quinta-feira, 23 de agosto de 2018

A construção social da obesidade


Uma investigação estatística sobre o grande aumento de peso das populações ocidentais, em 40 anos, revela: as causas essenciais são invasão dos ultraprocessados e ideia de que engordar é culpa individual

George Monbiot | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Fernando Botero

Quando vi a foto, mal pude acreditar que era o mesmo país. O retrato da praia de Brighton, em 1976, estampada pelo Guardian algumas semanas atrás, parecia mostrar uma raça alienígena. Quase todo mundo era magro. Mencionei isso nas mídias sociais, e saí de viagem nos feriados. Quando voltei, encontrei as pessoas ainda debatendo o assunto. A discussão estava quente e me levou a ler os comentários. Como teremos mudado tanto, tão rápido? Para meu espanto, quase todas as explicações propostas revelaram-se falsas.

Lamentavelmente, não há no Reino Unido dados consistentes sobre obesidade anteriores a 1988, quando a incidência já estava aumentando bastante. Mas nos EUA os dados foram levantados bem antes. Eles mostram que, por acaso, o ponto de inflexão foi mais ou menos 1976. De repente, por volta do momento em que a foto foi feita, as pessoas começaram a tornar-se mais gordas, e desde então a tendência se manteve. A explicação óbvia, insistiam muitas daquelas pessoas que comentaram a foto, é que estamos comendo mais. Vários apontaram, não sem razão, que nos anos 1970 a comida era geralmente muito ruim. Era também mais cara. Havia menos restaurantes de fast food e as lojas fechavam mais cedo, de modo que se você perdesse seu chá ficaria com fome. Mas eis aqui a primeira grande surpresa: nós comíamos mais em 1976.

Segundo cálculos do governo, atualmente consumimos uma média de 2131 kcals [quilocalorias] por dia, um número que parece incluir doces e álcool. Mas em 1976 consumíamos 2280 kcal, excluindo álcool e doces, ou 2590, quando os incluímos. Isso pode ser verdade? Não encontrei razão para duvidar desses números.

Outros insistiram que a causa é o declínio do trabalho manual. De novo, isso parece fazer sentido, mas, novamente, não pode ser sustentado pelos dados. Um artigo publicado no Jornal Internacional de Cirurgia afirma que “adultos trabalhando em serviços manuais não especializados têm probabilidade mais de 4 vezes maior de ser classificados como obesos mórbidos, quando comparados com profissionais especializados.

E quanto a exercícios voluntários? Um monte de gente argumentava que, como dirigimos, ao invés de caminhar ou andar de bicicleta, ficamos parados diante de nossas telas e fazemos nossas compras online, exercitamo-nos muito menos do que antes. Parece fazer sentido – e então, lá vai a próxima surpresa. Segundo um estudo de longo prazo da Universidade Plymouth, a atividade física das crianças é hoje a mesma de 50 anos atrás. Um artigo do Jornal Internacional de Epidemiologia revela que, corrigido o tamanho do corpo, não há diferença entre a quantidade de calorias queimadas pelas pessoas nos países ricos ou pobres, onde a norma continua a ser a agricultura de subsistência. Propõe não haver relação entre atividade física e ganho de peso. Vários outros estudos sugerem que exercitar-se, embora crucial para outros aspectos da saúde, é de longe menos importante que a dieta, para regular nosso peso. Alguns sugerem que não tem papel nenhum, uma vez que, quanto mais nos exercitamos, mais famintos ficamos.

Outras pessoas apontaram fatores mais obscuros: infecção por adenovirus-36, uso de antibiótico na infância e produtos químicos disruptivos do sistema endócrino. Embora haja evidências sugerindo que todos eles têm seu papel, e ainda que possam explicar algumas das variações no ganho de peso por pessoas diferentes com dietas semelhantes, nenhum deles parece ser suficientemente poderoso para explicar a tendência geral.

