domingo, 12 de agosto de 2018

Portugal | O país que não o é

Marisa Matias* | Diário de Notícias | opinião

Cresci e tornei-me adulta sabendo que era do interior. A 40 quilómetros da costa, não podia ser outra coisa senão interior. Faltava tudo: transportes, educação, saúde, saneamento, água, meios. Lembro-me, contudo, do dia em que me senti mais do interior do que nunca. Foi o dia em que tudo à volta da minha aldeia ardeu e uma boa parte da aldeia, crianças excluídas, teve de fazer o que se podia fazer para apagar o fogo. Ir à fonte, encher tudo o que havia para encher, subir o monte, cobrir o rosto e apagar o fogo por onde podia. Tinha, creio eu, 6 anos, quando pensei que ia ser o último dia das nossas vidas. Essa foi a sensação mais profunda que tive do que era ser-se do interior. Era o abandono.

Ninguém se deu conta nem as contas foram feitas. Foi há bem mais de 30 anos e não havia estatísticas nem gráficos a saltar ao segundo, não havia telemóveis, não havia redes sociais porque nem sequer havia internet, não havia meios tecnológicos de ponta. Havia a esperança de que tudo iria melhorar. O país estava a mudar, a democracia a instalar-se, havíamos de ser todos mais iguais. No entanto, vieram os telemóveis, a internet, a tecnologia de ponta e o abandono ficou.

Há um ano assistimos aos incêndios mais trágicos de que temos memória. Assistimos todos os dias a análises, a relatos, à identificação dos problemas humanos e técnicos, à avaliação das responsabilidades políticas. Revejo-me nas opiniões que sublinham o problema estrutural que é o abandono do interior, hoje como há mais de trinta anos, em detrimento do exército de dedos apontados debaixo de telhados de vidro.

Na década de 1990 parecia que a coesão estava a vir para ficar, mas os serviços públicos, os transportes, a qualidade de vida que foram chegando ao interior não ficaram por muito tempo. Desinvestiu-se o pouco que se tinha investido e acentuou-se mais ainda essa fratura que teima em não ser preenchida. O interior não é uma categoria geográfica apenas, é também uma opção política, faz parte de uma ideia de país. O abandono de hoje não é igual ao de há 30 anos, mas não deixa de o ser por isso. Muitos dos recursos e das propriedades foram sendo expropriados. Isso passou-se tanto com a agricultura como com a floresta. Os poderes públicos abandonaram, as celuloses não.

Nas últimas três décadas, a história do interior do país passou por uma promessa e acabou numa tragédia. O país inclinado a litoral ficou cada vez mais desigual e a enorme cobertura mediática aos incêndios apenas o confirma. A forma como se transforma a tragédia em espetáculo, o desespero em entretenimento, as vítimas em custos políticos, é a expressão dessa desigualdade, da desumanização das pessoas. Só assim se compreende os termos e os propósitos da polémica obscena acerca da legitimidade da evacuação de povoações em perigo, que protege as vidas quando os bens estão perdidos.

Ou se assume o país todo como uma prioridade, os direitos por igual e a qualidade de vida como variável independente do lugar onde se nasce, ou vamos ver esta triste história muitas vezes repetida. Agora com imagens e a cores, mas nem por isso mais feliz.

*Eurodeputada do BE

O Lado Oculto – Antídoto para a propaganda global, por José Goulão e outros


“O Lado Oculto – Antídoto para a propaganda global” é o novo semanário electrónico de informação internacional por assinaturas que será lançado dentro de um mês.

É uma publicação que irá cobrir informação de todo o mundo que não tem lugar nos meios de comunicação de largo consumo.

Serei o director e responsável editorial de uma equipa que integra outros jornalistas com carreiras consolidadas em alguns dos principais órgãos de comunicação internacionais.

Para manifestar o interesse em receber o Número 0, no dia 24 de Agosto, com as indicações necessárias para se tornar assinante, basta enviar o seu endereço de e-mail para: assinantes@oladooculto.com

Saudações gratas de José Goulão

- em Facebook | reposição em PG

Como Putin e Trump põem fim à guerra contra a Síria


Thierry Meyssan*

É com prudência e determinação que a Federação de Rússia e o Presidente Trump põem definitivamente fim à dominação do mundo pelos interesses transnacionais.

Convencido que o equilíbrio entre potências não depende das suas capacidades económicas, mas antes das militares, o Presidente Putin melhorou, é certo, o nível de vida dos seus concidadãos, mas desenvolveu o Exército russo antes de procurar enriquecê-los. A 1 de Março, ele revelava ao mundo as principais armas do seu arsenal e o início do seu programa de desenvolvimento económico.

Nos dias que se seguiram, a guerra concentrou-se na Ghuta Oriental. O Chefe do Estado-Maior russo, General Valeri Guerasimov, telefonou ao seu homólogo dos EUA, o General Joseph Dunford. Ele frisou-lhe que, em caso de intervenção militar dos EUA, as forças russas alvejariam os 53 navios dos EU do Mediterrâneo e do Golfo, incluindo os seus três porta-aviões de propulsão nuclear. Sobretudo, instou-o que informasse o Presidente Trump sobre as novas capacidades militares do seu país.

No fim, os Estados Unidos não obstaram a que o Exército Árabe Sírio e alguns soldados de infantaria russos libertassem a Ghuta dos jiadistas que a ocupavam.

