A concretização das intenções
manifestadas na Declaração de Panmunjom, implica a independência da Península
da Coreia, a desnuclearização do território e a retirada das forças militares
estrangeiras.
José Goulão* | opinião
O comunicado conjunto assinado em 27 de Abril último pelos
presidentes da Coreia do Sul e da Coreia do Norte ainda está fresco mas,
como é inevitável para que se cumpram as normas mistificadoras inerentes às
mensagens com imprimatur, iniciaram-se as operações interpretativas do
texto de modo a que, no limite, ele diga o que não diz e vice-versa.
A deterioração do conteúdo do
documento, porém, não é da responsabilidade exclusiva dos agentes de
propaganda; estes reflectem, em grande parte, a teia de manobras diplomáticas
«correctivas» imediatamente suscitadas pelo texto, onde se misturam
imposições, falsificações, oportunismo e má-fé, instrumentos fundamentais para
quem gere as coisas do mundo de hoje.
Os coreanos anseiam pela Paz
– a Norte ou a Sul do Paralelo 38
A declaração dos dois presidentes
e a correspondente aproximação bilateral – a mais significativa em 65 anos de
estado de guerra – assenta em bases genuínas, porque traduz os anseios pacifistas e unificadores da esmagadora
maioria dos 80 milhões de coreanos. A Coreia é uma nação única no
território da península e a divisão em dois Estados, ao contrário do que tanto
se diz e escreve, revelando deplorável ignorância, não é um simples produto da
guerra fria mas também o resultado de um conflito sangrento – aliás a primeira
situação em que as Nações Unidas cobriram com a sua bandeira uma operação
militar norte-americana, então para aplicação da «doutrina Truman» – em
«defesa dos povos livres do mundo». Truman foi, aliás, um presidente tão
recomendável como o que está na Casa Branca, como se percebe relendo
algumas das suas frases lapidares: «Deus está do lado da América no que diz
respeito às armas nucleares»; por isso, «agradecemos a Deus o facto de as armas
nucleares serem nossas e não dos nossos inimigos»; com elas, «Deus pode
guiar-nos nos seus caminhos e objectivos».
É fundamental recordar que a
agressão internacional contra a Coreia provocou a morte de 30 por cento da
população do norte da península, um massacre para o qual a chamada comunidade
internacional jamais encarou a possibilidade de estabelecer reparações ou
punir «os crimes de guerra». Lembrar essa realidade é uma circunstância
que ajuda a perceber melhor, e agora mais do que nunca, as reacções
obscurantistas e intriguistas ao objectivo de «desarmamento faseado» da
península, «ao ritmo do alívio das tensões militares e dos progressos
substanciais das medidas de confiança», definido pelos dois presidentes na
cimeira de 27 de Abril. E também permite entender o indisfarçado mal-estar em
Washington perante formulações como a construção de «um futuro de prosperidade
mútua e unificação, conduzido pelos coreanos».
As reacções gerais à cimeira
entre Kim Jong-un e Moon Jae-in que actualmente se vão sedimentando, depois de
ultrapassado o período em que se desgastou um pouco mais o estafado
adjectivo «histórico», confirmam que os presidentes das Coreias do Norte e
do Sul foram mais longe do que se esperava. Quando as atenções estavam
concentradas, principalmente, numa cimeira entre o dirigente da Coreia do Norte
e o presidente dos Estados Unidos, prevista para Junho mas ainda de realização
duvidosa, eis que a iniciativa intercoreana subverteu a agenda diplomática e
mediática, e logo por razões que não deixam dúvidas quanto à intencionalidade
dos responsáveis.
A origem de toda a movimentação
que veio atenuar um risco de confrontação prolongado durante meses foi o
anúncio, pela Coreia do Norte, de que está disposta a suspender os ensaios com
armas nucleares como ponto de partida para o restabelecimento de negociações
sobre a paz na Península.
A importância da proposta
tornou-se ainda mais relevante depois da reunião de Março entre Kim Jong-un e o
presidente da China, Xi Jinping, cuja realização só foi tornada pública depois
de ter sido concluída com êxito para ambas as partes, e na qual Pequim terá
manifestado consonância com o pensamento estratégico do dirigente
norte-coreano.
