Como o capitalismo contemporâneo
cria sem cessar ocupações inúteis, enquanto remunera muito mal as mais
necessárias. Quais as alternativas? Garantia de trabalho? Ou Renda Cidadã
Universal?
David Graeber, entrevistado
por Eric Allen Been, na Vice| Tradução: Antonio Martins |
em Outras Palavras
Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.
Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, no final do século 20, países como os Estados Unidos teriam – ou deveriam ter – jornadas de trabalho de 15 horas semanais. Por que? Em grande medida, a tecnologia tiraria de nossas mãos tarefas sem sentido. Claro, isso nunca ocorreu. Ao contrário, muitíssimas pessoas, em todo o mundo, estão submetidas a longas jornadas como advogados corporativos, consultores, operadores de telemarketing e outras ocupações.
Mas enquanto muitos de nós
julgamos nossos trabalhos muito aborrecidos, algumas ocupações não fazem
sentido algum, segundo o escritor anarquista David Graeber. Em seu novo livro,
“Bullshit Jobs: A Theory” [“Trabalhos de Merda: Uma Teoria”], o autor argumenta
que os seres humanos consomem suas vidas, muito frequentemente, em atividades
assalariadas inúteis. Graeber, que nasceu nos EUA e que já havia escrito, entre
outras obras, Dívida:
Os Primeiros 5000 anos e The
Utopia of Rules [ainda sem edição em português] é professor de
Antropologia na London School of Economics e uma das vozes mais conhecidas do
movimento Occupy Wall Street (atribui-se a ele a frase “Somos os 99%”).
A “Vice” encontrou-se há pouco
com Graeber para conversar sobre o que ele define como “emprego de merda”; por
que os trabalhos socialmente úteis são tão mal pagos, e como uma renda básica
assegurada a todos poderia resolver esta enorme injustiça.
Em primeiro lugar, o que são
empregos de merda e por que existem?
David Graeber: Basicamente,
um emprego de merda é aquele cujo executor pensa secretamente que sua atividade
ou é completamente sem sentido, ou não produz nada. E também considera que se
aquele emprego desaparecesse, o mundo poderia inclusive converter-se num lugar
melhor. Mas o trabalhador não pode admitir isso – daí o elemento de merda.
Trata-se, portanto, em essência, de fingir que se está fazendo algo útil, só
que não.
Uma série de fatores contribuiu
para criar esta situação estranha. Um deles é a filosofia geral de que o
trabalho – não importa qual – é sempre bom. Se há algo em que a esquerda e a
direita clássicas frequentemente estão de acordo é no fato de ambas concordarem
que mais empregos são uma solução para qualquer problema. Não se fala em “bons”
trabalhos, que de fato signifiquem algo. Um conservador, para o qual precisamos
reduzir impostos para estimular os “criadores de emprego”, não falará sobre que
tipo de ocupações quer criar. Mas há também partidários da esquerda insistindo
em como precisamos de mais ocupações para apoiar as famílias que trabalham
duro. Mas e as famílias que desejam trabalhar moderadamente? Quem as apoiará?
Até mesmo os empregos de merda
garantem a renda necessária para que as pessoas sobrevivam. No fim das contas,
por que isso é ruim?
Mas a questão é: se a sociedade
tem os meios para sustentar todo mundo – o que é verdade – por que insistimos
em que os trabalhadores passem sua vida cavando e em seguida tapando buracos?
Não faz muito sentido, certo? Em termos sociais, parece sadismo.
Em termos individuais, isso pode
ser visto como uma boa troca. Mas, na verdade, as pessoas obrigadas a tais
trabalhos estão em situação miserável. Podem considerar: “estou ganhando algo
por nada”. Bem, as pessoas que recebem salários bons, muitas vezes de nível
executivo, certamente de classe média, quase sempre passam o dia em jogos de
computador ou atualizando seus perfis de Facebook. Quem sabe, atendendo o
telefone duas vezes por dia. Deveriam estar felizes por ser malandros, certo?
Mas não são.
As pessoas contratadas para tais
trabalhos relatam, regularmente, que estão deprimidas. E se lamentarão, e
praticarão bullying umas contra as outras, e se apavorarão com prazos finais
porque são de fato muito raras. Porém, se pudessem buscar uma razão social no
trabalho, uma boa parte de suas atividades desapareceria. As doenças
psicossomáticas de que as pessoas padecem simplesmente somem, no momento em que
elas precisam realizar uma tarefa real, ou em que se demitem e partem para um
trabalho de verdade.
Segundo seu livro, a sociedade
pressiona os jovens estudantes para buscar alguma experiência de emprego, com o
único objetivo de ensiná-los a fingir que trabalham
É interessante. Chamo de trabalho
real aquele em que o trabalhador realiza alguma coisa. Se você é estudante,
trata-se de escrever. Preparar projetos. Se você é um estudante de Ciências,
faz atividades de laboratório. Presta exames. É condicionado pelos resultados e
precisa organizar sua atividade da maneira mais efetiva possível para chegar a
eles.
Porém, os empregos oferecidos aos
estudantes frequentemente implicam não fazer nada. Muitas vezes, são funções
administrativas onde eles simplesmente rearranjam papéis o dia inteiro. Na
verdade, estão sendo ensinados a não se queixar e a compreender que, assim que
terminarem os estudos, não serão mais julgados pelos resultados – mas,
essencialmente, pela habilidade em cumprir ordens.