Só o Reino Unido tentou antecipar-se aos acontecimentos montando o «caso Skripal»: se a ordem mundial actual se afunda, há que restaurar a retórica da Guerra Fria opondo os gentis cowboys e os malvados ursos russos.

Em Junho, quando o Exército Árabe Sírio, apoiado pela Força Aérea russa, se deslocava para o Sul do país, a Embaixada dos EUA na Jordânia prevenia os jiadistas que, doravante, eles deveriam defender-se sozinhos, sem ajuda nem apoio do Pentágono e da CIA.

A 16 de Julho, em Helsínquia, os Presidentes Putin e Trump iam ainda muito mais longe. Abordaram a reconstrução, quer dizer, os danos da guerra. Donald Trump, escrevê-mo-lo aqui frequentemente, desde há dois anos, opõe-se à ideologia puritana, ao capitalismo financeiro e ao imperialismo que daí decorre. Ele acredita, justamente, que o seu país não deve suportar as consequências dos crimes dos seus predecessores, das quais o seu povo tem também sido vítima. Ele afirma que estes crimes foram cometidos por instigação, e em proveito, de elites financeiras transnacionais. Considera, portanto, que deverão ser elas a pagar, mesmo que ninguém saiba exactamente como as obrigar a tal.

Os dois Presidentes acordaram igualmente em facilitar o regresso dos refugiados. Ao fazê-lo, Donald Trump reverteu a retórica do seu predecessor segundo a qual eles fugiam à «repressão da ditadura» e não à invasão dos jiadistas.

Enquanto no Sul do país, os jiadistas fugiam, por sua vez, diante das forças sírias e russas --- e algumas unidades desesperadas do Daesh(E.I.) cometiam atrocidades inimagináveis--- o Ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, e o Chefe do Estado-maior russo, Valeri Guerassimov, empreendiam uma tournée (turnê-br) europeia e médio-oriental.

Eles foram recebidos na União Europeia o mais discretamente possível. De facto, segundo o discurso ocidental, o General Guerasimov é um conquistador que invadiu e anexou a Crimeia. Ele está, portanto, interdito de entrar na União, defensora auto-proclamada do «estado de direito». Infelizmente, como já era demasiado tarde para retirar o seu nome da lista de sanções, a União decidiu fechar os olhos aos seus grandes princípios e deixar, excepcionalmente, entrar o herói da reunificação da Crimeia e da Rússia. A vergonha que atinge os dirigentes europeus-ocidentais, face à sua hipocrisia, explica a ausência de fotografias oficiais das audiências concedidas à delegação russa.

A cada um de seus interlocutores, a delegação russa resumiu algumas das decisões da Cimeira de Helsínquia. Dando provas de sabedoria, ela absteve-se de pedir contas sobre o papel de cada Estado durante a guerra e, pelo contrário, apelou a que ajudassem ao seu fim: retirada de forças especiais, paragem da guerra secreta, supressão da ajuda aos jiadistas, retorno de refugiados, reabertura de embaixadas. Ela afirmou, nomeadamente, que todos poderiam participar na reconstrução sem exclusão.

Assim que a delegação partiu, a Chancelerina Angela Merkel e o Presidente Emmanuel Macron ingenuamente mandaram interrogar o Pentágono para saber se era verdade que o Presidente Donald Trump tencionava fazer certas companhias transnacionais (KKR, Lafarge, etc.) pagar ---só para semear a confusão além-Atlântico--- . Esta atitude do Presidente Macron, antigo quadro bancário, é tanto mais deplorável quanto ele procurara simbolizar a sua boa fé oferecendo 44 toneladas de ajuda humanitária à população síria, encaminhadas pelo exército russo.

No Médio-Oriente, a viagem da delegação russa foi mais noticiada pelos média (mídia-br). Lavrov e Guerasimov puderam anunciar a criação de cinco comissões para o regresso dos refugiados. Todas, no Egipto, no Líbano, na Turquia, no Iraque e na Jordânia, incluem representantes do Estado anfitrião e delegados russos e sírios. Ninguém se atreveu a colocar a pergunta que incomoda : porque é que uma tal comissão não foi constituída com a União Europeia?

A respeito da reabertura das embaixadas, os Emirados Árabes Unidos apanharam os ocidentais e seus aliados de surpresa ao negociar já a reabertura da sua em Damasco.

Restava a preocupação dos Israelitas em obter a partida da Síria dos conselheiros militares iranianos e das milícias pró-iranianas, entre as quais o Hezbolla. O Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu multiplicou as idas e vindas a Moscovo e a Sochi para defender a sua causa. Lembremos que Guerasimov havia ironizado sobre o descaramento dos vencidos israelitas exigindo a partida dos vencedores iranianos. Lavrov, quanto a ele, refugiara-se diplomaticamente refugiado atrás de uma recusa de princípio de não se ingerir na soberania síria.

A Rússia resolveu o problema: a polícia militar russa reinstalou as forças da ONU ao longo da linha de demarcação sírio-israelita, da qual tinham sido expulsas há quatro anos. Durante todo este período, elas haviam sido substituídas pela Alcaida, apoiada pelo Tsahal (FDI). A Rússia também instalou por trás da linha de demarcação, em território sírio, oito postos de observação militar. Desta forma, Moscovo pode, ao mesmo tempo, garantir tanto à ONU como à Síria que os jiadistas não retornarão e a Israel que o Irão não o atacará a partir da Síria.

