sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

ROJAVA, UMA EMBRULHADA À MEDIDA DOS ALUCINADOS LABIRINTOS DE TRUMP!

Martinho Júnior | Luanda

1- Enquanto as maiores potências estratégicas involucradas no teatro operacional da Síria procuram manter-se à distância uma da outra (Rússia e Estados Unidos), as potências tácticas (Irão, Turquia, Síria e Israel) embrulham-se à medida dos alucinados labirintos propiciados pelos falcões de Trump e seus “pares”, os falcões sionistas!

A Rússia manobra geoestrategicamente sem equívocos e consolidada em função da defesa do estado sírio contra o que resta do Estado Islâmico e contra algumas bolsas dos sucedâneos da Al Qaeda, mantendo-se numa espectativa reservada em relação a Rojava e, por tabela em relação às contradições entre a Turquia e Estados Unidos (Israel na sombra).

Os Estados Unidos estão enleados em labirínticas ambiguidades, bem à medida da degradante imagem internacional do presidente Trump, enleamentos do Pentágono e da CIA que agora se estendem ao próprio carácter da NATO, sobretudo em função das tensões contra os interesses turcos na região, mas com os sentidos orientados a partir de Rojava, em direcção à Turquia, ao Irão, ao Afeganistão e à Ásia Central.

Essas ambiguidades permitem um sistema de transvases entre os diversos grupos rebeldes e suas milícias, misturando e dando de novo as cartas, conforme as conveniências, desde o Estado islâmico até ao Exército Libre da Síria.

Há coerência geoestratégica de relacionamentos, diplomática, de inteligência e militar das linhas e das acções do lado russo na Síria, se tivermos em conta quanto a sua perspectiva dá seguimento às vitórias conseguidas no Cáucaso (Chechénia e Geórgia), indispensáveis para o delineamento da “rota da seda”, o que não acontece com as linhas e as acções dos Estados Unidos que tentam recuperar-se das desconecções provocadas pelo caos e pelo terrorismo de suas iniciativas anteriores, recorrendo aos falcões de Israel numa perspectiva que se esvai num imenso labirinto, com os curdos no fulcro da desagregação artificiosa que procuram arquitectar e injectar.

2- A Síria, potência táctica decisiva e “dona do terreno”, está agora mais empenhada em destruir as bolsas da Al Qaeda em Idlib e Alepo, de forma a guardar para o fim as questões que se prendem a Rojava, particularmente a norte do rio Eufrates, na espectativa de assim reduzir o sistema evasivo de transvases.

Isso irá reforçar a sua posição nas conversações (Genebra, Astana e Sochi), com o campo rebelde a fragilizar-se irremediavelmente no terreno e na via diplomática.

Com esse objectivo há uma pequena guerra de movimentos contínuos dentro e em torno das bolsas, num conjunto de manobras que podem demorar alguns meses pois os agrupamentos terroristas receberam reforços em efectivos externos (incluindo restos do Estado Islâmico) e meios militares, que lhes conferem outro tipo de disponibilidades, distanciando-se das concepções tácticas do Daesh.

A Turquia tem contudo pressa em destruir o curdistão sírio (Rojava), começando por ameaçar atacar Aflin, o que pressupõe também um jogo de espelhos militares com seus vizinhos do sul…

Os Estados Unidos estão a construir um “exército de fronteira” de 30.000 homens em Rojava, integrando iniciativas “privadas”, com mercenários de várias nacionalidades, aproveitando as correntes anarquistas que provenientes do exterior se foram aliando aos curdos sírios.

Parte do armamento, foi injectado a partir de bases estado unidenses na Itália, via Jordânia.

As hesitações comuns são notórias entre sírios e turcos, em termos de definições de sua recíproca operacionalidade, mas isso não está a fazer parar as fortes unidades sírias que operam em Idlib e Alepo, acompanhadas pela aviação de combate russa.

A sul nas proximidades do Golan, a Síria está a consolidar também posições em conjunto com o Hezbolah, limitando as movimentações de agrupamentos rebeldes ou de terroristas e com os israelitas comprimidos nas suas posições terrestres uma vez que estão a perder pouco a pouco o domínio do espaço aéreo, ou a encarar as suas possibilidades aéreas agora com muito mais reserva.

3- A Turquia está incomodada sobretudo de duas maneiras:

Geoestrategicamente com o jogo da meio alucinada e decrépita conveniência dos Estados Unidos, agora patronos de forçada desagregação na região, remetidos ao serviço da geoestratégia sionista e reconstituindo sucessivamente agrupamentos evasivos;

Tacticamente com a rebeldia de Rojava, capaz de suportar manobras em reforço do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, banido na Turquia) muito para dentro de território turco.

A manobra geoestratégica dos Estados Unidos arrastando consigo a coligação, combina com o esforço táctico de Rojava e isso provoca um aumento de tensões contra os turcos fragilizando a própria NATO, o que pode levar à saída turca da aliança, reforçando o cinturão turco-iraniano.

A Turquia indicia sentir-se numa posição instável em conformidade com um período de transição com muitas indecisões, mas mais cedo que tarde vai ter de encontrar melhor solução em relação ao seu contencioso para com os curdos e a Síria…

4- Enquanto tudo isso se desenrola alucinadamente sob nossos olhos, labirinto atrás de labirinto, o presidente Putin faz o que ele consegue fazer como ninguém: espera sentado pelo amadurecimento dos contenciosos tácticos, a fim de aprofundar a crise geoestratégica dos Estados Unidos, que aos olhos de muitos parece ser já irreversível no enorme continente euroasiático, pois o sionismo por si tem limitações!...

…Em breve a China entrará em jogo dando início às projecções de recuperação económica da Síria e o tabuleiro geoestratégico inclinar-se-á de forma ainda mais visível, em benefício das projecções dos que pretendem levar por diante a “rota da seda”!...