E os empregos tecnológicos ou na
mídia. Seriam, também, de merda?
Certamente. Por meio do Twitter,
pedi às pessoas que me relatassem seus empregos mais sem sentido. Obtive
centenas de respostas. Havia um rapaz, por exemplo, que desenhava bâners
publicitários para páginas web. Disse que havia dados demonstrando que ninguém
nunca clica nestes anúncios. Mas era preciso manipular os dados para
“demonstrar” aos clientes que havia visualizações – para que as pessoas
julgassem o trabalho importante.
Na mídia, ha um exemplo
interessante: revistas e jornais internos, para grandes corporações. Há
bastante gente envolvida na produção deste material, que existe principalmente
para que os executivos sintam-se bem a respeito de si próprios. Ninguém mais lê
estas publicações.
A automação é vista, muitas
vezes, como algo negativo. Você discorda deste ponto de vista, não?
Certamente. Não o compreendo. Por que não deveríamos eliminar os trabalhos desagradáveis? Em 1900 ou 1950, quando se imaginava o futuro, pensava-se: “As pessoas estarão trabalhando 15 horas por semana. É ótimo, porque os robôs farão o trabalho por nós”. Hoje, este futuro chegou e dizemos: ”Oh, não. Os robôs estão chegando para roubar nossos trabalhos”. Em parte, é porque não podemos mais imaginar o que faríamos conosco mesmo se tivéssemos um tempo razoável de lazer.
Como antropólogo, sei
perfeitamente que tempo abundante de lazer não irá levar a maioria das pessoas
à depressão. As pessoas encontram o que fazer. Apenas não sabemos que tipo de
atividade seria, porque não temos tempo de lazer suficiente para imaginar.
Pergunto: por que as pessoas agem
como se a perspectiva de eliminar o trabalho desnecessário fosse um problema?
Deveríamos pensar que um sistema eficiente é aquele em que se pode dizer: “Bem,
temos menos necessidade de trabalho. Vamos redistribuir o trabalho necessário
de maneira equitativa”. Por que isso é difícil? Se as pessoas simplesmente
assumem que é algo completamente impossível, parece-me claro que não estamos em
um sistema eficiente.
Um dos pontos mais interessantes
do livro são suas observações sobre como os empregos socialmente valiosos são
quase sempre menos bem pagos que os empregos de merda.
Foi uma das coisas que,
pessoalmente, mais me chocou na fase da pesquisa. Comecei a tentar descobrir se
algum economista havia observado o fenômeno e tentado explicá-lo. Houve
antecedentes, na verdade. Alguns eram economistas de esquerda; outros, não.
Alguns eram totalmente mainstream.
Mas todos chegaram à mesma
conclusão. Segundo eles, há uma tendência: quanto mais benefícios sociais um
emprego produz, menor tende a ser a remuneração – e também a dignidade, o
respeito e os benefícios. É curioso. Há poucas exceções e não são tão excepcionais
como se poderia pensar. Os médicos, é claro, são um caso notório: é evidente
que são pagos com justiça e oferecem benefícios sociais.
Porém, há um argumento
recorrente: “Não seria bom que pessoas interessadas apenas em dinheiro
ensinassem as crianças. Não se deve pagar demais aos professores. Se o
fizéssemos, teríamos gente gananciosa na profissão, em vez de professores que
se sacrificam”. Há também a ideia de que se um trabalhador sabe que sua
atividade produz benefícios, isso pode ser o bastante. “Como, você quer
dinheiro, além de tudo?” As pessoas tendem a discriminar qualquer um que tenha
escolhido um emprego altruísta, sacrificante ou apenas útil.
Aparentemente, você é pouco
favorável à ideia de garantia de trabalho, defendida entre outros por
Bernie Sanders [candidato de esquerda à presidência dos EUA], por preferir
a garantia de renda cidadã.
Sim. Sou alguém que não quer
criar mais burocracia e mais empregos de merda. Há um debate sobre garantia
de trabalho – que Sanders, de fato, propõe, nos EUA. Significa que os
governos deveriam assegurar que todos tenham acesso ao menos a algum tipo de
trabalho. Mas a ideia por trás da renda universal da cidadania é
outra: simplesmente assegurar às pessoas meios suficientes para viver com
dignidade. Além desse patamar, cada um pode definir quanto mais deseja.
Acredito que a garantia de
trabalho certamente criaria mais empregos de merda. Historicamente, é o que
sempre acontece. E por que deveríamos querer que os governos decidissem o que
podemos fazer? Liberdade implica em nossa capacidade de decidir por nós mesmos
o que queremos e como queremos contribuir para a sociedade. Mas vivemos como se
tivéssemos nos condicionado a pensar que, embora vejamos na liberdade o valor
mais alto, na verdade não a desejamos. A renda básica da cidadania ajudaria a
garantir exatamente isso. Não seria ótimo dizer: “Você não tem mais que se
preocupar com a sobrevivência. Vá e decida o que quer fazer consigo mesmo”?
*David Graeber - Anarquista,
antropólogo e professor no Colégio Goldsmith da Universidade de Londres .
Anteriormente foi professor associado na Universidade de Yale. Graeber
participa ativamente em movimentos sociais e políticos, protestanto contra o
Fórum Econômico Mundial de 2002 e o movimento Occupy Wall Street. Ele é membro
do Industrial Workers of the World e faz parte do comite da Organização
Internacional para uma Sociedade Participativa (em inglês: International
Organization for a Participatory Society)
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