Israel, que até aqui apostava pela derrota da República Árabe Síria e qualificava o seu Presidente de «carniceiro», subitamente admitiu pela voz do seu Ministro da Defesa, Avigdor Lieberman, que a Síria saía vencedora do conflito e que o Presidente al-Assad era o seu chefe legítimo. Para manifestar a sua boa vontade, Liberman mandou bombardear um grupo do Daesh(EI) que até agora apoiava por trás da cortina.

Pouco a pouco, a Federação Russa e a Casa Branca põem ordem nas relações internacionais e convencem os diferentes protagonistas a retirar-se da guerra, ou até a apresentar candidatura para a reconstrução. Por seu lado, o Exército Árabe Sírio prossegue a libertação do seu território. Resta ao Presidente Trump tratar de retirar as suas tropas do Sul (Al-Tanf) e do Norte do país (Leste do Eufrates) e ao Presidente Erdoğan abandonar à sua sorte os jiadistas refugiados no Noroeste (Idlib).


* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

A BASÓFIA MACRONESCA E A REALIDADE


A jactância do presidente Macron, que prometia ajudar as empresas francesas atingidas pelas sanções unilaterais dos EUA contra o Irão, foi de pouca dura.

A Total, uma das maiores empresas petrolíferas do mundo, já anunciou que abandonava a sua posição no campo de gás natural iraniano de South Pars. E agora anuncia-se que a empresa chinesa CNPC ocupará o lugar no projecto South Pars deixado vago pela Total.

Os vassalos da Comissão Europeia encolheram-se diante de Trump. E o Irão prossegue o desenvolvimento dos seus recursos apesar das intimidações trumpianas.

É uma derrota para o imperialismo americano e para o sub-imperialismo da UE.

Rostos da Coreia do Norte


Andre Vltchek [*]

Aqui está um vídeo de 25 minutos sobre a RPDC (Coreia do Norte) – país que visitei há pouco tempo; visitei e amei, que me deixou impressionado, e deixem-me ser franco – admirado. 

Não se poderia chamar a isto um "documentário". Talvez não. É uma história simples, como um poema. Conheci uma garota, pequena e delicada, no ringue de patinagem em Pyongyang. Quantos anos ela tinha? Quem sabe; talvez quatro ou cinco anos. Ela foi primeiro agarrar-se à mãe, depois a um professor coreano, Kiyul, até mesmo a um ex-procurador-geral dos Estados Unidos, Ramsey Clark. Então começou a patinar, acenando inocentemente, olhando para mim, para nós, ou apenas olhando para trás ...

De repente fiquei terrivelmente assustado por ela. Foi quase um medo físico. Talvez tenha sido irracional, como pânico, não sei...

Não quero que nada de mau lhe aconteça. Não quero que armas nucleares dos EUA comecem a cair à sua volta. Não queria que ela acabasse como aquelas pobres crianças vietnamitas, iraquianas ou afegãs, vítimas da barbárie ocidental; das armas químicas, do urânio empobrecido ou das bombas de fragmentação. Não queria que ela morresse de fome por causa de algumas sanções insanas promovidas pela ONU por maníacos rancorosos que simplesmente odeiam "os Outros".

Então filmei, produzi uma curta metragem sobre o que eu vi na RPDC. Um filme dedicado a essa menina no ringue de patinagem em Pyongyang.

Quando estava a filmar, coleccionando imagens sobre a Coreia do Norte, a guerra, um ataque do Ocidente, partindo do Japão ou da Coreia do Sul, parecia possível, quase provável.

Quando, algum tempo depois, fazia a montagem em Beirute, com um editor libanês, o presidente dos EUA, Donald Trump, ameaçava "tratar da Coreia do Norte". O que ele queria dizer era claro. Trump é um "homem honesto". Honesto num estilo mafioso. No filme, chamo-o de "gerente". Ele pode não ser um Einstein, mas geralmente diz o que quer dizer, em cada dado momento. Você sabe, é o estilo Yakuza.

Agora, quando lanço este meu humilde trabalho depois da Cimeira de Singapura, , as coisas parecem mais claras. Mas não confio no Ocidente, após mais de 500 anos de guerras e cruzadas colonialistas bárbaras. O "gerente" talvez seja honesto quando diz que agora gosta do presidente Kim, mas amanhã ele pode ser "honesto" novamente, declarando que mudou de ideias e quer partir-lhe um braço

Sinto que é hora de me apressar. Hora de me apressar e mostrar a tantas pessoas quanto possível quão bela é a Coreia do Norte e quão digno é o seu povo. 

Eu poderia "vender" filmagens ou "vender direitos" e ganhar algum dinheiro para meus outros projetos internacionalistas, mas a coisa toda seria atrasada, e nesse caso apenas um número limitado de pessoas a veria.

Ao divulgá-lo assim, através do meu media favorita no mundo – New Eastern Outlook – o filme não fará nada em dinheiro, zero, mas considero meu dever actuar assim. Esperançosamente, o filme será visto por muitos e a pressão sobre o Ocidente e o Japão crescerá – pressão para cessar a intimidação sobre pessoas que já sofreram tremendamente!

Se alguém quiser apoiar meus filmes, incluindo meus trabalhos em andamento (dois grandes documentários em trabalho agora, um sobre o Afeganistão após quase duas décadas de ocupação da NATO, outro sobre a quase total destruição ambiental em Kalimantan / Bornéu), pode ser feito aqui . Mas sem pressa. Apenas desfrute este filme em particular e outros filmes que em breve e gradualmente irei divulgar.