Martinho Júnior - Luanda, 18 de Janeiro de 2018

Ilustrações:
- Mapa do labirinto táctico do norte da Síria, onde o Estado Islâmico perdeu espaço vital e está no estertor, enquanto subsistem as bolsas precárias de curdos (Rojava) e de agrupamentos da Al Qaeda;
- Manobras de combate em torno de Idlib (13 de Janeiro de 2018);
- Foto dum exemplar capturado, pertencente a um enxame de drones que foi neutralizado pela Força Aérea-Espacial russa;

A consultar de Martinho Júnior:
A terceira vitória militar das Forças Armadas Sírias – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/07/a-terceira-vitoria-militar-das-forcas.html
Assalto a Raqqa põe a descoberto arrogância dos Estados Unidos e dos seus vassalos – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/06/assalto-raqqa-poe-descoberto-arrogancia.html

Outras consultas:
Ataques aéreos e terrestres: mídia revela planos da Turquia na Síria – https://br.sputniknews.com/oriente_medio_africa/2018011610288504-turquia-siria-curdos/
Aviación rusa pulveriza posiciones rebeldes en el sur de Idlib – http://www.hispantv.com/noticias/siria/365546/rusia-ataca-rebeldes-idlib-ejercito-sirio
Damasco advierte a Israel de ‘graves secuelas’ de ataques a Siria –  http://www.hispantv.com/noticias/siria/365080/ataque-aereo-israel-damasco-respuesta
Legitimizing Terrorism: Inviting Al Qaeda “Moderates” to Washington for “Consultations” – https://www.globalresearch.ca/legitimizing-terrorism-inviting-al-qaeda-moderates-to-washington-for-consultations/5625397
How the Mainstream Media Whitewashed Al-Qaeda and the White Helmets in Syria – https://www.globalresearch.ca/how-the-mainstream-media-whitewashed-al-qaeda-and-the-white-helmets-in-syria/5624930
U.S. Creates Kurdish/Terrorist “Border Force” in Syria to Define Borders of Kurdistan – https://www.globalresearch.ca/u-s-creates-kurdishterrorist-border-force-in-syria-to-define-borders-of-kurdistan/5626420
Gran número de extranjeros se unen a terroristas en Idlib, Siria – http://www.hispantv.com/noticias/siria/365599/extremistas-terroristas-extranjeros-ofensiva-idlib
O projecto francês de reconhecimento do «Rojava» – http://www.voltairenet.org/article199316.html
US to Set Up 30,000-strong “Border Force” in Syria – https://www.globalresearch.ca/us-to-set-up-30000-strong-border-force-in-syria/5626331
“Two Channels”, Pentagon and CIA: Don’t Be Fooled, the CIA Was Only “Half the Problem” in Syria – https://www.globalresearch.ca/dont-be-fooled-the-cia-was-only-half-the-problem-in-syria/5602010
‘Intervención turca en Siria crea más tensión y enfrentamientos’ – http://www.hispantv.com/noticias/siria/365969/intervencion-turquia-afrin-tension-kurdos
Terroristas en Siria obtuvieron tecnología para lanzar ataques con drones en cualquier país – https://actualidad.rt.com/actualidad/259397-terroristas-siria-drones-ataque
Un avión de EE.UU. patrullaba el Mediterráneo durante el ataque del EI con drones en Siria –  https://actualidad.rt.com/actualidad/259471-avion-eeuu-ataque-drones-siria
Análise aos drones que atacaram Hmeimim – http://www.voltairenet.org/article199381.html

O Blockchain contra a ditadura das finanças


Yanis Varoufakis, economista rebelde, assegura: os bitcoins são bolha; mas a tecnologia por trás deles pode ajudar as sociedades a libertarem-se dos banqueiros e corruptos

Entrevista a Tom Upchurch, no Wired | Tradução Hugo Albuquerque e Marco Guasti | em Outras Palavras

Quando conheci Yanis Varoufakis em  2014, ele era um economista altamente respeitado, embora relativamente desconhecido. Naquela época, o preço do Bitcoin flutuava em torno dos US$ 440. Três anos depois, sua carreira seguiu uma trajetória similar à da valorização do Bitcoin. Ambos têm experimentado meteóricas ascensões, marcadas por muito drama e volatilidade. Varoufakis foi empurrado aos holofotes quando tornou-se ministro das finanças da Grécia. Confrontou o programa de austeridade levado adiante pela Troika [articulação entre Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Europeia, que gerou um organismo informal de intervenção na União Europeia depois da crise de 2008]. Hoje ambiciona reformar a União Europeia. Enquanto isso, o preço do Bitcoin ultrapassou, há duas semanas, US$ 20 mil pela primeira vez.

Varoufakis pode ter sido um dos primeiros líderes políticos a explorar o uso de pagamentos baseados em blockchain para uma economia nacional. No auge da crise financeira da Grécia, ele desenvolveu um plano para criar um sistema de pagamentos paralelo Peer-to-Peer [par a par, espécie de arquitetura de rede informacional na qual não existe a hierarquia entre servidor e cliente] baseado no blockchain. Mas ele quer deixar um ponto claro: “Eu nunca fiquei impressionado pelo Bitcoin em si; no entanto, desde o começo, estou dizendo que o blockchain é uma bela solução para problemas que nós nem sequer imaginamos ainda”.

Como o preço do Bitcoin continua flutuando, a moeda continua sob uma onda de críticas. Varoufakis não é menos crítico em relação às criptomoedas, mas por outros motivos que os argumentos expressados geralmente.
Bitcoin é uma “bolha perfeita”

Citando a bolha financeira holandesa do século XVII, causada pelas tulipas, Varoufakis vê a valorização do Bitcoin como “uma perfeita bolha-tulipa”. Sua explicação é simples: “Apenas olhe os dois gráficos. O gráfico um traz a evolução do preço em dólares do Bitcoin, que tem crescido exponencialmente. O gráfico dois expressa o número de transações e a quantidade de bens e serviços vendidos e comprados por Bitcoins”. A justaposição entre os dois gráficos sugere que o preço do Bitcoin está muito inflado em relação ao seu uso real. Isso leva Varoufakis à conclusão que, “sem uma sombra de dúvida, a valorização consiste em uma bolha perfeita.”

