No documentário de Maria Augusta
Ramos, dois destaques: os ambientes fechados do Congresso, expondo a pequenez
da política imediata; e a fala autocrítica de Gilberto Carvalho
José Geraldo Couto, no blog do IMS | em Outras Palavras
A primeira imagem de O
processo é uma tomada aérea da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, com
a câmera avançando em direção à Praça dos Três Poderes por sobre a cerca que
separa apoiadores e opositores do impeachment de Dilma Rousseff. É de um país
cindido ao meio que tratará este filme impressionante, em cartaz no
IMS Paulista e no IMS Rio.
O que mantém vivo e incômodo o
documentário de Maria Augusta Ramos, e que o torna difícil de manusear como um
ferro em brasa, é o fato de que essa cisão continua: pesquisas recentes dão
conta de que metade da população brasileira acredita que Dilma foi derrubada
por um golpe, enquanto a outra metade, ou hoje um pouco menos, ainda julga que
o impeachment foi um processo legítimo.
Como enfrentar, num documentário,
um tema tão explosivo e espinhoso? Como organizar e dar sentido a uma sequência
tão confusa e vertiginosa de eventos? Para se ter uma ideia do tamanho do
desafio, a diretora e sua montadora, Karen Akerman, tinham 450 horas de
material filmado para condensar em pouco mais de duas horas.
Construção dramática
Sem entrar, na medida do
possível, no mérito das questões discutidas na tela, pois isso já está sendo
feito por ensaístas e comentaristas políticos, vamos examinar alguns dos
procedimentos e opções adotados pela cineasta e os resultados assim atingidos,
em termos de construção cinematográfica e eficácia dramática.
Antes de tudo, há um rígido
recorte temporal. O filme começa com a abertura do processo de impeachment na
Câmara e termina com sua conclusão no Senado e o consequente afastamento da
presidente. A esse recorte temporal corresponde também uma delimitação
geográfica: tudo se passa na Praça dos Três Poderes (em especial no Congresso
Nacional) e em suas proximidades, isto é, na Esplanada dos Ministérios. O que ocorre
fora desse território e que tem efeito sobre o processo é mostrado sob a forma
de noticiários em telas de TV instaladas nos próprios ambientes retratados
(corredores do Congresso, gabinetes de parlamentares).
A sensação de claustrofobia
provocada por essa circunscrição em ambientes fechados é aliviada
ocasionalmente pela inserção de planos externos abertos, em que sempre se pode
ver o horizonte e o céu de Brasília. Estas imagens, em geral planos de ligação
entre os nervosos embates parlamentares, têm também o efeito de instilar uma
certa melancolia, um sentimento de solidão profunda, de diluição daquela
agitação superficial na imensidão inamovível do país, do continente, do cosmo.
O tempo incomensurável do universo contraposto ao tempo miúdo da política
imediata.
Jogo de contrastes
O jogo de contrapontos parece ser
a opção básica da construção dramática do filme, em vários aspectos. Há a
oposição básica entre os pró e os contra o impeachment, claro. Isso se mostra
não apenas na alternância de discursos de um lado e de outro e na briga de
torcidas entre vermelhos e verde-amarelos, mas na maneira como são filmadas e
montadas essas falas e essas palavras de ordem.
Quando a acusadora Janaína
Paschoal discursa, por exemplo, vemos a reação fisionômica da senadora petista
Gleisi Hoffmann; quando fala o advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo,
contemplamos a expressão irônica do senador tucano Aloysio Nunes, e assim por
diante. Do lado de fora, os gritos de “Fora Dilma” e “Lula na prisão” são
respondidos por “Fora Temer” e “Não vai ter golpe”, menos de acordo com uma
sequência linear, cronológica, e mais por uma lógica, digamos, conceitual.
Mas há também contrastes de outra
ordem, mais formais, por assim dizer: sequências de debates acalorados são
seguidas de imagens de corredores vazios do Congresso na madrugada, ou de um
ponto de ônibus num final de tarde. Há toda uma arquitetura sonora e visual em
que se alternam ruído e silêncio, tumulto e calmaria, ambientes abarrotados e
espaços desertos. Cada sequência de acontecimentos parece atingir um ápice de
tensão antes de ser sucedida por um longo escurecimento da tela que serve não
apenas para a inserção de letreiros com informações factuais e marcos
temporais, mas principalmente para propiciar um tempo de assentamento, uma
pausa para reflexão.
Depois de um tempo, essa
alternância rítmica de agitação frenética e tempos mortos, de vociferação e
silêncio, luz ofuscante e escuridão, termina por compor uma sensação de
cansaço, de desalento, ou mesmo de luto – e nisso talvez esteja a tomada mais
profunda de posição da cineasta. O que começa como um filme de terror, como um
Kafka filmado por Fellini – o circo bizarro da votação do impeachment na
Câmara, com seus discursos em defesa das criancinhas, da família e dos militares
torturadores –, termina como uma elegia, um réquiem por um país que já se
acreditou risonhamente cordial e que já sonhou com um futuro de justiça e
prosperidade.
O tempo dos bastidores
Uma última observação sobre o
evidente desequilíbrio, nas cenas de bastidores, entre o tempo dedicado às
conversas entre partidários de Dilma e o dedicado aos partidários do
impeachment. A produção do filme esclareceu que os políticos e advogados
petistas concederam um acesso a seus gabinetes e reuniões que foi negado pelos
representantes do outro lado. A julgar pelo que se soube depois, e pelo que a
imprensa vem revelando a cada dia, não terá sido casual o veto às conversas dos
articuladores do impeachment: elas devem ter sido muito pouco republicanas.
Das confabulações nos gabinetes
petistas, para além das táticas momentâneas de enfrentamento
jurídico-parlamentar, o que deve ficar para a posteridade, provavelmente, é a
dura autocrítica do então ministro Gilberto Carvalho, para quem o PT deu
munição a seus inimigos ao entrar no jogo de toma lá dá cá da velha política e
se distanciar dos movimentos sociais que estavam na sua origem. Mas isso é
assunto para analistas políticos, e eles já estão se refestelando com o
material fornecido por O processo.
*José Gerado Couto é crítico
de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS. Para
ler as edições anteriores da coluna, clique aqui.
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