Considerar nossas instituições
maduras a ponto de conter o autoritarismo é apostar alto demais, como mostram
os fatos ocorridos na Alemanha quando Hitler foi nomeado chanceler
Samuel Pinheiro Guimarães |
Outras Palavras
Fernando Schuller, jornalista e
cientista político, diz hoje
[23.10] na coluna de Bernardo Melo Franco, em O Globo, que as instituições
serão capazes de limitar Jair Bolsonaro, se eleito.
Veja a gênese da barbárie no
artigo do historiador alemão Volker Ullrich, publicado em fevereiro de 2017 no
jornal Die Zeit.
“Espere calmamente”
Como jornalistas, políticos, escritores e diplomatas tiveram responsabilidade na nomeação de Adolf Hitler para chanceler.
Há razão para se preocupar?
“Não”, pensou Nikolaus Sieveking, funcionário do Arquivo de Economia
Internacional de Hamburgo, Alemanha. “Acho que considerar a chancelaria de
Hitler como um evento extraordinário é infantil o suficiente para deixar esse
sensacionalismo para seus leais seguidores”, escreveu ele em seu diário em 30
de janeiro de 1933.
Assim como Sieveking, muitos
alemães não reconheceram inicialmente essa data como um ponto de virada
dramático. Poucos sentiram o que a nomeação de Hitler como chanceler realmente
significava, e muitos reagiram ao acontecimento com uma indiferença chocante.
O chanceler do gabinete
presidencial havia mudado duas vezes em 1932. Heinrich Brüningwas foi
substituído no início de junho por Franz von Papen que, por sua vez, foi
substituído no início de dezembro por Kurt von Schleicher. As pessoas quase se
acostumaram com esse ritmo. Por que o governo de Hitler deveria ser algo mais
do que apenas um episódio? Nos noticiários de Wochenschau* exibidos nos
cinemas, a informação sobre a posse do novo gabinete foi a última, depois dos
grandes eventos esportivos. Isso, apesar do fato de Hitler ter explicado
claramente em “Mein Kampf” e em incontáveis discursos antes de 1933 o que
queria fazer uma vez no poder: abolir o “sistema” democrático da Alemanha de
Weimar, “erradicar” o marxismo (pelo que ele queria dizer social-democracia e
comunismo) e “remover” os judeus da Alemanha. Quanto à política externa, não
fazia segredo do fato de que queria revisar o Tratado de Versalhes e que seu
objetivo de longo prazo era a conquista do “Lebensraum no Oriente”.
A camarilha do presidente alemão
Paul von Hindenburg, que o colocou no poder por meio de uma série de intrigas,
concordou com os objetivos de Hitler de impedir o retorno à democracia
parlamentar, cortar as correntes do Tratado de Versalhes, armar maciçamente os
militares e, mais uma vez, fazer da Alemanha o poder dominante na Europa.
Quanto ao resto das intenções declaradas de Hitler, seus parceiros da coalizão
conservadora estavam inclinados a descartá-las como mera retórica. Uma vez no
poder, argumentavam, ele se tornaria mais razoável. Eles também acreditavam que
haviam “enquadrado” Hitler de uma forma que permitiria que suas ambições pelo
poder e a dinâmica de seu movimento fossem mantidas sob controle. “O que vocês
querem?”, perguntou aos críticos o vice-chanceler Papen, o verdadeiro arquiteto
da coalizão de 30 de janeiro. “Eu tenho a confiança de Hindenburg! Em dois
meses, teremos empurrado Hitler para tão longe que ele vai gritar.”, assegurava
Papen.
A sede de poder de Hitler não
poderia ter sido mais subestimada. Os nove ministros conservadores do chamado
“Gabinete de Concentração Nacional” claramente tinham mais peso do que os três
Nacional-Socialistas. Mas Hitler também tratou de garantir que dois ministérios
principais fossem preenchidos por seus homens: Wilhelm Frick assumiu o
Ministério do Interior do Reich Alemão e Hermann Göring tornou-se ministro de
gabinete sem pasta além de ministro do Interior da Prússia, adquirindo poder
sobre a polícia no maior estado da Alemanha¬ – importante condição prévia para
o estabelecimento da ditadura nazista.