O que está direcionando a crença no bitcoin? Algumas pessoas alegam que ele  é um porto seguro comparado às instáveis moedas nacionais, particularmente as que têm sido infladas por meio deQuantitative Easing [ou QE, algo como “flexibilização quantitativa”, um sistema de criação automática de dinheiro novo gerado por meio de uma ordem de um autoridade monetária]. Mas Varoufakis é rápido em rejeitar essa narrativa. O fato é que outros ativos seguros, como o ouro e o dólar, não estão acompanhando a selvagem valorização do bitcoin. Para Varoufakis, isso é uma clara indicação de que os investidores não estão correndo para investir em ativos fixos. Ele argumenta: “Se houvesse uma correlação entre os preços do ouro e do bitcoin, então seria clara a existência, por parte dos investidores, de um movimento de fuga, de moedas variáveis para ativos fixos. Mas isso não está acontecendo.”

Na visão de Varoufakis, o que está realmente acontecendo é a formação de uma clássica bolha auto-alimentada. Isso pode ser explicado por meio do pensamento de uma das influências intelectuais primárias de Varoufakis, o economista britânico John Maynard Keynes. Keynes estudou como a irracionalidade e as emoções guiam as decisões de investidores quando tomados por  febre especulativa, ganância e soberba. Varoufakis acredita que a valorização do bitcoin está assentada pela mesma exuberância: “Como Keynes argumentou, esse é o tipo de bolha que se forma quando a opinião média do público está tentando adivinhar qual será a opinião média do público a respeito de algo”. Esse jogo autorreferente é o que continua guiando de forma errática o preço do bitcoin. Mas sobre adivinhar quando essa bolha explodirá, Varoufakis é inflexível: “Em sistemas dinâmicos não-lineares, a possibilidade de se prever quando uma bolha explodirá é zero.”

Embora possa ser impossível prever o seu estouro, Varoufakis não está preocupado com o risco de bolha do bitcoin desencadear uma crise financeira mais ampla. Apesar da atenção da mídia e de uma rápida taxa de crescimento, o tamanho do mercado da moeda continua minúsculo em comparação ao setor financeiro geral. A capitalização do mercado de bitcoins equivale a aproximadamente 0,25% do mercado de ações global (que é de US$ 73 trilhões), 0,083% do mercado imobiliário global (de US$ 217 trilhões) e 0,033% do mercado global de derivativos (de US$ 544 trilhões).

É improvável que o Bitcoin cause o efeito dominó que as Obrigações de Dívida de Garantia (CDOs) e Swaps de Incumprimento de Crédito (CDSs) causaram durante a crise financeira de 2008. Varoufakis sustenta que foi a interconexão de CDOs e CDSs com quase todos os outros produtos do setor financeiro que causou uma crise financeira generalizada em 2008. Ainda assim, ele adverte: “Estou preocupado e ouço muitos ruídos sobre a criação de novos instrumentos financeiros baseados em bitcoin, incluindo CDOs. Se isso crescer com o ímpeto que vimos em 2007, provavelmente teremos as mesmas preocupações, mas não acho que isso vá acontecer.”

A Fantasia do Dinheiro Apolítico

Os críticos do Bitcoin tendem a se ater às limitações técnicas da tecnologia; seu gasto energético, sua estrutura anárquica, sua velocidade de transação mais lenta e o anonimato do usuário. Varoufakis concorda que existem inúmeras falhas de design na moeda. Dentre elas: “O fato que não há controles, nem um sistema democrático de pesos e contrapesos sobre seu funcionamento, nem nenhuma maneira de salvaguardar as transações financeiras por meio de algum tipo de apólice de seguros para aqueles que sejam prejudicados.” Mas sua crítica central gira em torno do que ele chama de “a fantasia do dinheiro apolítico”.

Para Varoufakis, o dinheiro é inerentemente político. As decisões sobre emitir dinheiro ou não, sobre quanto é distribuído e quem o recebe, têm consequências políticas significativas, beneficiando certos segmentos sociais em detrimento de outros. A característica central do bitcoin — não ser administrado por um Banco Central ou estar sujeito a uma autoridade competente — significa que a responsabilidade por sua distribuição é obscura. Isso pode ter profundas implicações políticas e sociais em tempos de crise.

Para entender o que Varoufakis quer dizer por “natureza política do dinheiro”, considere como os governos respondem às crises financeiras. Quando uma tempestade relevante ocorre, ela é normalmente causado pela inadimplência de dívidas em massa e interconectadas. Essas dívidas provocam o colapso da economia, o que faz com que uma grande parte da oferta de dinheiro desapareça efetivamente. Com o dinheiro esvaindo-se, os governos têm de escolher se o repõem ou não. Escolher se vão, ou não, imprimir e injetar mais dinheiro na economia torna-se uma decisão política com repercussões políticas. Como Varoufakis lembra, “as autoridades políticas podem escolher transferir o peso de uma crise para os devedores, e geralmente os devedores mais fracos e mais pobres. Neste caso, efetivamente, estão redistribuindo poder e riqueza contra os membros mais fracos da sociedade.”

Se a decisão for a de restabelecer a oferta monetária, como em 2008 através de QE, a maneira pela qual esse dinheiro será canalizado através da economia também influenciará a economia política. Na opinião de Varoufakis, o QE foi projetado para beneficiar as grandes corporações. Se o projeto fosse auxiliar as opções alternativas — como a criação de um novo banco de público, dedicado financiar investimentos em Educação, Saúde ou Infra-estrutura –, as decisões teriam repercussões políticas muito diferentes. Para Varoufakis, “essas decisões são fundamentalmente políticas e alteram a economia política e a distribuição de renda de uma sociedade. Você acaba tomando decisões políticas, querendo ou não, mesmo quando opta por não fazer nada – o que também é uma decisão política”.

