Adelino Cardoso Cassandra | Téla
Nón | opinião
Quem olha, com criticismo
desejável e tentativa de compreensão dos fenómenos políticos e sociais que se
sucedem, uns aos outros, na nossa terra, nos últimos tempos, só pode ficar com
a sensação que, cada dia que passa, as coisas pioram e ganham contornos de
irreversibilidade. O autoritarismo aumentou e com ele, as perseguições
políticas, a censura, a falsidade, a bufaria e outros males que têm contribuído
para sufocar a nossa embrionária democracia.
Vivemos, neste momento, num país
onde impera o terror e a manigância. As pessoas estão, neste momento: mais
desconfiadas; evitam aproximar-se das outras; têm receio de partilhar ideias ou
projetos; fogem de um simples ato de socialização banal; arranjam mecanismos ou
códigos de conduta que repelem tentativas de aproximação; olham para todos os
lados, com um detalhe microscópico, antes de responderem a uma abordagem
simpática alheia; etc. Ainda ontem, estive a falar com um grande amigo meu, que
esteve no país, recentemente, e confirmou todos estes receios e comportamentos.
A pergunta que se pode fazer,
neste momento, é a seguinte: o que é que mudou, recentemente, no país, ao ponto
de estar a condicionar o comportamento das pessoas neste e outros âmbitos?
Enquanto a democracia é o
contexto ideal para a estabilidade das relações sociais e políticas entre os
cidadãos porque, atempadamente, todos conhecem as regras de jogo que a
conformam; um contexto de emergência de um projeto político que permite o
controlo autoritário sobre a vida pública e privada dos cidadãos, como aquele
que estamos a viver, momentaneamente, no país, pelo contrário, suscita o medo,
a indisponibilidade para reflexão e socialização com os outros, a desconfiança
e, até, a preocupação excessiva com aquilo que se escreve ou diz num círculo de
amigos.
É isto que está a mudar o
comportamento das pessoas, momentaneamente, em S.Tomé e Príncipe, sobretudo
daquelas que dependem, direta ou indiretamente, do poder instalado, decorrente
do propósito de reconfiguração da arquitetura do nosso Estado, em que o presidente
da república já nada vale, a Assembleia Nacional passou a ser, para além de um
centro de representação com competências para produção legislativa e de
fiscalização, um autêntico Tribunal Especial que julga e decidi casos como o da
cervejeira Rosema, a mando do primeiro-ministro, e o ministério público passou
a ser o braço armado do governo.
A nossa segurança, como entidade
comunitária está, neste momento, muito doente. Estamos a atravessar um momento
de (des) democratização acelerada, como eu tenho vindo a denunciar em múltiplos
artigos anteriores, que está a abalar os pilares do regime, trazendo consigo a
manifestação de atos de criminalidade incomuns na nossa terra, tendo como
consequência a lesão de bens jurídicos individuais, mas, sobretudo, de bens
jurídicos coletivos.
Neste contexto, quem garante o
respeito pelas liberdades individuais dos cidadãos se os próprios juízes do
Supremo Tribunal de Justiça são severamente castigados, por motivos
relacionados com o cumprimento das suas funções?
É neste clima de terror instalado
no país que o senhor primeiro-ministro aparece-nos na televisão dele, em
comício, sem qualquer contraditório, como seria de esperar, num registo usual
de vitimização, a informar-nos que ele foi o principal alvo de um processo, aparentemente
abortado, de assassinato, cujo objetivo era a subversão da ordem constitucional
vigente para que a oposição pudesse ganhar as próximas eleições.
Neste seu registo vitimizador, o
senhor primeiro-ministro declarou, ainda, que ele estava na posse de meios de
provas bastante fortes, relacionados com a referida intentona, e que na mesma
participariam algumas pessoas, incluindo estrangeiros, bem identificadas.
No mesmo dia que o senhor
primeiro-ministro fez o seu comício e perante a dúvida e incredulidade geral,
tendo em conta a cascata de acontecimentos, de caráter autoritário, que se vive
no país, promovidos pelo próprio poder instalado, que o senhor
primeiro-ministro é o máximo representante, apareceu nas redes sociais um
registo áudio, cujos promotores da sua difusão prometiam-nos, que, no conteúdo
do mesmo, existiria, inequivocamente, toda a prova sobre os factos que o senhor
primeiro-ministro nos declarara no seu comício na TVS.