Se o movimento de aproximação de
Kim Jong-un colocou na ordem do dia a possibilidade de um encontro com
Trump – depois de ambos se terem confrontado num prolongado, assustador e
irresponsável duelo de ameaças – o regime de Seul respondeu de maneira ainda
mais decidida e criou espaço para uma cimeira coreana. É inegável que houve
desenvolvimentos paralelos e a velocidades diferentes.
Apesar de o acontecimento mais
mediatizado ter sido o da visita a Pyongyang do então chefe da CIA e hoje
secretário de Estado norte-americano, Michael Pompeo, tudo indica que o
presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in não cedeu toda a
representatividade ao enviado de Washington e reservou para si alguma margem de
manobra e canais de acesso directo a Kim Jong-un.
Os inimigos da paz na
Coreia devem procurar-se fora da península
Os dois dirigentes coreanos
criaram, deste modo, um espaço de diálogo nacional. E quando duas partes se
entendem, não necessitam de mediadores; três passam a ser de mais, sobretudo
quando o participante excedentário tutela um dos lados. O novo cenário,
surgindo contra a ordem dominante na região, está a criar choques e fricções
dentro da Administração Trump – em remodelação permanente – mas é visto com
bons olhos por fiéis aliados de Washington, um dado que pode funcionar como
reforço dos sintomas de isolamento norte-americano em relação a alguns focos
internacionais. A interpretação da situação na Península da Coreia depois da
iniciativa de Kim Jong-un foi mais um ponto entre os vários desacordos que se
manifestaram durante as recentes visitas de Macron e Merckel a Washington.
Moon Jae-in não ignora que,
devido à tutela militar de Washington sobre Seul, ele próprio pisa um terreno
mais minado ainda que o do seu interlocutor do norte. Pelo modo como se
envolveu nas negociações nacionais – «ansioso», segundo algumas análises – e, sobretudo,
pelo conteúdo da declaração conjunta, deu passos que extravasam o espaço de
autonomia que a tutela externa estipulou para um presidente do regime
sul-coreano.
Ao longo de décadas, as
sucessivas administrações norte-americanas têm encarado os fortuitos períodos
de contactos entre o Norte e o Sul da Coreia como movimentos perfeitamente
controlados pela envolvente externa, orientados segundo os objectivos
estratégicos de Washington não apenas para a península, mas também para toda a
Ásia e tendo em conta a relação de forças global. A estrutura de poder que gere
efectivamente os Estados Unidos da América, chame-se «Estado profundo» ou
«complexo militar e industrial», tem mantido, em relação à Coreia, uma política
com duas variáveis estreitas: ou impedir a unificação; ou ditar os termos da
unificação, designadamente de maneira a estender a presença militar para norte,
em direcção às fronteiras com a China e com o território da Federação Russa.
A recente Declaração de Panmunjom
define objectivos dos dois regimes coreanos que são incompatíveis com o status
quo. «Paz, prosperidade e unificação» conduzidas «pelos coreanos»; o
início de «uma nova era de paz»; a transformação do armistício vigente desde
1953 num «tratado de paz» e num «sólido e permanente regime de paz na
Península da Coreia» são metas apenas alcançáveis num cenário sem qualquer
tipo de ocupação militar estrangeira.
É certo que, dias depois da
cimeira, o regime sul-coreano emitiu um comunicado afirmando que a retirada das
tropas norte-americanas – as únicas estrangeiras presentes na península – não
está a ser encarada no âmbito deste processo.
Trata-se de um recuo aparente,
uma espécie de abrigo contra os estilhaços da convulsão que a nova situação
coreana está a provocar nos círculos de poder norte-americano. Porque, em
termos práticos objectivos, não existe réstia de compatibilidade entre um
tratado de paz e a manutenção de um contingente militar de ocupação, entre um
«desarmamento faseado ao ritmo do alívio das tensões militares» e a continuação
de um regime onde os serviços secretos se designam KCIA e as forças armadas
estão subordinadas ao comando operacional norte-americano.