Para Varoufakis, no momento em que você adota a filosofia fundamental do bitcoin, que define a quantidade de dinheiro de forma separada ao ciclo econômico, da economia e do processo político, você “torna a moeda exógena a qualquer coisa que tenha a ver com o nosso sistema de tomada de decisões coletivas. Você está tomando uma decisão política na qual, em tempos de crise, a sociedade opta por direcionar poder e riqueza para os criadores [desse dinheiro] e para os membros mais ricos da sociedade”. Assim, ao remover a criação de dinheiro dos sistemas de tomada de decisões humanas, o algoritmo do bitcoin corre o risco de congelar, e até mesmo acentuar, as desigualdades atuais de riqueza.

Como um economista inspirado nas teorias de Karl Marx e John Maynard Keynes, Varoufakis preocupa-se principalmente com a distribuição de riqueza e o impacto que isso tem sobre as relações entre credores e devedores. E se alguém projetasse um algoritmo que não só controlasse a produção de moeda (como o bitcoin), mas também a distribuição de dinheiro? Se um algoritmo pudesse ser projetado para redistribuir a riqueza de forma mais equitativa, isso aliviaria as preocupações de Varoufakis com sistemas técnicos que operam fora dos processos humanos de tomada de decisão?

Mesmo que tal algoritmo pudesse ser projetado, Varoufakis insiste que “a democracia e o processo democrático, na minha opinião, são insubstituíveis”. Isso ocorre porque os humanos nunca estabeleceram uma noção precisa e definida de justiça, razoabilidade ou igualdade. Mesmo no caso da redistribuição da riqueza, existem várias teorias concorrentes de como fazê-lo. Em consequência, as sociedades nunca concordarão perfeitamente com um processo apolítico, algorítmico e técnico, para redistribuir a riqueza. Como Varoufakis advertiu: “Não podemos terceirizar as discussões sobre o que é adequado, o que é justo, o que é razoável, o que é certo, para algum algoritmo, para qualquer algoritmo — nem mesmo para o algoritmo mais fascinantemente brilhante. Estes sempre serão o resultado do debate, do diálogo, da ‘Ágora’ na antiga tradição grega. De sentar-se e discutir até o sexo dos anjos — não há escapatória disso”.

Apesar das críticas de Varoufakis ao bitcoin, as criptomoedas estão ganhando força. Os países que enfrentam crises, como a Venezuela, estão começando a recorrer a elas, como um substituto das suas moedas nacionais em dificuldades. Varoufakis acredita que o bitcoin pode substituir as moedas nacionais flutuantes no futuro próximo? “É perfeitamente viável que uma pequena nação possa adotar uma moeda cuja oferta monetária não possa ser manipulada ou controlada. Mas a verdadeira questão é se isso é desejável. Quanto a esta questão, eu sou categoricamente contra”.

No caso da Venezuela, Varoufakis aconselha: “A Venezuela deve resolver seus intermináveis assuntos políticos antes de começar a pensar em bitcoin”. A aproximação entre o governo e a oposição deve vir primeiro, pois sem ela a polarização na sociedade venezuelana torna impossível qualquer sistema monetário. Mais uma vez, Varoufakis enfatiza o primado da política e as limitações das soluções técnicas para os problemas políticos. “Não esqueçamos que nossas economias de mercado exigem um grau de consenso político e legitimidade para funcionar. E, sem isso, não há solução técnica que possa enfrentar em uma crise como essa na Venezuela”, pensa o economista.

Alguns entusiastas do bitcoin sugeriram que a moeda poderia, um dia, desafiar o sistema global da reserva do dólar, sobre o qual o poder econômico da Casa Branca se baseia. Mas, novamente, Varoufakis vê essa visão como pura fantasia. “O bitcoin nunca prejudicaria o privilégio exorbitante do dólar dos EUA ou de qualquer outra moeda apoiada pela força”, diz ele. Em sua visão, as moedas são sustentadas não apenas pelo soft power das instituições, mas também pelo hard power das estruturas militares geopolíticas. Como ele explicou: “Se você for um rei do petróleo saudita ou um industrial da China ou da Coréia, desejará aplicar seu dinheiro em títulos e ativos lastreados na moeda da superpotência que tem o poder militar e a força geopolítica para sustentar sua própria moeda”.

Blockchain e o Futuro da Europa

Embora Varoufakis reconheça as limitações do bitcoin e de outras soluções técnicas para problemas políticos, ele também vê potencial nas tecnologias blockchain. Para ele, “o algoritmo que opera por trás do bitcoin chamou minha atenção desde o início. Considero que esta é uma tecnologia excepcional”.

Ainda em 2012, Varoufakis cogitava usar o blockchain para ajudar a resolver os problemas financeiros da Europa. Poucos dias após ser nomeado ministro das Finanças da Grécia, em 2014, seu programa anti-austeridade deparou-se com uma ameaça direta da Troika: fechar os bancos da Grécia. Sem sistema bancário, o país travaria. Para combater essa ameaça, Varoufakis desenvolveu um plano audacioso para manter o sistema financeiro do país funcionando.

Varoufakis propôs a criação de uma alternativa, um sistema de pagamentos Peer-to-Peer baseado no blockchain. Isso romperia com a intermediação da Troika e dos mercados monetários no financiamento da Grécia. No entanto, sem o dinheiro proveniente da Troika, era preciso criar um sistema de pagamentos paralelo, que alavancasse os tributos que todos os cidadãos e empresas da Grécia precisam pagar, como uma nova forma de dinheiro. Ele batizaria isso de “dinheiro fiscal”.

Para entender como o dinheiro fiscal funciona, imagine que uma empresa farmacêutica na Grécia fosse credora do Estado. Devido aos constrangimentos da crise, pode ser que demorasse anos para ser paga em euros normais, provenientes do Banco Central. E se houvesse uma opção alternativa? E se o Estado grego criasse uma conta de reserva para a empresa sob seu número de registro tributário, na qual seriam depositados créditos fiscais de um milhão de euros? Este IOU [”I Owe You”, espécie de compromisso informal de pagamento de dívida assinado pelo ministro das finanças] também poderia ser usado pela empresa para pagar outras organizações e indivíduos dentro do país.