Enquanto isso, a Coreia do Norte permanece de pé.

Enquanto o Ocidente está a calcular o que fazer a seguir. Não tenho um bom pressentimento sobre tudo isso. Espero estar errado. Espero que isto seja o começo de um processo de paz sério...

Mas confesso que já vi muitas cidades em ruínas, países e continentes inteiros. A maioria deles foi bombardeada, reduzida a escombros depois de vários "processos de paz". Na maior parte dos casos as bombas e mísseis começaram a cair depois de alguns sólidos acordos terem sido alcançados e assinados.

Não quero que o mesmo aconteça à Coreia do Norte. Não quero que essa garota, a que encontrei no ringue de patinagem, desapareça.

O que fiz desta vez não é muito, mas é algo. Nesta situação perigosa, quase tudo conta. Vamos todos fazer "alguma coisa", mesmo que seja só um pouquinho. A chuva é feita de gotas de água, mas pode travar um grande incêndio. Desta vez, vamos tentar travar a loucura com pequenas gotas de sanidade e ternura. 

[*] Filósofo, romancista, cineasta e jornalista investigador. Cobriu guerras e conflitos em dezenas de países. Os seus livros podem ser encomendados em Book Depository . Assista Rwanda Gambit , documentário inovador sobre o Ruanda e a R D do Congo e seu filme / diálogo com Noam Chomsk On Western Terrorism . Vltchek pode ser contactado através do seu sítio web

O original encontra-se em New Eastern Outlook , publicação da Academia das Ciências Russa e emwww.informationclearinghouse.info/49948.htm 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

Luto sem fim: Brasil tem mais de 80 mil pessoas desaparecidas


Apesar do drama de milhares de famílias, não existe ainda um banco de dados nacional unificado. "Na prática quem investiga são as próprias mães", diz membro do Condepe

São Paulo – O Brasil encerrou o ano passado tendo 82.684 boletins de ocorrência registrando o desaparecimento de pessoas, segundo revelou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018, divulgado nesta quinta-feira (9). O estado de São Paulo lidera com folga a dramática estatística, com 25.200 pessoas desaparecidas, seguido por Minas Gerais, com 8.878, e Santa Catarina, com 7.752 desaparecimentos.

O estudo anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública jogou luz no Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, criado em 17 de dezembro de 2009, conforme a Lei 12.127, e lançado em 26 de fevereiro de 2010 junto com o site www.desaparecidos.gov.br. Desde o início deste ano, o site foi tirado do ar pelo governo federal. Apesar de nunca ter funcionado como deveria, o canal tinha cerca de 370 crianças e adolescentes desaparecidos cadastrados e, de alguma forma, era um espaço oficial que alimentava a esperança de reencontro dos familiares.

“Ele (o site) vem inativo desde quando surgiu, em 2010. Nunca funcionou adequadamente, sempre dependeu das famílias fazerem o cadastramento. As mães que tinham que mandar fotos, cópia do boletim de ocorrência e as informações sobre o desaparecimento”, explica Ariel de Castro Alves, advogado e coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe). “O governo federal sempre justificou, tanto nas gestões anteriores como na atual, que os estados não encaminhavam os boletins de ocorrência.”

A falta de integração entre os estados e o governo federal sempre foi a principal razão pelo mau funcionamento de um cadastro nacional que poderia cumprir uma importante função. Na prática, os estados nunca colaboraram com o envio das informações para alimentar e atualizar o sistema. Segundo Castro Alves, a maioria dos estados, como São Paulo, por exemplo, sequer tem cadastros estaduais de crianças e adolescentes desaparecidos. Para ele, os cadastros estaduais e o nacional deveriam ter atualização diária a partir dos boletins de ocorrência (BOs) de crianças e adolescentes desaparecidos registrados nas delegacias de polícia de todo país.

Apesar da pouca eficiência, o coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Condepe avalia que o fim do site é um descaso com os familiares. “O cadastro funcionava precariamente, mas gerava uma expectativa porque era oficial e podia ser acessado de qualquer parte do país. É um desrespeito. As famílias não foram comunicadas de que o cadastro sairia do ar e elas tinham expectativa. Então é mais uma frustração, mais um abandono dessas famílias, um total desrespeito.”

Falta de prioridade

Com a aprovação do Sistema Único de Segurança Público (Susp), Ariel Alves tem esperança que a situação melhore porque, a partir de agora, os estados terão a obrigação de encaminhar os boletins de ocorrência e as informações criminais. “Isto pode, a médio e longo prazo, colaborar para resolver essa falta do banco de dados unificado. O estado de São Paulo nunca teve essa prioridade e também nunca atuou em nada, de modo integrado, com o governo federal, principalmente em temas de direitos humanos. Nem nos governos anteriores, nem no atual.”

Atualmente, São Paulo tem uma única delegacia de pessoas desaparecidas, vinculada à Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Localizada na capital, tem a missão de atender o estado todo.

Desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a necessidade de haver órgãos especializados na polícia e no Judiciário para atender crianças e adolescentes. Em alguns estados existem delegacias especializadas, mas não em São Paulo. E mesmo nos estados onde tais delegacias foram criadas, elas costumam estar localizadas apenas na capital. “Mas em São Paulo nem na capital tem”, critica Alves.