O magnata da mídia e chefe do
Partido do Povo Nacional da Alemanha, Alfred Hugenberg, foi visto como o homem
forte no gabinete. Ele recebeu o Ministério da Economia e Agricultura do Reich
e da Prússia. O novo superministro supostamente teria dito ao prefeito de
Leipzig, Carl Goerdeler, que havia cometido o “maior erro” de sua vida ao se
alinhar ao “maior demagogo da história mundial”, mas ainda hoje é difícil
acreditar que tenha falado isso. Hugenberg, como Papen e os demais ministros
conservadores, estava convencido de que poderia fazer Hitler abandonar suas
próprias idéias e seguir a orientação dos demais.
Representantes de grandes
empresas compartilhavam a mesma ilusão. Em um editorial no Deutsche
Allgemeine Zeitung, que tinha laços estreitos com a indústria pesada, o
editor-chefe Fritz Klein escreveu que trabalhar junto com os nazistas seria
“difícil e cansativo” mas que as pessoas tinham que ousar “dar o salto” nas
trevas “porque o movimento de Hitler tornou-se o ator político mais forte da
Alemanha. O chefe do partido nazista teria agora que provar “se ele realmente
tinha o que era necessário para se tornar um estadista”. O mercado de ações
também não parecia assustado.As pessoas estavam esperando para ver o que aconteceria.
Os conservadores que ajudaram
Hitler a ascender ao poder e seus opositores no campo republicano estavam
errados em sua avaliação da verdadeira divisão do poder. Em 31 de janeiro,
Harry Graf Kessler, diplomata e patrono das artes, relatou ter conversado com
Hugo Simon, ex-colega do ministro das Relações Exteriores Walther Rathenau,
assassinado em 1922. “Ele vê Hitler como prisioneiro de Hugenberg e Papen.
“Aparentemente, Kessler via da mesma forma, porque apenas alguns dias depois
profetizou que o novo governo não duraria muito, já que só era mantido pelos
“exageros e intrigas” de Papen ”, e argumentou: “Hitler já deve ter percebido
que foi vítima de uma fraude. Ele está preso, de mãos e pés, a esse governo e
não pode se mover nem para frente nem para trás”.
“Os sinais estão apontando para
uma tempestade”
Em seu livro “Desafiando Hitler”,
escrito no exílio na Inglaterra em 1939, o jornalista Sebastian Haffner
relembrou o “horror gélido” que sentiu quando soube da nomeação de Hitler
enquanto trabalhava como funcionário do tribunal de Kammergericht, em Berlim,
seis anos antes. Por um momento, ele “sentiu fisicamente (Hitler) o cheiro de
sangue e sujeira”. Mas na noite de 30 de janeiro, ele discutiu os pontos de
vista do novo governo com seu pai, um educador progressista liberal, e eles
rapidamente concordaram que, embora o gabinete pudesse causar muitos danos, ele
não poderia ficar no poder por um tempo muito longo. “Um governo profundamente
reacionário, com Hitler como seu porta-voz. Além disso, não difere muito dos
dois governos que sucederam Brüning. Não, considerando todas as coisas, este
governo não foi motivo de alarme.”
Os grandes jornais liberais
também argumentaram que nada realmente terrível aconteceria. Theodor Wolff, o
editor-chefe do Berliner Tageblatt, via o gabinete como a
personificação do que os grupos políticos de direita unidos queriam desde sua
reunião em Bad Harzburg
em 1931. Ele abriu seu editorial em 31 de janeiro escrevendo: “Foi alcançado.
Hitler é o Chanceler do Reich, Hugenberg é o ditador da economia e as posições
foram distribuídas como os homens da ‘Frente Harzburger’ queriam.” O novo
governo, disse ele, tentaria qualquer coisa para “intimidar e silenciar os
oponentes”. A proibição do Partido Comunista estava na agenda, assim como a
redução da liberdade de imprensa. Mas mesmo a imaginação desse jornalista de
reconhecida visão não foi longe o suficiente para conceber o poder de uma
ditadura totalitária. Ele argumentou que havia uma “fronteira que a violência
não iria atravessar”. O povo alemão, que sempre se orgulhou da “liberdade de
pensamento e de expressão”, criaria uma “resistência emotiva e intelectual” e
sufocaria todas as tentativas de estabelecer uma ditadura.
