O PONTO FINAL teve acesso aos
novos manuais escolares da disciplina de História encomendados pela DSEJ a uma
editora estatal e consultou professores e historiadores sobre os conteúdos.
Alguns professores receiam que a visão incompleta da história proposta pelos
manuais possa limitar o pensamento crítico dos alunos. A este jornal, a
Associação de História Educação de Macau apontou um desajustamento dos termos
em relação ao vocabulário local. O deputado Sulu Sou sugere uma revisão dos
manuais e a historiadora Tereza Sena defende uma contextualização e inclusão de
“visões comparativas”.
Cláudia Aranda e Margarida Pun |
Ponto Final
Os novos manuais escolares da
disciplina de História encomendados pela Direcção dos Serviços de Educação e
Juventude (DSEJ) à editora oficial estabelecida em Pequim, People’s Education
Press, continuam a suscitar críticas entre professores e historiadores locais.
Os especialistas chineses e a historiadora portuguesa contactados pelo PONTO
FINAL consideram que os manuais, além de apresentarem uma visão fragmentária e
descontextualizada da história relativamente não só à passagem dos portugueses
por Macau, mas também à história da China, também falham no ajustamento dos
termos ao vocabulário local. A escolha da editora oficial estatal para elaborar
os materiais didácticos também é questionada. Este é o primeiro manual escolar
que contém referências à história de Macau encomendado pela DSEJ para apoiar as
escolas na concretização da reforma curricular.
Os referidos manuais destinam-se
a serem usados pelos alunos dos 7º e 10º anos, no próximo ano lectivo de
2018/2019, com início em Setembro, sendo esta uma versão preliminar que foi
distribuída por 43 escolas secundárias, em língua veicular chinesa, para que
analisem os materiais. Segundo a DSEJ, 18 estabelecimentos do ensino secundário
geral (40%) e 21 do ensino secundário complementar (50%) já manifestaram
interesse em adoptar a versão experimental dos materiais didácticos no próximo
ano lectivo.
Manuais não expõem “o todo”
A polémica foi levantada no
início do mês, a 4 de Junho, quando o deputado com mandato suspenso, Sulu Sou,
publicou nas redes sociais um comentário referindo-se à omissão na China sobre
o massacre de Tiananmen, acontecimento que também não é mencionado nos novos
manuais escolares, pelo que o deputado considerava-os “incompletos”. Ao PONTO
FINAL, Sulu Sou destacou que os manuais não expõem “o todo”, mas apenas uma
parte da história. Outro dos exemplos referidos é a associação da presença dos
portugueses em Macau no século XVI a práticas de contrabando, pirataria e
corrupção, sem que haja uma contextualização (ver caixa). No entender do
deputado, o Governo deveria devolver os manuais à equipa que redigiu os textos,
envolver mais historiadores e especialistas para que façam uma revisão e
identifiquem as partes em falta, de maneira a oferecer-se aos alunos “uma visão
completa” da história.
“Sofrimento dos civis” é
esquecido
Um dos professores de ensino
secundário consultados pelo PONTO FINAL questionou a opção do Governo da RAEM
pela editora estatal, que funciona sob a tutela directa do Ministério da
Educação chinês. “Macau é uma região administrativa especial, integrada no
sistema ‘Um País, Dois Sistemas’, deve haver opções para os cidadãos de Macau e
de Hong Kong escolheram quem é que vai editar o manual”, afirma o antigo
director de uma escola chinesa privada local, formado em pedagogia e com mais
de 30 anos de carreira, actual funcionário de uma universidade privada, que
preferiu não ser identificado com receio de retaliações no momento da renovação
do próximo contrato. “A meu ver, um livro de história que é elaborado pela
editora oficial tem como objectivos promover a educação patriótica e tentar não
escrever algumas partes da história”, destaca, acrescentando que, enquanto
professor, está preocupado com a possibilidade da “disciplina de história se
tornar numa missão política”, contribuindo para que os estudantes deixem de ter
pensamento crítico.
O pedagogo prossegue afirmando
que os manuais em questão destacam “as conquistas políticas dos imperadores de
cada dinastia, mas não escrevem muito sobre o sofrimento dos civis”. Além disso,
partes da história moderna e contemporânea, incluídas no manual do 10º ano,
foram omitidas, alega o pedagogo. “Tanto a Revolução Cultural, como o Grande
Salto em Frente, não são descritos de forma autêntica. A revolução cultural é
descrita como um período duro, mas sem indicar o número de mortos. Aliás, o
manual não menciona o protesto na Praça Tiananmen”, afirma.
Eterno tabu: o 4 de Junho
Segundo o antigo director de
escola, os estabelecimentos de ensino de Macau utilizam normalmente livros
elaborados por editoras de Hong Kong, sendo que, entre estas, algumas incluem
nos seus conteúdos o 4 de Junho de 1989, dia em que o exército chinês carregou
sobre o movimento estudantil pró-democracia iniciado mais de um mês antes. O
número exacto de mortos nunca foi revelado oficialmente.