Para piorar a situação, os casos de desaparecimento não costumam ser investigados, seja de crianças ou de adulto, afirma o advogado. “A polícia diz que, em si, o desaparecimento não é um crime, é um fenômeno social a criança não estar sob os cuidados da família. Agora, por trás do desaparecimento pode haver rapto, sequestro, cárcere privado, assassinato, então por isto é necessário que em todos os casos sejam instaurados inquéritos. Na prática, quem hoje investiga são as próprias mães.”

O coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Condepe enfatiza ser comum a polícia sugerir aos pais esperar por 24 ou 48 horas antes de registrar o desaparecimento, uma prática que, afirma, é ilegal. “Os primeiros momentos são os mais importantes para buscar, esclarecer, investigar e localizar. E a lei também prevê que após fazer o boletim de ocorrência, além de iniciar as buscas, a polícia tem que informar as rodoviárias, os aeroportos, a polícia rodoviária, e isso também não acontece.”

A situação de ter um filho desaparecido, diz Ariel Alves, é um luto permanente, com enorme desgaste emocional e psicológico. “Muitas mães desenvolvem doenças, um câncer, um problema cardíaco. Elas não contam com nenhum tipo de apoio, é um descaso.”

Luciano Velleda, da RBA | em Rede Brasil Atual

Brasil | Golpe faz crescer ainda mais diferença salarial por nível de estudo


Em meio ao elevado número de desempregados no país (13 milhões) e a aprovação da reforma trabalhista, os brasileiros sofrem cada dia mais com a diferença de salários na hora de procurar um emprego. De acordo com uma pesquisa do professor do Insper,  Sergio Firpo, enquanto um trabalhador com ensino superior recebe R$ 4.911,66, um brasileiro com até um ano de estudo ganha apenas R$ 859,81.

Segundo levantamento, um trabalhador com ensino superior completo recebe, em média, 5,7 vezes o rendimento de um brasileiro com até um ano de estudo.

Atualmente, um trabalhador com ensino superior completo tem um rendimento médio de R$ 4.911,66, enquanto um brasileiro com até um ano de estudo ganha R$ 859,81. A diferença entre os rendimentos dos dois grupos, de 471%, é maior do que foi no ano passado, de 443%. Mas já foi ainda pior: em 2012, os mais escolarizados ganhavam em média quase 500% mais que os que tinham até 1 ano de estudo.

A situação salarial não piorou apenas para quem tem menos estudo, mas também para os brasileiros com ensino médio completo, o diferencial neste ano em relação a quem tem o superior completo chegou a 169%. Essa é a diferença mais elevada desde o ano de 2012.

A crise econômica, a reforma trabalhista e o aumento da informalidade contribuem fortemente para essa disparidade. Com isso, os brasileiros que foram para a escola por menos tempo têm sido os mais prejudicados pela piora no mercado de trabalho.

Enquanto o mercado de trabalho vai se deteriorando, o governo Michel Temer tem diminuído constantemente os orçamentos para as universidades públicas do país. Ou seja, há a precarização do trabalho e a falta de incentivo e proposta para a educação brasileira. O quadro se agrava ainda mais quando é colocada na mesma caixa a reforma trabalhista em vigor desde o ano passado.

Mulheres, as mais prejudicadas

De acordo com apuração do G1, na plataforma digital Bicos, que se propõe a fazer a conexão entre os que precisam de trabalho e aqueles que procuram, a maior parte do cadastro de quem procura pela renda extra é de mulheres de baixa escolaridade. 

Portal Vermelho

Do Portal Vermelho, com informações do G1

Brasil | São Paulo: radiografia de uma privatização velhaca


Dossiê disseca principal programa de João Dória e revela: por ninharia, prefeitura compromete serviços públicos, favorece gentrificação e ameaça privacidade dos cidadãos

Daniel Angelim, Daniel Martins, Gonzalo Berrón, Maria Brante Tatiana Ferraz, do Coletivo Vigência* - Outras Palavras

João Doria foi eleito prefeito de São Paulo com base num discurso privatizante, segundo o qual, empresários seriam capazes de gerir melhor os recursos públicos do que a própria Prefeitura. Agora, lidera as pesquisas para o governo de São Paulo. Mas quais os reais efeitos da sua política de privatização? Foi realmente capaz de “desonerar” os cofres públicos? Quem ganhou e quem perdeu em cada um dos bens e serviços concedidos à iniciativa privada? E quem ganhou com as famosas doações empresariais para a cidade?

Na tentativa de responder a essas perguntas, o coletivo Vigência, com o apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, realizou uma pesquisa analisando a política de privatizações de ativos, serviços e equipamentos públicos, bem como de recebimento de doações empresariais durante o primeiro (e único) ano de gestão do ex-prefeito. O estudo mapeou as principais propostas de privatização apresentadas pela gestão e as maiores doações recebidas pela Prefeitura para tentar verificar se realmente são, como defendido pelo governo Doria, vantajosas do ponto de vista econômico e social.

A narrativa privatizante de João Doria não é nova. Teve seu apogeu no Brasil no começo da década de 1990, quando tiveram início as privatizações de boa parte das empresas do setor elétrico, petroquímico, siderúrgico, telecomunicações, de mineração e ferroviário. Entre 1991 e 2000, mais de cem empresas estatais de propriedade da União e passaram para as mãos da iniciativa privada. Nos últimos dez anos, quase todos os governos acabaram concedendo a companhias privadas, aeroportos, usinas de geração de energia, estradas etc., apesar de muitas dessas parcerias terem se mostrado ineficazes para alcançar seus objetivos declarados de aumento de eficiência, melhora na prestação de serviço ou barateamento dos preços.