No Frankfurter Zeitung, o
editor de política Benno Reifenberg expressou dúvidas de que Hitler teria
“competência social” para o cargo de chanceler, mas achava que a
responsabilidade do ofício o transformaria de modo a que passasse a ser
respeitado. Como Theodor Wolff, Reifenberg descreveu Hitler como “um julgamento
errado e sem esperanças de que nosso país acreditasse que um regime ditatorial
poderia ser forçado a isso”. “A diversidade do povo alemão exige democracia”,
escreveu ele.
Julius Elbau, editor-chefe
do Vossischer Zeitung, mostrou menos otimismo. “Os sinais estão apontando
para uma tempestade”, escreveu ele em seu primeiro comentário. Embora Hitler
não tenha conseguido alcançar o poder absoluto que buscava – “não é um gabinete
de Hitler, mas um governo Hitler-Papen-Hugenberg” – esse triunvirato estava de
acordo, apesar de todas as suas contradições internas, que queria uma “ruptura
completa com tudo o que veio antes”. Dada essa perspectiva, o jornal advertiu
que isso constituía “uma experiência perigosa, que só se pode observar com
profunda preocupação e com a mais forte suspeita”.
A esquerda também estava
preocupada. Em seu apelo em 30 de janeiro, o líder do Partido Social-Democrata
e seu grupo parlamentar no Reichstag pediram aos militantes que dessem inicio à
“luta com base na Constituição”. Cada tentativa do novo governo de prejudicar a
Constituição, conclamavam, “será recebida com a mais extrema resistência da
classe trabalhadora e de todos os elementos da população que amam a liberdade”.
Com a insistência estrita na
legalidade constitucional, a liderança do Partido Social Democrata (SPD)
ignorou o fato de que os governos anteriores já tinham esvaziado a Constituição
e que Hitler não hesitaria em destruir seus últimos vestígios.
O Partido Comunista da Alemanha
(KPD) também fez um erro de julgamento ao pedir uma “greve geral contra a
ditadura fascista de Hitler, Hugenberg e Papen”. Dado que havia 6 milhões de
desempregados na Alemanha, poucos tinham o desejo de entrar em greve. O chamado para
construir uma frente comum de defesa também não era muito popular entre os
socialdemocratas, que os comunistas haviam difamado como “fascistas sociais”
pouco tempo antes.
A ideia de agir fora do
parlamento estava muito longe das mentes dos sindicatos. “Organização – não
demonstração: essa é a palavra da hora!” , declarou Theodor Leipart, chefe do
Sindicato Geral da Alemanha, em 31 de janeiro. Na opinião dos representantes do
movimento social-democrata dos trabalhadores, Hitler era um capanga das velhas
elites de poder socialmente reacionárias – grandes proprietários de terra da
região leste do Elba e a indústria pesada da Renânia-Vestefália. Em uma
palestra no início de fevereiro de 1933, o legislador do SPD Reichstag, Kurt
Schumacher, descreveu o líder nazista como sendo apenas uma “peça de
decoração”. “O gabinete tem o nome de Hitler no mastro, mas na realidade o
gabinete é Alfred Hugenberg. Adolf Hitler pode fazer os discursos, mas
Hugenberg vai agir.”
Os perigos que emanavam de Hitler
não poderiam ter sido interpretados de forma mais grotesca. A maioria dos
principais social-democratas e sindicalistas cresceram no Kaiserreich alemão.
Eles poderiam imaginar uma repressão semelhante à lei anti-socialista de
Bismarck, mas não que alguém tentasse seriamente destruir o movimento dos
trabalhadores em sua totalidade.