Um dos aspectos mais disruptivos desse plano, que não foi realizado, seria habilitar o Estado para emprestar diretamente aos cidadãos e vice-versa [ou seja, dispensando os bancos]. Com isso, Varoufakis estava tentando usar novas tecnologias digitais, como o blockchain, para eliminar a intermediação das autoridades de empréstimos europeias e construir novas relações de empréstimo entre cidadãos, empresas e o Estado.

O risco que este sistema enfrentaria seria a ameaça de corrupção e o subsequente declínio da confiança pública nas autoridades, que Varoufakis admite ser “muito baixa” em um país como a Grécia. Por exemplo: e se as autoridades gregas abusassem desses créditos tributários e começassem a distribuir esse novo “dinheiro fiscal” para aliados e amigos próximos? É ai que Varoufakis viu o potencial do blockchain. “Se o sistema de pagamentos fosse baseado no blockchain, isso permitiria a combinação perfeita do anonimato com a transparência, e uma relação com o valor total das transações da moeda. O blockchain superaria o problema da confiança como o conhecemos”.

Para Varoufakis, aqui reside o grande potencial do blockchain. Não só tem a capacidade de eliminar intermediários como, também, podemos melhorar a transparência geral dos sistemas. Não se engane, Varoufakis não acredita que o blockchain irá resolver completamente o problema da corrupção. Na opinião dele, “todo sistema financeiro é usado e abusado para propagar a corrupção. A nota de € 500 é ironicamente chamada de “al-Qaeda” — uma ferramenta “perfeita” para a máfia e para o terrorismo”. Varoufakis acredita que o que devemos fazer é tentar melhorar tecnologias que nos permitam limitar a corrupção. Na opinião dele, “o blockchain tem muitas qualidades e capacidades que podem nos ajudar a limitar esse abuso.”

Ao projetar futuros sistemas digitais, como o blockchain, Varoufakis exige “coordenação” e “abertura” entre tecnólogos, designers e cidadãos. Ele também aconselha que as organizações “façam o contrário do que o Vale do Silício está tentando fazer, que é assegurar o fluxo de lucro, tentando criar direitos de propriedade sobre tudo que fazem”. No entanto, quando se trata do debate sobre se os blockchains permanecerrão públicos (como o bitcoin e o ethereum) ou privados, ele prevê uma mistura de sistemas baseados em blockchains públicos, consorciados e privados. De acordo com Varoufakis, “qualquer ferramenta útil deve ter um uso em todos os níveis: privado e público”. E ele prevê que o blockchain será usado pelos Bancos Centrais para criar moedas nacionais; pelos bancos privados e empresas para agilizar negociações e pelas cooperativas para pagamentos e transações internas.

Olhando para o futuro, Varoufakis está engajado na causa de uma União Europeia nova e reformada. Sua organização, DIEM25, tem como objetivo criar um sistema europeu menos desigual. Na sua opinião, “as estruturas federais são essenciais — são como os alicerces de um edifício”. Mas atualmente elas atentam apenas ao comércio, aos padrões industriais, aos padrões ambientais e, claro, à moeda. Para Varoufakis, a Europa precisa de uma união política, fiscal e constitucional completa. Caso contrário, “se não tivermos o todo, estaremos sob constante ameaça de um colapso”.

O blockchain tem certo espaço na visão de Varoufakis para renovar uma Europa menos desigual. Idealmente, ele seria usado para criar um sistema monetário de dois níveis. Os Estados membros individuais avançariam em direção a uma versão blockchain do “dinheiro fiscal” de Varoufakis. Em cima disso, o Banco Central Europeu (BCE) criaria uma moeda digital abrangente a nível europeu. “Meu sonho para a reconfiguração monetária da União Européia, em particular para a zona do euro, é composto por estados-nações lastreados em blockchain, dinheiro fiscal denominado em euro, existindo sob o manto de um euro lastreado em um amplo blockchain”, teoriza o grego economista.

Tecnologias como o blockchain também podem ajudar a satisfazer a visão de Varoufakis de uma Europa que é simultaneamente homogeneizada o suficiente para enfrentar os grandes problemas (como o sistema bancário, a redistribuição fiscal e a pobreza) e descentralizada para as decisões mais corriqueiras, do dia a dia. Na verdade, a DIEM25 está convidando os europeus a “imaginar a União Europeia, não como uma união de governos, mas como uma união de cidades e de regiões, onde o poder é simultaneamente descentralizado e a resolução de problemas básicos comuns é feita a nível mais amplo, a nível europeu”.

O blockchain pode desempenhar um papel na divulgação desta visão, mas como Varoufakis confessou: “Eu tenho que dizer que não sou muito otimista quanto à capacidade da inovação tecnológica, por si só, possa mudar o curso da história”. Para Varoufakis, a política e as pessoas vêm primeiro.
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Texto publicado originalmente no blog da Autonomia Literária

ALEMANHA | O jovem que desafia Schulz e Merkel


Kevin Kühnert tem 28 anos e lidera a ala jovem social-democrata. Sua rejeição a uma repetição da grande coalizão na Alemanha pode levar a novas eleições, à queda do presidente da legenda e ao fim da era Merkel.

Aos 28 anos, o líder da ala jovem do Partido Social-Democrata (SPD) talvez seja uma figura improvável para liderar uma revolução política. Mas apesar das pressões, de dentro e de fora de seu partido, para que desista de fazer oposição à formação de uma nova grande coalizão com os conservadores de Angela Merkel, Kevin Kühnert continua apresentando suas armas.

"Você não consegue achar ninguém que esteja empolgado com a ideia de fazer parte de outra grande coalizão”, disse Kühnert nesta quinta-feira (17/01), se referindo ao clima entre seus correligionários. Ele prometeu continuar  encorajando seus colegas de partido a não aprovarem o pré-acordo de coalizão, na convenção especial do SPD agendada para este domingo em Bonn.