Deixei tudo o que tinha para
fazer e fui ouvir, com toda a atenção desejável, o tal registo áudio que, nos
diziam, continha toda a prova do suposto assassinato premeditado contra a
pessoa do senhor primeiro-ministro, Patrice Trovoada, com objetivo de subversão
do regime constitucional vigente.
Ouvi o tal registo áudio uma vez
e juro que não descortinei, no conteúdo do mesmo, de forma perentória, nenhum
elemento de prova, compaginável com as fortes declarações prestadas pelo senhor
primeiro-ministro, na sua TVS, que denunciassem, inequivocamente, a existência
e veracidade do facto relatado.
Pensei, com toda a sinceridade,
que estava a utilizar um registo áudio, diferente daquele que me aconselharam a
ouvir, onde não estava o conteúdo da referida prova. Telefonei a um amigo e
colega que, prontamente, me informou que o registo era mesmo aquele que eu
ouvira anteriormente e, no entanto, por precaução, enviou-me um outro exemplar
do referido registo áudio. Fui ouvir, de novo, com toda a atenção o tal registo
áudio.
Para espanto meu, tratava-se,
efetivamente, do mesmo registo áudio que eu já tinha ouvido anteriormente.
Aquilo, perdoem-me as pessoas que estavam envolvidas naquele processo,
simbolicamente, mas parecia um diálogo entre bêbados, típico das nossas tascas,
onde um deles, mais bêbado do que o outro, monopolizou este mesmo diálogo, e
tentava convencer o outro, menos bêbado, a beber mais uns copos de vinho. Todo
o diálogo, estabelecido no referido registo áudio, e até algumas interjeições,
reiteradamente expressas por um dos intervenientes, passou-se, neste registo
simbólico referenciado que pode ser comparado a um diálogo entre bêbados.
Um plano de ação para assassinar
um primeiro-ministro, tendo, ainda, um contexto temporal curto e
pré-determinado, para a sua realização, não se faz daquela forma, típica de
taberna: com suposições; com um linguajar de convencimento de eventuais
parceiros, sobre o método a seguir, pouco ou nada assertivo ou, até,
especulativo; sem identificação clara de meios e responsáveis por todas as
atividades que, eventualmente, permitiriam a sua materialização; sob monopólio
discursivo vindo sobretudo de um dos intervenientes que, por sinal, não é
aquele que é catalogado como o seu cérebro ou principal responsável, estando
este, aparentemente, a ser impingido da bondade ou importância da iniciativa em
causa e, consequentemente, a ser, objectiva ou subjectivamente, induzido a
participar no referido diálogo.
Além de tudo isso, um plano de
assassinato do primeiro-ministro não se faz, sem um substrato organizativo
pré-elaborado, tendo em conta o contexto temporal curto para a sua
materialização (o primeiro-ministro seria assassinado aonde, quando, quem o
faria, onde é que os executores do plano se posicionavam para cumprirem a sua
função, qual o papel de agentes estrangeiros nesta trama, etc).
Tendo em conta, o clima de terror
que se instalou no país, decorrente do processo de (des) democratização
acelerada que estamos a viver, onde sobressai perseguições políticas, a
censura, o ódio, a falsidade, a bufaria, a incentivação de comportamento
denunciante e outros tiques pidescos, bem como o conteúdo insólito do referido
registo áudio, apresentado como prova do hipotético crime, de que fiz
referência anteriormente e, sobretudo, a disponibilidade e prontidão do senhor
primeiro-ministro para aparecer na sua TVS e fazer logo um comício sobre o
facto em causa, num registo exemplar de vitimização, sem sequer esperar pela
intervenção do poder judicial para explicação pública do caso em concreto, não
posso excluir, também, neste contexto analítico, a hipótese de se tratar de uma
trama, urdida pelo próprio poder instalado, para perseguir e prender os
opositores políticos.
Tendo em conta tudo aquilo que
tem acontecido, hoje em dia, em S.Tomé e Príncipe, onde até os juízes do
Supremo Tribunal de Justiça são perseguidos, humilhados e exonerados
compulsivamente, é perfeitamente normal que, com recursos a “agentes
provocadores”, sob tutela governamental, os opositores políticos sejam
estimulados ou induzidos a cometerem ou participarem num crime, verbalizando,
ou não, a sua disposição para o referido efeito, estando, contudo, sob controlo
de uma ou mais fontes de provas, como é o caso deste registo áudio, que
servirão como eventual garantia ou prova, exibida publicamente, como troféu
político, para uma campanha de vitimização que já começou. Em qualquer livro
sobre o populismo esta receita está lá explícita e, até, dá resultados, algumas
vezes. Só isso pode explicar a ida do senhor primeiro-ministro ao comício na
TVS, quando o caso ainda estava, aparentemente, sob inquérito judicial.