Então, o que aconteceu? A luz começa a surgir quando se olham os dados sobre nutrição mais detalhadamente. Sim, comíamos mais em 1976, mas comíamos de modo diferente. Hoje, compramos metade do leite fresco por pessoa que comprávamos; mas cinco vezes mais iogurte, três vezes mais sorvete e – veja só – 39 vezes mais sobremesas lácteas. Adquirimos metade dos ovos que adquiríamos em 1976, mas um terço a mais de cereais para o café da manhã e duas vezes mais cereais para o lanche; metade das batatas inteiras, mas três vezes mais batatas fritas. Embora nossa compra de açúcar tenha caído fortemente, o açúcar que consumimos em bebidas e doces provavelmente disparou (só há números sobre compra a partir de 1992, quando estava aumentando rapidamente. Talvez, já que em 1976 consumíamosapenas 9 kcal por dia em forma de bebida, ninguém imaginou que valesse a pena levantá-los). Em outras palavras, as oportunidades de sobrecarregar nossos alimentos com açúcar aumentaram. Como alguns especialistas propuseram há muito tempo, essa parece ser a questão.

A mudança não aconteceu por acaso. Como argumentou Jacques Peretti em seu filme O homem que nos tornou gordos, temos sido goleados deliberada e sistematicamente. A indústria alimentícia investiu pesadamente na criação de produtos que usam açúcar para driblar nossos mecanismos de controle do apetite, embalando-os e promovendo-os de modo a romper o que resta de nossas defesas, inclusive pelo uso de odores subliminares. Emprega um exército de cientistas e psicólogos para nos levar a comer mais junk food (e portanto menos alimentos integrais) do que necessitamos, enquanto seus publicitários usam as últimas descobertas da neurociência para romper nossa resistência.

Ela contrata cientistas corruptos e thinktanks  para nos confundir a respeito das causas da obesidade. Sobretudo, assim como a indústria do tabaco fez com o cigarro, promove a ideia de que manter o peso é uma questão de “responsabilidade pessoal”. Depois de gastar bilhões para anular nossa força de vontade, culpa-nos por não queimar calorias fazendo exercícios.

A julgar pelo debate desencadeado pela foto, tudo isso funciona. “Não há desculpa. Assumam responsabilidade por sua própria vida, gente!”. “Ninguém te força a comer junk food, é uma escolha pessoal. Não somos ratos de laboratório.” “Às vezes penso que ter um sistema de saúde gratuito é um erro. Todo mundo poder ser preguiçoso e gordo, porque há uma sensação de que se tem o direito de ser cuidado.” A emoção da desaprovação coincide desastrosamente com a propaganda da indústria. Temos prazer em culpar as vítimas.

Ainda mais alarmante, de acordo com um artigo do Lancet, mais de 90% daqueles que elaboram políticas públicas acreditam que “motivação pessoal” é “uma influência forte ou muito forte no aumento da obesidade”. Essas pessoas não explicam quais os mecanismos que levaram 61% dos ingleses que estão acima do peso ou obesos a perder sua força de vontade. Mas essa explicação improvável parece imune a evidências.

Talvez isso aconteça porque a gordofobia é frequentemente uma forma disfarçada de esnobismo. Na maioria das nações ricas, as taxas de obesidade são muito mais altas na base da pirâmide socioeconômica. Elas estão fortemente relacionadas com a desigualdade, o que ajuda a explicar por que a incidência no Reino Unido é maior do que na maioria das nações da Europa e da OCDE. A literatura científica mostra como baixo poder aquisitivo, estresse, ansiedade e depressão associados com status social inferior torna as pessoas vulneráveis a más dietas.

Assim como as pessoas sem emprego são culpabilizadas pelo desemprego estrutural, e as pessoas endividadas são culpabilizadas pelos custos impossíveis da moradia, as pessoas gordas são culpabilizadas por um problema social. Sim, a força de vontade precisa ser praticada – pelos governos. Sim, precisamos de responsabilidade pessoal – por parte de quem elabora as políticas públicas. Sim, o controle necessita ser exercitado – sobre aqueles que descobriram nossas fraquezas e as exploram impiedosamente.

Sem comentários:

Mais lidas da semana