Os 600 delegados do congresso, incluindo de 80 a 90 Jusos (como é chamada a ala jovem do SPD), têm autoridade para aprovar ou rejeitar o início formal de negociações para coalizão com os conservadores de Merkel. Se os delegados votarem pelo não, provavelmente isso acarretará, além de novas eleições, a renúncia do presidente do SPD e ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, e, possivelmente, o fim da era Merkel.

Também pode levar a outro desastre eleitoral para o SPD, que amarga atualmente 18,5% nas pesquisas de intenção de voto (queda sensível, se comparada aos 24,6% obtidos nas últimas eleições, que já representaram um revés).

Kühnert diz estar disposto a enfrentar todos esses riscos – que não podem ser considerados insignificantes – para que o SPD volte a ser competitivo e retorne a seus princípios de esquerda, que ele considera negligenciados na aliança com Merkel.

"O SPD está em uma situação desagradável", avalia Kühnert.  "Não importa o que fazemos, as pessoas vão se sentir ofendidas."

Ele avalia que o resultado da convenção social-democrata de domingo, da qual dependem os rumos políticos da Alemanha, "está completamente em aberto”. Segundo o jovem político, existe uma chance realista de que ele consiga vencer, impondo uma derrota a Schulz.

Depois que o SPD obteve o pior resultado de sua história, nas eleições de setembro passado, o candidato a chanceler derrotado Martin Schulz anunciou que o partido não renovaria sua parceria com Merkel e que iria para a oposição.

Mas Schulz mudou o tom no final de novembro. Depois que os conservadores não conseguiram fechar um pacto com verdes e liberais, ele aceitou negociar uma grande coalizão.

Kühnert se tornou chefe dos Jusos (jovens socialistas) em novembro passado, pregando o fim da grande coalizão desde seus primeiros momentos como líder da ala jovem do SPD. Talvez tenha sido por isso que ele tenha sido eleito com 75% dos votos chefe do grupo partidário.

Deutsche Welle

ALEMANHA | Ninguém mais quer brincar com a Angela


Marko Langer | opinião

Temos muito a agradecer a ela, mas a verdade é que a Angela não consegue mais formar maioria no Parlamento. O tempo dela passou, opina o jornalista Marko Langer.

Pode-se mesmo, em tom sério, escrever por estes dias uma declaração de amor aos social-democratas alemães? A este pobre, maltratado e depenado SPD, que vai de um recorde negativo ao outro? A esta trupe em que a esquerda não sabe o que a direita pensa? Alguém consegue realmente achar estupendo, por exemplo, o que estão fazendo o presidente dos jovens socialistas e todos os outros correligionários que não têm mais saco para a "Groko" [grande coalizão] e querem exatamente o oposto do que o chefe deles quer?

Eu consigo! Talvez seja esse meu amor pela contradição, pela oposição. Eu acho estupendo o que está acontecendo no SPD. Nada de "só o que o chefe manda", de jeito nenhum. Eu admito: qualquer empresa iria à falência se cada funcionário resolvesse fazer o que bem entendesse. Isso é anarquia! Lindo!

Por outro lado, quem está sentada naquela grande casa (chamada Chancelaria Federal), no endereço Willy-Brandt-Strasse 1 (esse, aliás, era um social-democrata), é Angela Merkel, e ela vai tocando de forma interina o governo interino da Alemanha. Alguns contemporâneos dizem que isso bem que poderia ficar assim. Afinal, essa física com PhD conseguiu passar superbem pela crise do euro, a crise bancária, a crise grega etc e tal.

Sim, sim, tudo verdade. Só que isso é passado! Agora temos, por exemplo, a crise dos refugiados. E também um pouquinho de crise da democracia. Afinal, 92 extremistas de direita estão sentados na bancada da AfD no Bundestag e esperam de forma disciplinada e coesa que, na próxima vez, os eleitores digam: ah, até que eles não são tão maus assim. E a senhora Weidel anda sempre tão bem vestida. Brrrr, só de pensar já fico com calafrio.

E para essas crises, a louvável chanceler e presidente da CDU não tem resposta alguma. E muito menos para as aposentadorias irrisórias, o ritmo vagaroso da infraestrutura digital e o preço impagável dos aluguéis nas grandes cidades. Já a rainha da política das mãos em forma de diamante repetiu seu gesto típico após as 24 horas da reunião de encerramento das sondagens com os social-democratas na última semana, como se dissesse "bom, vamos ver o que acontece agora".

Desculpe, mas nossa chanceler não pode continuar assim! Não somos um experimento físico, no qual vê-se quais são as reações no final. Merkel escreveu certa vez uma tese sobre, entre outras coisas, o "mecanismo das reações de desintegração". Não entendo o conteúdo, mas essa formulação aparece já no título da tese. Reações de desintegração: é o que estamos vendo também na política.

E o pérfido nisso tudo é: sempre os outros é que são os culpados! Quando fracassam as sondagens para a coalizão Jamaica, aquela opereta de sacada, quem é o culpado: Christian Lindner! Quando os democrata-cristãos não encontram uma abordagem comum para o problema dos refugiados, quem é o culpado? Horst Seehofer. E quem será o culpado caso o SPD decida não participar da ação "precisamos urgentemente de uma Groko porque senão não conseguimos formar um governo"? Exatamente: o Schulz é o culpado. Ou o Gabriel. Ou a Nahles. Na verdade, tanto faz. Só a chanceler é que não é.

Angela Merkel não quer um governo de minoria? Então que desista! Será que ela, na situação atual, obteria uma maioria se se apresentasse à reeleição perante o Bundestag? Eu não apostaria nisso. Reações de desintegração, como já dito acima.

Pode ser que, no caso de uma nova eleição, o SPD caia para 18%. Também não é nada improvável que Martin Schulz não permaneça mais por muito tempo presidente desta orgulhosa legenda. E é verdade também: o SPD não está exatamente louco pra governar, muito antes pelo contrário. Se tivesse ido de forma sincera e honesta às sondagens, o partido teria dito: "Sim, formamos uma coalizão – sob uma condição: Merkel tem que sair!"