A campanha de Doria à Prefeitura de São Paulo também apoiou-se num discurso que defendia a lógica do mercado como a forma mais eficiente de gestão dos bens e serviços públicos. Além disso, propunha um modelo de relação empresa-Estado que incluía a noção do empresário benfeitor que colabora para a coisa pública não apenas pagando impostos, mas também realizando onerosas doações supostamente desinteressadas: a lógica privada seria boa não apenas como modelo de gestão, mas também pelos benefícios diretos que o bom empresariado poderia canalizar para o Estado.

Eleito em primeiro turno, Doria, ao tomar posse em 2017, apresentou seu programa de privatização como um “programa de desestatização” e, para levar tal política adiante, desenvolveu uma infraestrutura institucional e medidas específicas que montaram uma verdadeira máquina de privatizar dentro da própria Prefeitura.

Entre essas iniciativas, estão a criação de uma secretaria municipal de Desestatização e Parcerias, a elaboração do Plano Municipal de Desestatização (um pacote de concessões de serviços e equipamentos públicos à iniciativa privada, a PL 367/2017) e a Secretaria Especial de Investimento Social (que visa captar doações e investimentos privados para as áreas de educação, saúde e assistência social).

As privatizações em si tiveram início a toque de caixa já em meados de 2017, com projetos de lei encaminhados à Câmara dos Vereadores sem consulta pública prévia a respeito do interesse público de cada iniciativa. A maioria dos projetos foram criticados pela oposição por se basearem em textos classificados como imprecisos, contendo poucas informações sobre como se daria cada um dos processos de privatização e quais seriam as contrapartidas exigidas das empresas etc.

Após analisar a política de desestatização em profundidade, concluímos que, ao contrário do defendido pelo prefeito, as privatizações nem sempre desoneram o município e nem sempre servem ao interesse público. A principal argumentação utilizada por Doria para defender a privatização – a de que os equipamentos dão prejuízo para a Prefeitura – não se sustenta. Vários dos equipamentos e serviços a ser privatizados com prioridade têm balanço anual positivo, tais como os mercadões da região central. Além disso, se somarmos a economia projetada com a privatização dos itens elencados como prioritários na política de privatização da Prefeitura – complexo do Anhembi + SPTuris; 14 mercados e 17 sacolões; 14 parques e praças; sistema de bilhetagem do transporte público; estádio do Pacaembu; 22 cemitérios e um crematório; remoção de pátios e estacionamento; e administração dos terminais de ônibus, chega-se a um total de R$ 541 milhões, cerca de 1% da arrecadação da Prefeitura em 2017.

Tampouco as doações empresariais necessariamente representam economia para o Estado ou vantagens para os cidadãos.

Examinemos, a seguir, alguns dos principais casos analisados na pesquisa.

Mercados – O plano de privatização dos mercados e sacolões proposto pela gestão Doria envolve 14 mercados e 17 sacolões municipais. Atualmente, a gestão desses equipamentos é feita pelas associações de permissionários, que arcam com as despesas de luz, água, limpeza, reformas e segurança. Os 814 permissionários pagam cerca de R$ 1 mil/mês por boxe e alugam estes para cerca de 1.000 comerciantes. Estima-se que esse conjunto de equipamentos gere 5 mil empregos.

A gestão Doria alegava que esses equipamentos eram deficitários e necessitavam urgentemente de reformas estruturais para o seu “bom” funcionamento. O custo dessas melhorias foi estimado pela Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias (SMDP) em R$ 9 milhões, valor que, segundo a Prefeitura, só seria possível de arcar por meio de concessão dos mercados e sacolões à iniciativa privada. Outro argumento utilizado pela Prefeitura é o de que a privatização facilitaria o cumprimento da vocação desses mercados como pólos de turismo gastronômico. A pressão dos permissionários e comerciantes, bem como dos vereadores da bancada de oposição, fez com que a Prefeitura limitasse suas ambições de privatização a apenas três mercados municipais: Mercado Municipal Paulista (Mercadão), Mercado Kinjo Yamato e Mercado de Santo Amaro.
Sabe-se, contudo, que tais mercados estão entre os mais superavitários desse tipo de equipamento (só o Mercado Central gera lucro de R$ 5 milhões ao ano para a Prefeitura). Também nesse caso, o pretexto de privatizar para desonerar os cofres públicos não se sustenta.

Além disso, a legislação aprovada é vaga e não define os termos de concessão de uso dos mercados, o que eleva o risco de aumento do preço das mercadorias e gentrificação desses espaços, que poderão acabar transformados em shoppings e praças de alimentação para a classe média alta e para o turismo global, tal como ocorreu com o Mercado de Pinheiros.

Anhembi – Entre outros equipamentos na lista das privatizações que tampouco tem dado prejuízo à Prefeitura está o Anhembi que, segundo dados publicados pela Prefeitura, fechou o ano de 2016 positivamente. Na verdade, o que o projeto parece facilitar é a especulação imobiliária em uma das áreas mais valorizadas da cidade.

A SPTuris é uma sociedade de economia mista, de capital aberto, cuja maioria das ações (97,6%) está nas mãos da Prefeitura. Dedica-se à locação dos espaços do Complexo do Anhembi e à produção de eventos (majoritariamente do município) e atua como Secretaria de Turismo. Sua privatização será viabilizada com a venda de suas ações na Bovespa por meio de um agente financeiro contratado pelo município. A gestão Doria alega que a empresa vem dando prejuízo aos cofres públicos nos últimos anos (R$ 68 milhões em 2016) e precisa ser vendida.

