domingo, 24 de junho de 2018

Macau | Visão unilateral de novo manual de história pode limitar pensamento crítico dos alunos


O PONTO FINAL teve acesso aos novos manuais escolares da disciplina de História encomendados pela DSEJ a uma editora estatal e consultou professores e historiadores sobre os conteúdos. Alguns professores receiam que a visão incompleta da história proposta pelos manuais possa limitar o pensamento crítico dos alunos. A este jornal, a Associação de História Educação de Macau apontou um desajustamento dos termos em relação ao vocabulário local. O deputado Sulu Sou sugere uma revisão dos manuais e a historiadora Tereza Sena defende uma contextualização e inclusão de “visões comparativas”.

Cláudia Aranda e Margarida Pun | Ponto Final

Os novos manuais escolares da disciplina de História encomendados pela Direcção dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) à editora oficial estabelecida em Pequim, People’s Education Press, continuam a suscitar críticas entre professores e historiadores locais. Os especialistas chineses e a historiadora portuguesa contactados pelo PONTO FINAL consideram que os manuais, além de apresentarem uma visão fragmentária e descontextualizada da história relativamente não só à passagem dos portugueses por Macau, mas também à história da China, também falham no ajustamento dos termos ao vocabulário local. A escolha da editora oficial estatal para elaborar os materiais didácticos também é questionada. Este é o primeiro manual escolar que contém referências à história de Macau encomendado pela DSEJ para apoiar as escolas na concretização da reforma curricular.

Os referidos manuais destinam-se a serem usados pelos alunos dos 7º e 10º anos, no próximo ano lectivo de 2018/2019, com início em Setembro, sendo esta uma versão preliminar que foi distribuída por 43 escolas secundárias, em língua veicular chinesa, para que analisem os materiais. Segundo a DSEJ, 18 estabelecimentos do ensino secundário geral (40%) e 21 do ensino secundário complementar (50%) já manifestaram interesse em adoptar a versão experimental dos materiais didácticos no próximo ano lectivo.

Manuais não expõem “o todo”

A polémica foi levantada no início do mês, a 4 de Junho, quando o deputado com mandato suspenso, Sulu Sou, publicou nas redes sociais um comentário referindo-se à omissão na China sobre o massacre de Tiananmen, acontecimento que também não é mencionado nos novos manuais escolares, pelo que o deputado considerava-os “incompletos”. Ao PONTO FINAL, Sulu Sou destacou que os manuais não expõem “o todo”, mas apenas uma parte da história. Outro dos exemplos referidos é a associação da presença dos portugueses em Macau no século XVI a práticas de contrabando, pirataria e corrupção, sem que haja uma contextualização (ver caixa). No entender do deputado, o Governo deveria devolver os manuais à equipa que redigiu os textos, envolver mais historiadores e especialistas para que façam uma revisão e identifiquem as partes em falta, de maneira a oferecer-se aos alunos “uma visão completa” da história.

“Sofrimento dos civis” é esquecido

Um dos professores de ensino secundário consultados pelo PONTO FINAL questionou a opção do Governo da RAEM pela editora estatal, que funciona sob a tutela directa do Ministério da Educação chinês. “Macau é uma região administrativa especial, integrada no sistema ‘Um País, Dois Sistemas’, deve haver opções para os cidadãos de Macau e de Hong Kong escolheram quem é que vai editar o manual”, afirma o antigo director de uma escola chinesa privada local, formado em pedagogia e com mais de 30 anos de carreira, actual funcionário de uma universidade privada, que preferiu não ser identificado com receio de retaliações no momento da renovação do próximo contrato. “A meu ver, um livro de história que é elaborado pela editora oficial tem como objectivos promover a educação patriótica e tentar não escrever algumas partes da história”, destaca, acrescentando que, enquanto professor, está preocupado com a possibilidade da “disciplina de história se tornar numa missão política”, contribuindo para que os estudantes deixem de ter pensamento crítico.
         
O pedagogo prossegue afirmando que os manuais em questão destacam “as conquistas políticas dos imperadores de cada dinastia, mas não escrevem muito sobre o sofrimento dos civis”. Além disso, partes da história moderna e contemporânea, incluídas no manual do 10º ano, foram omitidas, alega o pedagogo. “Tanto a Revolução Cultural, como o Grande Salto em Frente, não são descritos de forma autêntica. A revolução cultural é descrita como um período duro, mas sem indicar o número de mortos. Aliás, o manual não menciona o protesto na Praça Tiananmen”, afirma.

Eterno tabu: o 4 de Junho

Segundo o antigo director de escola, os estabelecimentos de ensino de Macau utilizam normalmente livros elaborados por editoras de Hong Kong, sendo que, entre estas, algumas incluem nos seus conteúdos o 4 de Junho de 1989, dia em que o exército chinês carregou sobre o movimento estudantil pró-democracia iniciado mais de um mês antes. O número exacto de mortos nunca foi revelado oficialmente.