Em Macau, “especialmente as
escolas privadas dão liberdade aos professores para adicionar ou reduzir
conteúdos históricos. De facto, as escolas patrióticas não ensinam o 4 de
Junho, mas as escolas privadas, católicas ou cristãs sim”, adianta o professor,
adicionando que, nos últimos anos, muitas “escolas patrióticas” abandonaram os
manuais de Hong Kong para passarem a usar livros da China, nomeadamente da
Universidade de Jinan.
No entender de um outro
professor, que lecciona a disciplina de História, entrevistado pelo PONTO FINAL
e que também não quis ser identificado, o novo manual “não corresponde às
necessidades de ensino”. Segundo o docente, que lecciona há mais de 10 anos, e
que, actualmente, ensina numa escola chinesa localizada na parte norte da
cidade, “algumas palavras não são usadas de forma ajustada, o conteúdo é
incompleto, os professores têm de complementar muitas matérias para o conteúdo
ser global”. O professor entende que “falta incluir no manual as contribuições
de historiadores”, de maneira a adicionar pontos de vista diferentes. Na
história de Macau, o docente sugere inclusão de “características locais,
desenvolvimento da cultura diversificada, as relações com a China e o mundo,
porque Macau teve um papel no intercâmbio entre o mundo Oriental e Ocidental
por um longo período”, afirma.
Introdução de história de Macau
“é um avanço”
Na sua resposta ao PONTO FINAL, a
DSEJ explica que em 2017 incumbiu a elaboração dos manuais, à “People’s
Education Press”, que é uma “editora profissional e com experiência na
elaboração e publicação de materiais didácticos de História”, de compor uma
equipa para iniciar o trabalho de elaboração dos materiais didácticos, de
acordo com o ‘Quadro da organização curricular da educação regular do regime
escolar local’ e as ‘Exigências das competências académicas básicas’”. Em
simultâneo, “o grupo de apreciação organizado pela DSEJ e composto por
historiadores e pessoal docente de História locais contribuiu com opiniões
profissionais em termos de estrutura, estilo, conteúdo, redacção e formatação
de texto, entre outros aspectos”. A DSEJ prevê que no ano lectivo de 2019/2020
os materiais didácticos sejam alargados a outros níveis do ensino secundário.
Lam Fat Iam, director executivo
do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais do Instituto Politécnico de
Macau e presidente da Associação de História Educação de Macau, disse ao PONTO
FINAL que a associação a que preside foi solicitada pela DSEJ a colaborar na
elaboração dos manuais. Lam Fat Iam entende que “o conteúdo dos manuais cumpre
as exigências das competências académicas básicas”, apesar de reconhecer que
ainda são reduzidas as referências a Macau. Apesar de tudo, houve um avanço, no
entender da associação, que luta desde há anos pela inclusão da história de
Macau nos currículos escolares. “No início, quando estabelecemos as
exigências, discutimos amplamente a proporção, de maneira a haver um equilíbrio
entre história do mundo, história da China e história de Macau. A proporção da
história de Macau na organização curricular não é muita, mas houve um grande
avanço, porque antigamente não havia história de Macau”, explicou. Segundo o
investigador, os manuais abordam sobretudo os “últimos 400 ou 500 anos de
história de Macau”.
Para Lam Fat Iam, a opção por uma
editora estatal justifica-se porque “Macau não tem uma editora local para
redigir manuais escolares, por isso, as escolas usam os manuais de editoras de
outras regiões. A DSEJ ou algumas escolas já encomendaram a editoras a
elaboração de manuais. Este não é um caso especial”. Na opinião do
investigador, a editora à qual foram encomendados os manuais “é a mais
profissional na educação na China continental”. No entanto, destaca, “o mais importante
é melhorar os manuais através das opiniões de investigadores locais”.
Vocabulário desajustado
Para Cyrus Ao Ieong,
vice-presidente da Associação de História Educação de Macau e professor de
História na Escola Choi Nong Chi Tai, as expressões utilizadas pela editora
estatal de Pequim é a principal preocupação identificada, apesar de considerar
que os conteúdos cumprem as exigências das competências académicas básicas.
“Algumas palavras não são comuns para os alunos de Macau, por isso, esperamos
que alguns termos chineses possam ser alterados”.
O vice-presidente da Associação
de História Educação de Macau reconhece dificuldades em convencer a
editora estatal a aceitar todas as sugestões da parte de Macau. Por exemplo, na
secção que refere à Revolução Cultural, “como os manuais são redigidos pela People’s
Education Press, por isso, o número de mortes é mais sensível. O nosso grupo
inclui professores de escolas patrióticas, católicas e cristãs, que apresentou
algumas opiniões sobre o conteúdo desta parte à editora, mas como a People’s
Education Press é uma instituição da China continental, é difícil
convencê-la a aceitar as nossas opiniões”.