Olhando atentamente para os números, porém, percebe-se que os argumentos da Prefeitura para a privatização não se sustentam, já que: a) o déficit da SPTuris foi causado pelo próprio município, que diminuiu drasticamente os contratos de realização de eventos em 2016, fazendo com que a arrecadação da empresa despencasse naquele ano; e b) sua privatização não vai desonerar a Prefeitura, já que a folha de pagamento da empresa representa a maior parte de seus gastos (R$ 75 milhões anuais) e, no edital de privatização, o município garante que vai empregar os servidores da SPTuris em outras secretarias.

A venda da empresa, que implicará a venda do Complexo Anhembi, alimenta a especulação imobiliária na região. O Projeto de Intervenção Urbana (PIU) aprovado para a privatização da SPTuris ignora a lei de zoneamento do local do terreno e o Plano Diretor da cidade, permitindo um aumento do potencial construtivo do terreno em 68% (que corresponde a 1,7 milhão de metros quadrados). Além disso, o PIU reduz significativamente o valor da contrapartida que o futuro dono da área terá de pagar ao município para construir acima do limite permitido na região, a chamada outorga onerosa. Na prática, o texto aprovado pelos vereadores em maio diminui em 46% o preço do metro quadrado que será construído a mais pelo empreendedor. Além disso, com a especulação imobiliária, perdem também os habitantes do entorno que moram de aluguel, já que a tendência é de alta dos preços.

Simultaneamente, a privatização da SPTuris extingue o órgão executor da política de turismo para a cidade (equivalente à Secretaria de Turismo), desarticula o seu corpo técnico (que inclui 360 servidores concursados) e abdica do controle público de uma área de 400 m2 numa zona estratégica da cidade, próxima ao centro e bem servida de infraestrutura, e dos seus espaços de locação, mais conhecidos como Complexo Anhembi (Pavilhão de Exposições, Palácio das Convenções e Sambódromo).

Portanto, na verdade, quem lucra com a privatização da SPTuris não é nem a população nem a Prefeitura de São Paulo, e sim dois grandes grupos de interesses privados: 1. Atores do ramo de gestão de eventos, liderados pela multinacional francesa GL Events, à frente da São Paulo Expo da Rio Centro, e maior interessada na compra da SPTuris; 2. Atores do mercado imobiliário.

Pacaembu – Tampouco a privatização do Pacaembu parece servir ao interesse dos cidadãos. O edital de concessão do estádio à iniciativa privada foi lançado em março de 2018 e prevê a concessão do complexo inteiro, que inclui o centro poliesportivo, por 35 anos. Além da importância simbólica do estádio, o centro poliesportivo oferece várias atividades gratuitas. O complexo é público, inclui uma piscina, um ginásio de esportes, um ginásio de tênis, uma pista de corrida, quadras externas e cobertas e está aberto a todos e todas as paulistanas, que podem ter acesso também às aulas (dança de salão, futsal, ioga, judô, natação, pilates, tênis e vôlei) ministradas no local. Com a venda do complexo, toda esta estrutura seria fechada.

Segundo o texto provisório, o lance mínimo será de R$ 12,4 milhões, mas a Prefeitura prevê ganhar R$ 402 milhões na operação. Outra vez, o principal argumento para a privatização levado à mesa pelo governo Doria foi o do déficit orçamentário: para justificar sua intenção de conceder o Pacaembu à iniciativa privada, a Prefeitura alega que o estádio custa, a cada quatro anos, R$ 40 milhões[1] aos cofres públicos.

Outra possível consequência negativa para a população do entorno relaciona-se à realização de eventos culturais e de entretenimento no estádio do Pacaembu, tais como shows: a possibilidade de promover tais eventos, tal como acontece na Arena Palmeiras ou no Morumbi, é um dos principais chamarizes do local para a iniciativa privada.

Por fim, apesar da lei proposta observar a necessidade de respeitar a atual legislação de tombamento histórico do imóvel prevista pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo), o tombamento do Pacaembu não inclui o chamado “Tobogã”, arquibancada construída depois que o estádio foi finalizado. Nos cinco projetos apresentados após o chamamento feito pela PMSP, quatro projetam a derrubada do “Tobogã”. Foram sugeridos a construção de hotéis e até uma piscina de ondas artificiais.

Bilhete Único – A privatização do sistema de bilhetagem de ônibus é outro exemplo de transação questionável do ponto de vista do interesse público. Hoje, quando um usuário se cadastra no sistema da Prefeitura, é convidado a preencher uma “pesquisa de perfil socioeconômico”, além de fornecer dados básicos, como endereço, idade e sexo. De acordo com a proposta de privatização atual, a empresa que comprar o sistema poderá usar os dados dos usuários para fins comerciais, além de rastrear os deslocamentos e o comportamento dos usuários.

Adicionalmente, não há nenhuma pesquisa que corrobore a alegação da Prefeitura de que esses serviços são insatisfatórios ou de que as privatizações melhorariam a sua qualidade.
Doações – As doações também não cumprem o prometido. Frequentemente são pouco transparentes. Adicionalmente, muitas delas parecem não ter sido pautadas pelas necessidades da cidade e das(os) cidadãs(os) e, às vezes, parecem ter sido de fato guiadas pelos interesses das empresas. O que é ainda mais grave, em alguns casos, as doações subverteram princípios democráticos, permitindo a empresas doadoras ganhar ingerência em definições de diretrizes políticas municipais de seu próprio interesse.