Mas provavelmente Schulz, o Triste, e Nahles, a Robusta não apresentaram tal exigência. E agora assistem às reações de desintegração de sua base interna de poder. Depois desta semana sofrida e depois de um congresso provavelmente muito agitado no próximo domingo, em Bonn, pode ser que a liderança do partido receba, a duras penas, um aval para as negociações de coalizão. Mais tarde, o triste Martin e a robusta Andrea terão que apresentar o resultado para votação dos 440 mil membros do partido. Vocês também querem, não querem?

Então: de um lado, a anarquia. E do outro? É um tolo aquele que se deixar levar por esse pérfido jogo de poder de Merkel. As coisas são diferentes na Alemanha desde 24 de setembro de 2017. Temos seis bancadas no Parlamento. E se todos fossem francos, pelo menos quatro dessas bancadas deveriam perceber: ninguém mais quer brincar com a Angela! Nós, alemães, temos muito a agradecer a ela. Mas ela não consegue mais formar uma maioria. O tempo dela passou.

Marko Langer (md) | opinião | Deutsche Welle

PORTUGAL | O embrulho azul


Rafael Barbosa* | Jornal de Notícias | opinião

Cruzei-me com o espectro numa manhã de tempestade. Seguia de carro, mas devagar. Porque a rua, naquele troço, é estreita; porque constituía um obstáculo; porque chovia a cântaros e a visibilidade era escassa. O que me fez olhar, para além de ver, não foi tanto o facto de ser um ciclista em dia de temporal. O que me fez olhar foi o formato do embrulho azul, em plástico impermeável, na parte de trás da bicicleta. Era estranho, porque terminava em cone. Fui ultrapassando, para finalmente perceber que era uma criança pequena (talvez da idade do Vasco, que seguia comigo no carro, confortável, aquecido e seco) o que confundi com um embrulho.

Segui o meu caminho, tentando, pelo retrovisor, olhar também o rosto de quem pedalava com esforço, agravado pelo temporal. Pareceu-me ser uma mulher, porventura a mãe, mas o rosto estava escondido, em parte pelo seu próprio capuz de plástico, em parte por uns óculos de lentes grossas. Presumi, pela hora, que seguiam para a escola, e confirmei-o uns dias depois, de novo num dia chuvoso, quando me cruzei de frente com a mulher, quando ela já fazia o caminho de regresso a casa, de novo coberta de plástico dos pés à cabeça, a poucos metros da escola onde já deixara o seu precioso embrulho.

Passaram-me várias coisas pela cabeça, depois daquele primeiro e fugaz encontro. Entre a compaixão (pela situação penosa em concreto), a revolta (por ser possível que no meu país uma criança ainda esteja sujeita a semelhantes provações) e a admiração (pela força da mãe e da criança, persistindo contra ventos e tempestades). Mas esses foram pensamentos vulgares. Mais estranho foi lembrar-me de Jorge Coelho, um dos homens mais influentes da política portuguesa. E lembrei-me porque o ex-ministro socialista é agora comentador da "Quadratura do círculo", na SIC, e, numa espécie de profissão de fé, e não estando o tema na agenda do programa, lembra de vez em quando a pobreza infantil, para desafiar os seus camaradas no Governo a lançar um programa de combate a esta tragédia nacional. À primeira vez, pensei que era sinal de que poderia estar para chegar algum anúncio que valesse a pena. Mas se Jorge Coelho foi persistindo, programa após programa, do lado do Governo e dos partidos de Esquerda que o suportam, ninguém tugiu, nem mugiu.

Há dias, a memória voltou a atormentar-me com a imagem do espectro com que me cruzei numa manhã de tempestade. Foi enquanto assistia, pela televisão, a mais um debate entre Rio e Santana. Por não ter ouvido nem uma palavra sobre o pior dos défices, o da pobreza que se abate sobre centenas de milhares de crianças portuguesas. Poderia aqui apresentar inúmeras estatísticas que o provam. Fico-me pela referência a um pequeno embrulho azul.

* Editor-executivo do JN

PORTUGAL | Publicidade enganosa


Ana Alexandra Gonçalves* | opinião

O CDS acusou o Governo de publicidade enganosa. Trata-se de mais um caso em que os centristas acusam os outros de características que, afinal, lhes pertencem. E veio isto a propósito da discussão no Parlamento sobre Educação.

Assim, Cristas e seus apaniguados passaram o tempo a acusar o Governo de desinvestir na Educação, culminando aqueles discursos brilhantes com a frase "publicidade enganosa". À esquerda muitos mostraram-se incapazes de conter os risos.

Publicidade enganosa. Falou quem pertenceu a um Governo de irrevogáveis e medíocres que diziam estar a tapar o buraco aberto por José Sócrates, procurando sempre ir mais longe do que era imposto e, ainda assim, garantindo, com aquele ar sério, que estavam a salvaguardar os serviços públicos. Pelo caminho aproveitaram o contexto para proceder a privatizações e outras negociatas.

Mais uma vez Cristas e os seus apaniguados escorregam nas suas próprias contradições e fazem-no como se estivesse a dançar artisticamente. A publicidade enganosa de que o CDS fala mais não foi do que a estratégia do partido, cujo cariz populista é indisfarçável, durante toda a anterior legislatura. E quando tudo se complicou o irrevogável revogou-se daqui para fora.

Quanto ao verdadeiro estado da Educação não se pode, honestamente, recusar a existência de falhas graves, assim como se verificam falhas graves noutros serviços públicos, designadamente na Saúde. Essas falhas resultam de anos de mau investimento, anos de desinvestimento, com o cunho também de Cristas, e uma recuperação que tarda ou que não chega em virtude do peso do serviço da dívida. Agora publicidade enganosa, isso é com o CDS que sabe bem do que fala.