Em Macau, “especialmente as escolas privadas dão liberdade aos professores para adicionar ou reduzir conteúdos históricos. De facto, as escolas patrióticas não ensinam o 4 de Junho, mas as escolas privadas, católicas ou cristãs sim”, adianta o professor, adicionando que, nos últimos anos, muitas “escolas patrióticas” abandonaram os manuais de Hong Kong para passarem a usar livros da China, nomeadamente da Universidade de Jinan.

No entender de um outro professor, que lecciona a disciplina de História, entrevistado pelo PONTO FINAL e que também não quis ser identificado, o novo manual “não corresponde às necessidades de ensino”. Segundo o docente, que lecciona há mais de 10 anos, e que, actualmente, ensina numa escola chinesa localizada na parte norte da cidade, “algumas palavras não são usadas de forma ajustada, o conteúdo é incompleto, os professores têm de complementar muitas matérias para o conteúdo ser global”. O professor entende que “falta incluir no manual as contribuições de historiadores”, de maneira a adicionar pontos de vista diferentes. Na história de Macau, o docente sugere inclusão de “características locais, desenvolvimento da cultura diversificada, as relações com a China e o mundo, porque Macau teve um papel no intercâmbio entre o mundo Oriental e Ocidental por um longo período”, afirma.

Introdução de história de Macau “é um avanço”

Na sua resposta ao PONTO FINAL, a DSEJ explica que em 2017 incumbiu a elaboração dos manuais, à “People’s Education Press”, que é uma “editora profissional e com experiência na elaboração e publicação de materiais didácticos de História”, de compor uma equipa para iniciar o trabalho de elaboração dos materiais didácticos, de acordo com o ‘Quadro da organização curricular da educação regular do regime escolar local’ e as ‘Exigências das competências académicas básicas’”. Em simultâneo, “o grupo de apreciação organizado pela DSEJ e composto por historiadores e pessoal docente de História locais contribuiu com opiniões profissionais em termos de estrutura, estilo, conteúdo, redacção e formatação de texto, entre outros aspectos”. A DSEJ prevê que no ano lectivo de 2019/2020 os materiais didácticos sejam alargados a outros níveis do ensino secundário.

Lam Fat Iam, director executivo do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais do Instituto Politécnico de Macau e presidente da Associação de História Educação de Macau, disse ao PONTO FINAL que a associação a que preside foi solicitada pela DSEJ a colaborar na elaboração dos manuais. Lam Fat Iam entende que “o conteúdo dos manuais cumpre as exigências das competências académicas básicas”, apesar de reconhecer que ainda são reduzidas as referências a Macau. Apesar de tudo, houve um avanço, no entender da associação, que luta desde há anos pela inclusão da história de Macau nos currículos escolares. “No início, quando estabelecemos as exigências, discutimos amplamente a proporção, de maneira a haver um equilíbrio entre história do mundo, história da China e história de Macau. A proporção da história de Macau na organização curricular não é muita, mas houve um grande avanço, porque antigamente não havia história de Macau”, explicou. Segundo o investigador, os manuais abordam sobretudo os “últimos 400 ou 500 anos de história de Macau”.

Para Lam Fat Iam, a opção por uma editora estatal justifica-se porque “Macau não tem uma editora local para redigir manuais escolares, por isso, as escolas usam os manuais de editoras de outras regiões. A DSEJ ou algumas escolas já encomendaram a editoras a elaboração de manuais. Este não é um caso especial”. Na opinião do investigador, a editora à qual foram encomendados os manuais “é a mais profissional na educação na China continental”. No entanto, destaca, “o mais importante é melhorar os manuais através das opiniões de investigadores locais”.

Vocabulário desajustado

Para Cyrus Ao Ieong, vice-presidente da Associação de História Educação de Macau e professor de História na Escola Choi Nong Chi Tai, as expressões utilizadas pela editora estatal de Pequim é a principal preocupação identificada, apesar de considerar que os conteúdos cumprem as exigências das competências académicas básicas. “Algumas palavras não são comuns para os alunos de Macau, por isso, esperamos que alguns termos chineses possam ser alterados”.

O vice-presidente da Associação de História Educação de Macau reconhece dificuldades em convencer a editora estatal a aceitar todas as sugestões da parte de Macau. Por exemplo, na secção que refere à Revolução Cultural, “como os manuais são redigidos pela People’s Education Press, por isso, o número de mortes é mais sensível. O nosso grupo inclui professores de escolas patrióticas, católicas e cristãs, que apresentou algumas opiniões sobre o conteúdo desta parte à editora, mas como a People’s Education Press é uma instituição da China continental, é difícil convencê-la a aceitar as nossas opiniões”.

