País registra nove ataques a bala
contra integrantes de minorias étnicas em 50 dias. Onda de agressões se
intensificou desde a posse do novo governo. Ministro do Interior declarou que
"racismo é invenção da esquerda".
O estrondo de uma arma de ar
comprimido que no início de julho perturbou a calma da arborizada
estrada provincial, primeiramente provocou incredulidade – nem todo mundo em
Forli, no centro da Itália, presta muita atenção aos eventos locais.
Hugues Messou, natural da Costa
do Marfim, de 34 anos, não teve como escapar do fato: ele estava a caminho
de casa de bicicleta quando o tiro o atingiu no abdômen. Tendo vivido
na cidade por mais de dez anos, nunca a considerara um lugar perigoso, nem mesmo
hostil, apesar de uma ou outra palavra racista lançada contra ele.
"O carro parou por uns
segundos na minha frente, mas não consegui ver exatamente quem estava dentro.
Eram pelo menos duas pessoas, por volta dos 30 anos, talvez mais velhos",
conta.
No dia seguinte, ele fez um
boletim de ocorrência na delegacia. Há câmeras estrada abaixo, a cerca de 200 metros do local do
incidente. Até hoje, o costa-marfinense não teve novidades sobre as
investigações, e, até a data de publicação desta reportagem o departamento de
polícia local não respondeu aos pedidos de comentários da DW.
"Quem fez isso, saiu de casa
com a intenção de atirar numa pessoa negra", diz ele. "Era tarde da
noite, e aconteceu duas vezes no espaço de dois dias."
Dois dias antes desse ataque, uma
nigeriana fora atingida por um projétil disparado de uma lambreta numa rua
próxima. No entanto, ela não registrou queixa.
"Eu estava conversando no
bar sobre o que tinha me acontecido e foi quando [o outro ataque] veio à
tona", conta Messou. "Se eles estão usando armas de fogo, a coisa é
preocupante."
"Teste de espingarda",
"brincadeira", "um pombo"
Nos últimos 50 dias, ao menos
nove integrantes de minorias étnicas foram feridos a bala na Itália. Em oito
das agressões foram usadas espingardas de ar comprimido – cujas balas redondas
e de metal podem causar lesões graves – e na outra, uma arma de fogo.
Num dos casos, um menino da etnia
nômade rom de um ano recebeu um disparo nas costas. O atirador, um funcionário
público, disse à polícia que atirou "para testar a espingarda".
O episódio mais recente ocorreu
um Pistoia, na região da Toscana: dois garotos de 13 anos atiraram num homem do
Gâmbia. Segundo a agência de notícias italiana Ansa, ao serem identificados
pela políci,a ambos afirmaram ter se tratado de uma simples brincadeira,
"sem motivação racial nem política". Essa versão foi aceita pela
opinião pública em geral.
Em 11 de junho, dois refugiados
do Mali, residentes de um centro de recepção próximo a Nápoles, relataram à
mídia local que haviam sido alvejados a partir de um carro que passava, cujos
ocupantes gritavam slogans de apoio ao ministro do Interior Matteo Salvini, do
partido direitista Liga.
Um mês depois, em Latina, ao sul
de Roma, dois nigerianos levaram tiros de ar comprimido disparador de um carro.
Os agressores foram mais tarde identificados e respondem por lesões corporais
com agravante de discriminação racial.
No fim de julho, um operário
cabo-verdiano trabalhava num andaime na mesma cidade quando foi atingido nas
costas por um tiro disparado de uma varanda próxima. Segundo a imprensa local,
o atirador contou aos investigadores que pretendia atirar num pombo.
No início de agosto, três tiros
de arma de fogo foram disparados por dois desconhecidos de lambreta contra um
vendedor de rua senegalês de 32 anos. Apenas uma delas o acertou,
fraturando-lhe o fêmur.
Retórica de incitação racista
Serge Diomande integra o comitê
do conselho de cidadãos em Forli, além de ser presidente da Associação Nacional
Além das Fronteiras (Anolf). O costa-marfinense, que vive na Itália há quase
dez anos e trabalha como guardador em um armazém, considera difícil ignorar o
que tem acontecido.
"Até que [os responsáveis]
sejam apanhados, vamos ficar sempre na dúvida. Queremos saber quem e por quê.
Isso nunca aconteceu aqui. Forli sempre foi uma cidade muito aberta",
diz. "Os partidos políticos não deveriam brincar com a migração. É como
brincar com a cultura italiana."
Desde que assumiu em 1º de junho,
o governo de coalizão entre a Liga, de extrema direita, e o populista Movimento
Cinco Estrelas tem se recusado a permitir o desembarque de navios de
resgate de migrantes no Mediterrâneo. Salvini anunciou, ainda, que aceleraria
as deportações de ilegais e que as comunidades rom deveriam ser
recenseadas, e seus membros estrangeiros, deportados.
O governo tem respondido às
acusações de que suas políticas e retórica instigam medos e legitimam a
violência, negando que haja algum problema. Segundo Salvini, racismo é
"uma invenção da esquerda".
O jornalista Luigi Mastrodonato
documentou mais de 30 agressões físicas a membros de minorias no
país desde o princípio de junho. O site antirracismo Cronache di Ordinario
Razzismo (crônicas de racismo comum), da ONG Lunaria, publicou um relatório
computando 169 incidentes de discriminação nos primeiros três meses de 2018.
"Motivos fúteis"
Não há dados policiais sobre
crimes de ódio na Itália. Os mais recentes – do Escritório para as Instituições
Democráticas e os Direitos Humanos (ODIHR), que monitora esses delitos entre os
países-membros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) –
são de 2016, quando a organização contabilizou 803 crimes de ódio com registro
na polícia. A maior parte se origina em racismo ou xenofobia.
Quando a polícia investiga as
causas, o cunho racista nem sempre é reconhecido, e muitas vezes é minimizado,
principalmente na presença de outros motivos possíveis ou de motivação
múltipla.
Um dia após a eleição na Itália,
o vendedor senegalês Idy Diene foi morto em Florença por um homem que declarou
que pretendia cometer suicídio, mas em vez disso decidiu voltar sua arma contra
um transeunte qualquer. A polícia rapidamente classificou o homicídio como
"por motivos fúteis".
Em Aprilia, ao sul de Roma, um
marroquino foi morto no início de agosto, numa perseguição de carro, por três
homens. Estes negaram qualquer motivo racial, alegando ter acreditado que ele fosse
um ladrão e decidido tomar a justiça nas próprias mãos. As circunstâncias do
crime estão sendo investigadas.
"Com o passar do tempo,
estamos vendo um processo de legitimação crescente de um comportamento que, no
melhor dos casos, é de hostilidade e intolerância declaradas contra
minorias", aponta Grazia Naletto, presidente da ONG Lunaria, que há dez
anos vem documentando e conscientizando sobre o racismo no país.
"As notícias das últimas
semanas são preocupantes, independentemente dos números, pois estamos falando
de agressões físicas, em alguns casos, graves. Em alguns deles, as autoridades
encarregadas das investigações não reconheceram o elemento racial", diz.
"Com certeza há no país um clima cultural, social e político que tende a
incentivar certas condutas sociais. Temos visto como elas se tornam agressivas."
Ylenia Gostoli (de Roma / av) |
Deutsche Welle
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