Quem faz o que o atual poder já
fez, atropelando tudo e todos, em prol do controlo autoritário sobre a vida
pública e privada dos cidadãos, desprezando os princípios basilares de um
Estado de Direito Democrático, não obstante as observações de instituições
internacionais como a União dos Advogados de Língua Portuguesa, a União
Internacional dos Juízes de Língua Portuguesa, do pai da nossa Constituição,
professor Jorge Miranda e demais instituições, nacionais e internacionais, está
em condições de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para a materialização
do seu objetivo maior, criando, com tal, condições para a destruição dos seus
principais adversários políticos.
Não posso excluir a hipótese de
que, Gaudêncio Costa poderá estar a ser, neste momento, mais uma vítima, como
foram os juízes do S.T.J, do que um potencial criminoso, tendo em conta todos
os pressupostos referenciados anteriormente. E mantenho esta posição até que o
senhor primeiro-ministro me demonstre, na sua TVS, como já fez anteriormente,
através de outros meios ou elementos de prova, de que a referida intentona, de
facto, existiu, e foi planeada, de forma voluntária, pelos protagonistas
referenciados.
Da mesma forma que o senhor
primeiro-ministro apareceu, de forma voluntária na TVS, a acusar um adversário
político de ter planos de o querer assassinar, fazendo toda a radiografia do
referido crime, é ele, e não o Tribunal, neste caso, que tem o ónus da prova,
ou seja, que tem a obrigação de provar tal facto, também num comício na TVS,
com novos elementos de provas, porque os que ele apresentou, até hoje, são
escassos e não me convenceram.
É que tudo, neste processo e
noutros, direta ou indirectamente relacionados, os acontecimentos e
procedimentos denunciam muitas estranhezas e levantam muitas preocupações e
interrogações.
Pode, por exemplo, a investigação
criminal, neste âmbito, estar sob alçada das forças de defesa e segurança e,
posteriormente, ser transferida para a polícia judiciária já com os elementos
de prova produzidos e identificados?
Em que condições foram produzidos
os elementos de prova que constam do referido processo, designadamente o
referido registo áudio?
Em que categoria e enquadramento
organizativo, no nosso ordenamento jurídico, podemos incluir o agente que
produziu a referida prova?
Que meios, utilizou o referido
agente, para a produção dos elementos da referida prova que, eventualmente, não
tenha colocado em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos
envolvidos?
Se, de facto, houve a
intervenção, neste processo, de um “agente provocador” que induziu o senhor
Gaudêncio Costa a cogitar, em associação com outros envolvidos, cometer o
referido crime, não estaremos em presença de um crime, ainda maior, cometido
por outrem, que colocou em causa a liberdade de vontade e de decisão do
referido cidadão?
Estaremos todos em liberdade e
segurança se, de facto, a investigação criminal passou a ser feita, neste
momento periclitante da nossa vida coletiva, por entidades que desconhecemos,
sem enquadramento legal neste âmbito, como sejam as forças de defesa e
segurança?
Por que razão não é o ministério
público, como órgão que deve dirigir qualquer investigação criminal, a nos
explicar, através de comunicados ou outros meios alternativos, os contornos da
referida investigação mas sim, o primeiro-ministro, em comício, através da TVS?
Por que razão, perante acusações
anteriores graves, produzidas por um cidadão nacional, relacionadas com a
materialização de um crime idêntico no nosso país, cujo nome do
primeiro-ministro aparecia como protagonista, o ministério público,
aparentemente, recusou agir e, agora, aparece num processo similar querendo
recorrer da decisão do juíz que decidiu mandar em liberdade, sob termo de
identidade e residência o cidadão Gaudêncio Costa?
A resposta a estas e outras
questões é que deveriam servir de referência e motivação para uma eventual
reforma da justiça na nossa terra porque, de facto, configuram reais
preocupações do contexto comunitário com o rumo que o país está a tomar e,
sobretudo, preocupações quotidianas das pessoas que procuram a referida Justiça
para a resolução dos seus problemas. A reforma de Justiça não pode servir,
consciente ou inconscientemente, para ajudar na subversão do regime e no
controlo autoritário, do poder vigente, sobre a vida pública e privada dos
cidadãos.
*Adelino Cardoso Cassandra, na foto.
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