Em suma, a concretização das
intenções manifestadas pelos presidentes da Coreia do Sul e da Coreia do Norte
na Declaração de Panmunjom, designadamente a unificação, implica a
independência da Península da Coreia, a desnuclearização de todo o território e
a retirada das forças militares estrangeiras do país.
As «interpretações» ocidentais
da Declaração de Panmunjom e a realidade
Na sua letra, a Declaração de
Panmunjom manifesta uma intenção de ruptura assumida pelos dois presidentes.
Contra a qual se erguem agora as teorias e análises impondo uma
«releitura» do texto, algumas delas com tanta credibilidade, por exemplo,
como as «provas» do recente ataque químico governamental sírio em Duma. É
o caso da interpretação que explica como Kim Jong-un foi obrigado a suspender o
programa nuclear porque a montanha que abriga o complexo militar e científico
está a desabar; ou então a sua contrária, segundo a qual o presidente
norte-coreano promete abdicar dos projectos militares nucleares enquanto
continua a desenvolvê-los, e por isso não permitirá quaisquer inspecções
internacionais. Um argumento falacioso para esconder a essência do que vai
estar verdadeiramente em causa na cimeira entre o presidente norte-coreano e
Donald Trump, caso se realize: o encerramento do programa nuclear de Pyongyang
sob monitorização internacional em troca da retirada militar norte-americana do
Sul da península. Este é o desafio lançado por Kim Jong-un, e cujas implicações
Moon Jae-in, certamente, não ignora.
Uma proposta cuja recusa poderá
deixar o presidente norte-americano isolado, até do próprio presidente da
Coreia do Sul. O qual deve, desde já, precaver-se de quaisquer imprevistos,
sendo o menos gravoso para a sua integridade física o pacífico, mas eficaz,
golpe palaciano ao estilo paraguaio ou brasileiro.
Mas o que terá levado Donald
Trump a aceitar o repto lançado pelo seu inimigo de estimação ao longo do
primeiro ano de mandato?
Muito provavelmente porque tal
lhe convém, uma vez que outro velho, mas renovado inimigo, entra em cena depois
dos comprometedores fracassos dos justiceiros atlantistas na Síria: o Irão.
EUA: repousar na Coreia para
atacar no Médio Oriente
Não apenas porque o Irão teve a
ousadia de participar na resistência síria à agressão, ao lado da Rússia;
também porque Teerão faz frente à reconfiguração do mapa do Médio Oriente,
contribuindo para desmontar importantes mecanismos operacionais que a coligação
entre Israel e a Arábia Saudita tenta impôr em toda a região, do Iémen ao
próprio Irão, passando por Damasco e Beirute.
A agressão contra o Irão, uma
obsessão com que Israel há muito tenta contaminar os aliados, e que partilha
com o fundamentalismo saudita, estava prevista logo que a Síria se vergasse.
Como isto não aconteceu, acumulam-se os indícios de que os dois países sejam
agrupados num alvo comum, que provavelmente traduzirá numa catastrófica fuga
para a frente. Daí as ameaças cada vez mais consistentes de Trump segundo as
quais os Estados Unidos sairão do acordo com o Irão, reforçadas agora que
Israel “descobriu”, certamente nos mágicos laboratórios do Mossad, as provas de
que além dos tão falados projectos nucleares suspensos, Teerão ainda tem outros
– mas esses ultra-secretos.
Na eventualidade de se registar
uma maior concentração de esforços de guerra no Médio Oriente, até ao intrépido
e omnipresente exército norte-americano convém que a frente da Coreia fique
congelada por uns tempos, nem que seja alimentando conversações que darão em
nada.
O pior, para as sempre
periclitantes estratégias do Pentágono, é se os coreanos conseguirem trilhar em
conjunto o caminho que tiveram a ousadia de abrir.
Foto: Coreano-americanos
manifestaram-se em diversas cidades americanas contra as ameaças dos EUA e pela
paz na Coreia, por ocasião do 72.º aniversário da libertação do jugo colonial
japonês, em 14 de Agosto de 2017. CréditosFonte: Zoom in Korea
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