Carvalho da Silva | Jornal de Notícias
| opinião
Foi anunciado que em finais de
junho a União Europeia (UE) tomaria decisões históricas a respeito do seu
futuro e em particular sobre o euro, capazes de resolver as deficiências da
moeda única e esconjurar crises futuras. Reparemos agora nos temas da agenda
que acompanha a convocação da reunião: (1) migrações; (2) segurança e defesa;
(3) emprego, crescimento e competitividade; (4) inovação e Europa digital,
orçamento de longo prazo da UE; (5) relações externas. Perguntar-me-ão, então
onde pára o euro? Um parágrafo adicional esclarece: "os líderes discutirão
também o Brexit (em formato UE 27) e a eurozona (em formato Cimeira do
Euro)".
Tal agenda significa que outras
questões urgentes se amontoaram, nomeadamente migrações, segurança e defesa,
relações com os EUA. Mas quer dizer também que temas estruturais basilares como
o euro continuam a ser evitados. Como conseguirão os dirigentes europeus
discutir os delicados pontos da agenda e ainda ter fôlego (nalguma ceia ou ao
pequeno-almoço reforçados?) para tomar decisões históricas sobre o euro?
Dir-se-á que na UE todas as
decisões são preparadas previamente e as cimeiras são um pró-forma. Se assim
for, e não há dúvida que andam por aí discussões sobre o euro, é muito
preocupante que essas discussões possam culminar em deliberações acerca das
quais ninguém, a não ser os habitantes do Olimpo europeu, foi ouvido ou achado.
Neste tempo que estamos a viver, há fortes razões para se duvidar que esta
cimeira se limite à verificação de consensos em todos os pontos da agenda, ou a
acrescentos de vírgulas no comunicado final. O que vai efetivamente ser
discutido e com que profundidade é, pois, desconhecido. E é difícil imaginar
uma ordem de trabalhos mais agreste e um contexto pior do que este para uma
mera discussão, quanto mais para tomar decisões nos vários pontos enunciados e
ainda quanto ao euro.
No quadro internacional
assistimos hoje a movimentações geoestratégicas carregadas de sombras e de
difícil perspetivação do rumo para que nos conduzem. Entretanto, a UE está prenhe
de contradições e cada vez mais desequilibrada, em resultado do reforço da
extrema-direita e do crescendo de compromissos do conservadorismo tradicional
com essa mesma extrema-direita. Trump não imaginava conquistar tantos
"aliados europeus" em tão pouco tempo.
A cimeira tem quase tudo para
correr mal. E correr mal, a respeito de decisões sobre o euro, pode significar
a adoção de mais alguns pequenos passos na direção da transferência de
soberania para a União, sem assunção coletiva de responsabilidades políticas e
financeiras. Vai-se consolidando o "nós mandamos, mas tu pagas" que
vem sendo posto em prática e continuará a existir na chamada União Bancária: o
tipo de "mais Europa" com que a Alemanha concorda. Pode representar,
também, um desacordo radical propiciador de condições para um colapso
desordenado de todo o edifício.
O que seria esta cimeira correr
bem neste contexto? Talvez um reconhecimento sensato de que a fuga para a
frente, quando as brechas da construção se alargam, apenas contribui para aprofundar
essas mesmas brechas e precipitar um resultado calamitoso, ou seja, o
reconhecimento de que a União Económica e Monetária, sobretudo num contexto de
agravamento das divergências políticas, sociais e económicas, não é reparável.
Ela transformou-se numa bomba-relógio que deve ser cuidadosamente manipulada e
desativada, dando lugar a um projeto que, sendo comum, assente num ordenamento
de cooperação entre povos e países, em regras e compromissos que permitam aos
governos nacionais disporem de capacidades e de instrumentos de políticas com
que possam efetivar projetos de desenvolvimento específicos de cada país,
exercer as suas responsabilidades e cumprir os mandatos para que foram eleitos.
Todos os grandes temas que
emergiram na agenda política nacional nas últimas semanas - limitações
orçamentais, saúde, educação, demografia, qualidade de emprego, inovação
tecnológica - só poderão ter resposta com políticas nacionais específicas que
certos constrangimentos europeus instituídos impedem. Realismo, hoje, é
reconhecer este facto. Precisamos de governação com pés bem assentes na terra.
* Investigador e professor
universitário
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