Associação quer introduzir capítulo “Catolicismo em Macau”

Em relação ao 4 de Junho, “de acordo com as exigências das competências académicas básicas, esta parte não é um conteúdo necessário”, explica Cyrus Ao Ieong. “De facto, não tivemos a ideia de incluir esta parte nos manuais. No entanto, apresentámos as nossas opiniões sobre o papel do catolicismo em Macau, que achámos que é a parte que falta nos manuais”, acrescentou.

Apesar de tudo, ao longo de um ano, “a editora ouviu as nossas opiniões, o conteúdo alterou-se muito, os manuais originais não eram assim, os manuais presentes já se aproximam mais à situação de Macau”, disse.

No 10 de Junho, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, declarou à imprensa que já havia dado instruções à DSEJ para alargar o painel de consultores, de maneira a incluir historiadores portugueses e ouvir mais opiniões.

A DSEJ informou o PONTO FINAL que, “de momento, antes das escolas começarem a utilizar os novos materiais no ano lectivo de 2018/2019, a DSEJ continuará a recolher e ouvir ainda mais opiniões e sugestões profissionais dos historiadores de Macau e de Portugal para, após compiladas, as submeter à equipa de elaboração para servirem de referência para a versão final experimental dos materiais didácticos”.

É preciso “contextualização com visões comparativas”

Sem querer comentar os manuais, a historiadora Tereza Sena afirmou que, numa perspectiva geral, “independentemente da veracidade de determinados factos históricos, num manual didáctico, e também num trabalho académico, é sempre necessária uma contextualização, com visões contemporâneas, do ponto de vista de uma história chinesa ou de uma história ocidental, o que é completamente diferente de uma classificação de factos, de acordo com uma visão ou outra”. A historiadora referiu que aquela questão já foi ultrapassada pela historiografia moderna nos trabalhos de especialistas de história de Macau como Jin Guo Ping, Tang Kaijian, Wu Zhiliang ou do sinólogo alemão Roderick Ptak, entre muitos outros, “que já adoptam esta perspectiva de contextualização de visões diferentes do mundo, noções essas que devem ser introduzidas num currículo escolar”. A historiadora salienta que num manual “deve haver visões comparativas das problemáticas (…), em vez de perspectivas historiográficas demasiado centradas no seu próprio universo, quando aqui o que está em confronto são encontros entre dois mundos, duas ordens mundiais, dois sistemas civilizacionais, duas maneiras de olhar para a actividade comercial”. Sendo que há “historiadores chineses, e há historiadores não-portugueses a colocar as coisas nestes termos”.

Apagar conteúdos “não é decisão do secretário”

Entretanto, o secretário para os Assuntos Sociais e Cultura anunciou no passado dia 13 de Junho que “a associação dos portugueses a actividades de contrabando e corrupção não será incluída na versão final dos manuais de história”.

Ontem, ao PONTO FINAL, o deputado Sulu Sou disse que leu os manuais e que encontrou algumas partes referentes a Macau envolvendo a presença portuguesa “bastante negativas”, mas que considera desapropriado apagar o que foi escrito. “O secretário Alexis Tam disse que vai eliminar essas partes, mas penso que isso não é adequado, porque o manual escolar é um trabalho profissional, que deve envolver especialistas, académicos, professores de história, pelo que acho que isso não deve ser decidido pelo secretário”, afirmou.

(Alguns dos) Parágrafos da polémica


“Desde o período intermédio do reinado do Imperador Jiajing (1522-1566), na dinastia Ming, o comércio externo desenvolveu-se rapidamente em Macau. As importantes rotas comerciais faziam-se por: Macau – Goa – Lisboa, Macau – Nagasaki e Macau – Manila – México. O comércio exterior de Macau caracterizou-se pela pirataria, e contrabando de ópio e tráfico humano, bem como pelo não pagamento de direitos aduaneiros. Portanto, devido à intervenção portuguesa, o comércio exterior de Macau durante este período esteve sempre associado a violência e a saques”.

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“No início do século 16, os portugueses romperam ao longo da rota recém-aberta na costa sudeste da China. Quando o governo Ming rejeitou contactos oficiais, a Batalha de Tuen Mun e a Batalha de Shancaowan eclodiram entre a China e Portugal. Os portugueses foram derrotados, envolvendo-se em contrabando ilegal e pirataria na costa. Em 1554, os portugueses conseguiram uma autorização para entrar nos portos de Guangzhou e nas proximidades, subornando funcionários de Guangdong, e gradualmente os comerciantes portugueses mudaram-se para Macau. Em 1572, os portugueses começaram a pagar oficialmente uma renda anual ao governo chinês e alugaram Macau como trampolim para actividades missionárias e comerciais na China até 1849, quando o governador de Macau, [Ferreira do] Amaral anunciou o fim do pagamento da renda. Durante esse período, os governos Ming e Qing exerceram efectivamente a sua soberania e governação sobre Macau”.

Nota: tradução livre do chinês para inglês e do inglês para português.

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