Associação quer introduzir
capítulo “Catolicismo em Macau”
Em relação ao 4 de Junho, “de
acordo com as exigências das competências académicas básicas, esta parte não é
um conteúdo necessário”, explica Cyrus Ao Ieong. “De facto, não tivemos a
ideia de incluir esta parte nos manuais. No entanto, apresentámos as nossas
opiniões sobre o papel do catolicismo em Macau, que achámos que é a parte que
falta nos manuais”, acrescentou.
Apesar de tudo, ao longo de um
ano, “a editora ouviu as nossas opiniões, o conteúdo alterou-se muito, os
manuais originais não eram assim, os manuais presentes já se aproximam mais à
situação de Macau”, disse.
No 10 de Junho, o secretário para
os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam, declarou à imprensa que já havia
dado instruções à DSEJ para alargar o painel de consultores, de maneira a
incluir historiadores portugueses e ouvir mais opiniões.
A DSEJ informou o PONTO FINAL
que, “de momento, antes das escolas começarem a utilizar os novos materiais no
ano lectivo de 2018/2019, a DSEJ continuará a recolher e ouvir ainda mais
opiniões e sugestões profissionais dos historiadores de Macau e de Portugal
para, após compiladas, as submeter à equipa de elaboração para servirem de
referência para a versão final experimental dos materiais didácticos”.
É preciso “contextualização com
visões comparativas”
Sem querer comentar os manuais, a
historiadora Tereza Sena afirmou que, numa perspectiva geral,
“independentemente da veracidade de determinados factos históricos, num manual
didáctico, e também num trabalho académico, é sempre necessária uma
contextualização, com visões contemporâneas, do ponto de vista de uma história
chinesa ou de uma história ocidental, o que é completamente diferente de uma
classificação de factos, de acordo com uma visão ou outra”. A historiadora
referiu que aquela questão já foi ultrapassada pela historiografia moderna nos
trabalhos de especialistas de história de Macau como Jin Guo Ping, Tang
Kaijian, Wu Zhiliang ou do sinólogo alemão Roderick Ptak, entre muitos outros,
“que já adoptam esta perspectiva de contextualização de visões diferentes do
mundo, noções essas que devem ser introduzidas num currículo escolar”. A
historiadora salienta que num manual “deve haver visões comparativas das
problemáticas (…), em vez de perspectivas historiográficas demasiado centradas
no seu próprio universo, quando aqui o que está em confronto são encontros
entre dois mundos, duas ordens mundiais, dois sistemas civilizacionais, duas
maneiras de olhar para a actividade comercial”. Sendo que há “historiadores
chineses, e há historiadores não-portugueses a colocar as coisas nestes termos”.
Apagar conteúdos “não é decisão
do secretário”
Entretanto, o secretário para os
Assuntos Sociais e Cultura anunciou no passado dia 13 de Junho que “a
associação dos portugueses a actividades de contrabando e corrupção não será
incluída na versão final dos manuais de história”.
Ontem, ao PONTO FINAL, o deputado
Sulu Sou disse que leu os manuais e que encontrou algumas partes referentes a
Macau envolvendo a presença portuguesa “bastante negativas”, mas que considera
desapropriado apagar o que foi escrito. “O secretário Alexis Tam disse que vai
eliminar essas partes, mas penso que isso não é adequado, porque o manual
escolar é um trabalho profissional, que deve envolver especialistas,
académicos, professores de história, pelo que acho que isso não deve ser
decidido pelo secretário”, afirmou.
(Alguns dos) Parágrafos da
polémica
“Desde o período intermédio do
reinado do Imperador Jiajing (1522-1566), na dinastia Ming, o comércio externo
desenvolveu-se rapidamente em Macau. As importantes rotas comerciais faziam-se
por: Macau – Goa – Lisboa, Macau – Nagasaki e Macau – Manila – México. O
comércio exterior de Macau caracterizou-se pela pirataria, e contrabando de
ópio e tráfico humano, bem como pelo não pagamento de direitos aduaneiros.
Portanto, devido à intervenção portuguesa, o comércio exterior de Macau durante
este período esteve sempre associado a violência e a saques”.
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“No início do século 16, os
portugueses romperam ao longo da rota recém-aberta na costa sudeste da China.
Quando o governo Ming rejeitou contactos oficiais, a Batalha de Tuen Mun e a
Batalha de Shancaowan eclodiram entre a China e Portugal. Os portugueses foram
derrotados, envolvendo-se em contrabando ilegal e pirataria na costa. Em 1554,
os portugueses conseguiram uma autorização para entrar nos portos de Guangzhou
e nas proximidades, subornando funcionários de Guangdong, e gradualmente os
comerciantes portugueses mudaram-se para Macau. Em 1572, os portugueses
começaram a pagar oficialmente uma renda anual ao governo chinês e alugaram
Macau como trampolim para actividades missionárias e comerciais na China até
1849, quando o governador de Macau, [Ferreira do] Amaral anunciou o fim do
pagamento da renda. Durante esse período, os governos Ming e Qing exerceram
efectivamente a sua soberania e governação sobre Macau”.
Nota: tradução livre do chinês
para inglês e do inglês para português.
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