*Ana Alexandra Gonçalves | Triunfo da Razão

"VENDER" A FILHA | Mil euros para expôr a intimidade da filha de 8 anos


Diz o Correio da Manhã que os ”pais da criança apresentada no primeiro episódio do programa da SIC “Supper Nanny” “receberam mil euros por expor a filha”.

Estrela Serrano | Tornado | opinião

A SIC por seu turno, na ficha do programa informa que as imagens foram captadas com autorização dos protagonistas, esperando com isso justificar a exibição de um programa que viola claramente um conjunto de questões éticas e deontológicas que requerem urgente intervenção  por parte do regulador dos media (a ERC).

Os meios de comunicação social estão legal e eticamente obrigados a protegerem a imagem e a identidade das crianças em situações consideradas “de risco”, à luz de um conjunto de instrumentos legais como  a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Lei Tutelar Educativa e a Lei de Protecção de Crianças e Jovens , nas quais se encontram tipificadas situações de risco para as crianças, sendo as mais frequentes e mediatizadas os “maus tratos físicos ou psíquicos” e os “abusos sexuais”.  A criança exposta no programa da SIC não se enquadra nesta situação. Contudo, parece evidente que a crer nas imagens exibidas a criança assume “comportamentos que afetem gravemente a sua (…)  formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, (…) se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação”.(al. g, art.º 3.ºdo último dos diplomas citados)“.

De facto, a criança que protagoniza o programa é apresentada como sofrendo de graves distúrbios comportamentais que mereceriam acompanhamento médico e psicológico em vez de ser despudoradamente exposta, como fez a SIC. Independentemente do consentimento dos “pais”  para a captação das imagens exibidas, que devassam claramente a intimidade da filha, aquela  Mãe necessita de apoio médico ou social  porque quem expõe a intimidade de uma filha de 8 anos a troco de mil euros, não está seguramente em condições de educar uma criança.

Mas se esta Mãe merece reprovação, a SIC não a merece menos, desde logo pela falta de transparência do próprio programa. Em que condições foram captadas as imagens? A criança foi consultada? As câmaras eram visíveis ou estavam ocultas? Apesar da autorização da Mãe, esta visionou e participou na selecção das imagens exibidas? Tratando-se de uma criança cujos pais estão separados, o Pai foi chamado a pronunciar-se sobre as imagens, mesmo tendo autorizado que a filha fosse filmada?

E o que dizer do papel da psicóloga, apresentada no programa como “educadora”? Qual o código de conduta que enquadra a sua participação no programa? Em que condição se volta para os telespectadores com gestos e movimentos fisionómicos como se fosse uma actriz de uma série televisiva?

São questões que não podem deixar de ser respondidas pela SIC e pelas entidades que no nosso País supervisionam a protecção das crianças e a regulação da actividade televisiva. Depois da condenação do programa por parte  de entidades como o  Instituto de Apoio à Criança (IAC) e de especialistas, como os citados aqui, e aqui, impõe-se que a SIC reveja a sua decisão de exibir o programa nas condições do primeiro ou, se o não fizer, que a ERC se pronucie.

Exclusivo Tornado / VAI E VEM

PORTUGAL | Quando a mente nos mente


Ao mostrar desconfiança na justiça Angolana o Ministério Público mais não faz do que trazer ao de cima a convicção de que no seu seio residem, ainda, resquícios de educação colonial.

António Fernandes, Braga | Tornado | opinião

No PPD/PSD ganhou a eleição para a Presidência do Partido, Rui Rio. Alguém que prega o “centrão” como se fora uma solução política do presente, ainda, dando mostra de que na sua mente e dos que o seguem, residem resquícios de um tempo em que as políticas estruturantes eram geo-estratégicas, de controlo político-militar e económico, num tempo em que a distribuição da riqueza total produzida exige maior rigor na planificação da partilha global dos meios existentes.

Na cidade e no País, as correntes do pensamento que usam a incerteza sobre a vida para além da morte, fazem mossa. Uns, dizem os telejornais, gerem organizadamente adopção de menores em condições de irregularidade a crer na poeira que levantam. Outros gerem Paróquias por atacado de forma a que o “Rebanho” não debande, auspício de um novo reordenamento do território de acordo com as suas necessidades, indício de que, ainda, residem nos citados, resquícios de um poder legal que se lhes escapou com a transição política ocorrida mas que pensam ainda deter.

Estas evidências mostram ao cidadão comum que não é fácil virar páginas da História no actual contexto social em que se cruzam gerações com conhecimento diferente.

Anota-se a divergência de opinião e de vontade com a naturalidade possível e a capacidade da cognição que cada um tem em saber discernir o estádio mental das gerações em disputa pelo poder terreno e celestial também. Embora, o poder celestial que manda nas almas e que vive dos proventos com que as citadas colaboram directa e indirectamente tenha primazia uma vez que formata a matriz educativa para além dos media que carecem da notícia para o fazer. Os entretenimentos de massas são passivos por serem permeáveis a factores externos de ordem social que tem que ver com as condições de vida que a política nacional promove.

Neste cruzamento de interesses intergeracionais que colidem no espaço intracultural; intercultural; multicultural e outros, o Partido Socialista vai a votos em eleição interna para as diferentes Concelhias espalhadas pelo País. Uma diretiva estatutária que impõe prazo legal para o efeito a contar após eleições nacionais autárquicas. Sendo o partido no exercício do poder vigente é um alvo preferencial de todas as forças que se movimentam em redor com objectivos claros concorrenciais seja em que domínio for porque é o poder político quem governa e por isso dita as regras de um jogo de importância vital para a vida e, aquilo em que, para além dela, nos transformaremos. Nesta conjuntura é visível o posicionamento de todos os intervenientes sendo que uns têm maior influência do que outros e que por isso a tendência para manter o “status quo” é resquício, ainda, da máxima do poder:

”Eu quero. Posso. E mando!”

Ora, quando a mente nos mente por condição, circunstância ou outra coisa qualquer, há a necessidade no indivíduo de conciliação entre o inconsciente, o subconsciente e o consciente, de forma a ser mais racional e, em consequência, permitir à inteligência liberdade!

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