No que diz respeito ao último ponto, em alguns casos, a doação permite a empresários doadores ganhar acesso a dados estratégicos e exercer influência indevida sobre políticas públicas de seu próprio interesse. A organização Comunitas, por exemplo, em conjunto com a consultoria McKinsey doou R$ 3.727.189,50 em serviços de consultoria à Prefeitura. Uma dessas consultorias, avaliada em R$ 2.836.151 consiste, segundo o termo de doação, em um “diagnóstico dos principais desafios da cidade de São Paulo, tendo como referência as melhores cidades para se viver”. Mas a doação da Comunitas apresenta dois problemas principais: o primeiro é que dá acesso privilegiado a informações estratégicas e a funcionários da Prefeitura que são de interesse de empresas que são clientes ou clientes em potencial da McKinsey. O segundo é que coloca empresários em posição privilegiada para defender seus próprios interesses em assuntos de importância vital para a cidade. No caso desta consultoria, eles têm acesso direto ao prefeito e aos seus secretários e papel importante na definição de metas e diretrizes relacionadas ao seu campo de atuação. Empresários ligados a empresas tais como Cyrela e Gerdau, por exemplo, ajudam a Prefeitura a pensar no Plano Diretor da cidade.

Além disso, apesar de as doações serem defendidas por supostamente trazer benefícios materiais diretos para a Prefeitura, elas têm representado custos para o erário público. A Secretaria da Saúde, por exemplo, anunciou uma parceria com empresas farmacêuticas, que doariam até R$ 35 milhões de reais[2] em medicamentos para ajudar a resolver o problema da falta de acesso da população a remédios. Em troca, contudo, as empresas receberam isenção de impostos equivalente a R$ 66 milhões. Além disso, doaram remédios próximos ao vencimento, que já não poderiam ser comercializados, limitando sua utilidade – as empresas, porém, ganharam ao  economizar no descarte dos medicamentos, que é um processo caro. Segundo reportagem da rádio CBN de junho de 2017, os remédios se acumulavam em várias Unidades Básicas de Saúde (UBSs). O Ministério Público abriu uma investigação sobre o caso. Em novembro, a rádio publicou nova reportagem alegando que, no período entre junho e agosto, até 35% dos remédios doados haviam sido descartados, cinco vezes mais do que no mesmo período do ano anterior, na gestão do prefeito Fernando Haddad.

No que diz respeito à transparência, no início da gestão não havia publicações no Diário Oficial sobre todas as doações recebidas. Em fevereiro de 2017, foi anunciado que informações sobre as doações seriam publicadas no Portal da Transparência da Prefeitura. Os dados disponibilizados, contudo, são genéricos e não incluem a memória de cálculo para se chegar ao valor declarado. Alguns valores listados também são questionáveis. A maior doação registrada, pela Cisco, no valor de R$ 300 milhões, por exemplo, não discrimina os itens recebidos e nem o valor de cada item. Ao ser questionada sobre a memória de cálculo do valor, a Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias respondeu que os equipamentos doados foram utilizados na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016 e que, “por tratar-se de equipamento usado, não há tabela de referência no mercado local”, mas que o valor foi calculado com base no que seria o custo de comprar equipamentos novos.

O que este primeiro ano de gestão do prefeito João Doria parece indicar é que sua orientação privatista — seja como critério de organização da gestão, seja como cessão para a iniciativa privada de áreas, serviços ou bens públicos ou, no caso das doações, como tentativa de mostrar o lado “altruísta” dos agentes do mercado —  não necessariamente resolve os problemas financeiros que o prefeito aponta nem traz os benefícios que promete, assumindo assim um caráter demagógico. Tampouco a democracia é fortalecida por este estilo de gestão. Ao contrário: ela sofre quando interesses privados são favorecidos ante o interesse público, quando a transparência é reduzida e quando a relevância dos mecanismos participativos de controle é diminuída.

Com essa pesquisa, o Vigência pretende contribuir para dar visibilidade a essa relação entre o público e o privado que vê como nociva para a cidade de São Paulo e, ao compilar dados e informações sobre seus reais efeitos, fornecer munição para organizações, movimentos e indivíduos que queiram se contrapor a esse discurso e a essa prática que coloca o privado acima do público. O caráter público da gestão só será ampliado se a sociedade paulistana conseguir colocar um limite claro ao privatismo de políticos como o ex-prefeito João Doria e puder se envolver ativamente na construção de espaços de gestão mais democráticos.

MAIS:
Leia o relatório completo aqui:http://www.vigencia.org/artigo/apresentacao-2/
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[1] O ESTADO DE SÀO PAULO, Doria infla custo do Pacaembu para justificar concessão à iniciativa privada. http://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,doria-infla-custo-do-pacaembu-para-justificar-concessao-a-iniciativa-privada,10000080704
[2] Esse foi o valor divulgado pela Prefeitura na ocasião do anúncio da doação. Segundo a tabela de doações disponibilizada pela Prefeitura, contudo, o valor era de R$ 11,9 milhões até outubro de 2017.
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* Daniel Angelim, Daniel Martins, Gonzalo Berrón, Maria Brant e Tatiana Ferraz são integrantes do Vigência, coletivo de ativistas cujo foco de atuação e pesquisa são os efeitos da concentração econômica sobre o bem-estar, a justiça social e o funcionamento da democracia.

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