto é consagrado
na parte juridicamente vinculativa do Tratado pelo seu Artigo 18, que exige que
a sua implementação “não prejudique obrigações [em outros] … acordos
internacionais existentes”, desde que “essas obrigações sejam consistentes com
o Tratado”.
De forma mais controversa, o
artigo 17 reconhece o “direito de retirada de um Estado … se decidir que
eventos extraordinários relacionados com o assunto do Tratado comprometeram os
interesses supremos de seu país”. Para garantir que isso não seja feito de
forma simplista, um Estado que pretenda se retirar deverá fornecer uma
justificativa fundamentada e aguardar um período de 12 meses. Se o país em
retirada estiver envolvido em um conflito armado, ele continuará a ser
legalmente vinculado pelo Tratado até a guerra acabar.
Quando a cláusula de retirada foi
debatida pela conferência de negociação, a grande maioria dos Estados era
favorável à exclusão ou mesmo a proibição da retirada. Entretanto, esta
possibilidade permaneceu devido à insistência obstinada de alguns, como
Argélia, Bangladesh, Egito, Irã, Filipinas e Suécia. Tal fato foi condenado por
ativistas da sociedade civil que argumentavam que permitir a retirada enviaria
uma mensagem contraditória sobre a proibição universal e categórica
estabelecida. No entanto, a maioria dos tratados internacionais, incluindo
aqueles de desarmamento, têm cláusulas de retirada. Os termos definidos pelo
artigo 17 tornam mais difícil retirar-se do TPAN que do TNP e das convenções
que proíbem as armas químicas e biológicas.
O Caminho à Frente
Explicando seu apoio ao Tratado,
um delegado afirmou que “demonstra nossa capacidade de mudar o mundo um passo
de cada vez”. Dada a não participação dos países detentores de armas nucleares,
maiores responsáveis pela falta de progresso no desarmamento nuclear, o TPAN
não pretende um mundo sem armas nucleares no curto prazo. No entanto,
estabelece uma norma clara de que os armamentos atômicos representam um risco
para a segurança e a prosperidade de toda a humanidade. Ele coloca os danos
humanos e ambientais causados pelas armas nucleares no centro do debate. Com
isso, pretende criar pressão política sobre os Estados que têm um público predominantemente
antinuclear, mas dão apoio diplomático para a persistência de arsenais
nucleares, como Alemanha, Holanda, Noruega, Japão e Austrália. Em suma,
conforme os Estados façam sua adesão e efetivamente implementem o TPAN, ele
fará com que a defesa das armas atômicas pareça cada vez mais fora do alcance
de um consenso moral, ético e jurídico global.
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