Hitler precisou de apenas cinco
meses
O fato de a nomeação de Hitler
significar que um antissemita fanático chegou ao poder deveria ter deixado os
judeus da Alemanha, acima de tudo, nervosos. Mas esse não foi o caso. Em uma
declaração feita em 30 de janeiro, o presidente da Associação Central dos
Cidadãos Alemães da Fé Judaica disse: “Em geral, hoje, mais do que nunca,
devemos seguir a diretiva: espere calmamente”. Disse ainda que, embora se
observe o novo governo “com profundas suspeitas”, o presidente Hindenburg representa
a “influência calmante” e por isso não havia razão para duvidar de seu “senso
de justiça” e “lealdade à constituição”. Como resultado, acrescentou, deve-se
estar convencido de que “ninguém ousaria” “tocar nos nossos direitos
constitucionais”. E de acordo com editorial do jornal judeu Jüdische Rundschau,
publicado em 31 de janeiro, “há poderes que ainda estão despertos no povo
alemão que se levantam contra as políticas antijudaicas bárbaras”. Levaria
apenas algumas semanas até que todas essas expectativas se mostrassem
ilusórias.
Diplomatas estrangeiros também
fizeram falsas suposições sobre a natureza da mudança de poder. O cônsul geral
americano em Berlim, George S. Messersmith, acreditava que era difícil fazer
uma previsão clara sobre o futuro do governo de Hitler e falava de sua
suposição de que representava um fenômeno de transição no caminho para uma
situação política mais estável. Para o embaixador britânico Horace Rumbold,
parecia que os conservadores tinham conseguido cercar os nazistas com sucesso.
Mas ele também previu que em breve haveria conflitos entre os parceiros de
coalizão porque o objetivo de Papen e Hugenberg de restaurar a monarquia não
poderia ser conciliado com os planos de Hitler. Ele recomendou que o Ministério
das Relações Exteriores adotasse uma atitude de esperar para ver o novo
governo.
O embaixador francês Andre
François-Poncet chamou o gabinete Hitler-Papen-Hugenberg de “experiência
ousada”, mas também sugeriu que seu governo permanecesse calmo e aguardasse
novos desenvolvimentos. Quando encontrou Hitler na noite de 8 de fevereiro,
durante uma recepção realizada pelo presidente alemão para o corpo diplomático,
ficou aliviado. O novo chanceler parecia “aborrecido e medíocre”, uma espécie
de Mussolini em miniatura.
O enviado suíço, Paul Dinichert,
ouviu falar da nomeação de Hitler enquanto almoçava com algumas “personalidades
alemãs elevadas”. Ele descreveu as reações em seu despacho para Berna assim:
“As cabeças estavam abaladas. Quanto tempo isso pode durar?” “Poderia ter sido pior.”
Dinichert reconheceu, corretamente, que Papen era o mestre de marionetes por
trás da instalação do novo gabinete. Mas, como a maioria dos outros
comentaristas, errou ao descrever o resultado: “Hitler, que por anos insistiu
em governar sozinho, foi forçado, cercado ou constrangido (faça a sua escolha),
junto com dois de seus discípulos, entre Papen e Hindenburg. ”
Raramente um projeto político foi
revelado tão rapidamente como uma quimera como a idéia de que os conservadores
“domariam” os nazistas. Em termos de astúcia tática, Hitler se elevava acima de
seus aliados e oponentes. Em pouco tempo, ele os ultrapassou e os empurrou
contra a parede, desalojando Papen de sua posição preferencial com Hindenburg e
forçando Hugenberg a renunciar.
Hitler precisou de apenas cinco
meses para estabelecer seu poder. No verão de 1933, os direitos fundamentais e
a Constituição foram suspensos, os estados sofreram intervenção, os sindicatos
foram esmagados, os partidos políticos banidos ou dissolvidos, a imprensa e o rádio
enquadrados e os judeus despojados de sua igualdade perante a lei. Tudo o que
existia na Alemanha fora do Partido Nacional-Socialista havia sido “destruído,
disperso, dissolvido, anexado ou absorvido”, concluiu François-Poncet no início
de julho. Hitler, afirmou, “ganhou o jogo com pouco esforço”. “Ele só teve que
soprar – e o edifício da política alemã entrou em colapso como um castelo de
cartas.”
* Cinejornal passado antes do
início da projeção do filme. O equivalente alemão do antigo Canal 100 brasileiro.
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