Como o pensamento económico
conservador recorreu a um conceito cultivado por Aristóteles e inverteu seu
sentido, para impor políticas que golpeiam as maiorias e enriquecem os nababos
Pedro Rossi, Esther Dweck e Flávio
Arantes | Outras Palavras
O texto a seguir é um trecho do
primeiro capítulo de “Economia para Poucos – Impactos sociais da
austeridade e alternativas para o Brasil”. Editado pela Autonomia
Literária, o livro reúne vinte autores, que discutem as políticas de
austeridade e seus cruéis efeitos sociais
A austeridade é uma ideia força,
poderosa quando transformada em discurso, perigosa quando aplicada
politicamente. O comprometimento dos governos com ajustes e consolidações
fiscais, que reduz o papel do Estado e distribui sacrifícios à população, se
apoia em um discurso, em argumentos teóricos e em uma literatura empírica. O
objetivo deste capítulo é analisar – discurso, argumentos e literatura – e
mostrar que a austeridade se sustenta em discursos falaciosos, argumentos
morais e em evidências empíricas frágeis.
Na primeira seção do capítulo,
analisa-se o conceito de austeridade e sua apropriação pelo discurso económico
ao longo do tempo. Em seguida analisa-se a lógica subjacente à defesa da
austeridade, evidenciando que ela depende de pressupostos teóricos
questionáveis como a permanente disputa de recursos entre o setor público e o
setor privado. Já na seção 3, descrevem-se os mitos que sustentam o discurso da
austeridade como o mito da “fada da confiança” e a “metáfora do orçamento
doméstico”. A análise da literatura académica internacional sobre os efeitos da
austeridade é feita na quarta seção e, por fim, uma última seção aponta os
elementos políticos e ideológicos por detrás da defesa da austeridade fiscal.
Sobre o conceito de Austeridade
A ideia de austeridade ganhou destaque
após a crise internacional de 2008. Na Inglaterra, enquanto o líder conservador
David Cameron proclamou que o país entrava na “Era da Austeridade”, o debate económico
se dividiu entre defensores e críticos da austeridade. Em 2010, o dicionário
Merriam-Webster’s, um dos mais importantes da língua inglesa, elegeu a palavra
“austeridade” como a palavra do ano com base no número de pesquisas que a
palavra gerou na internet. Com o aprofundamento da crise na Europa, e a
imposição de planos de austeridade a países da periferia, crescem os movimentos
anti-austeridade, assim como o debate acadêmico em torno do tema. Para além de
inúmeros artigos académicos, diversos livros abordaram o tema com ênfases
variadas como, por exemplo, na história intelectual e política do termo (Blyth
(2016) e Schui (2014)), sobre seus impactos sociais (Rao, 2016) e na saúde das
pessoas (Stuckler e Basu (2014), Kelly e Pyke (2017), Mendoza (2015)), assim
como nos fundamentos econômicos, com em Atckinson (2014) e Skidelsky Fraccaroli
(2017) e também uma literatura voltada para análise dos movimentos sociais
anti-austeridade, como em Cammaerts (2018).
“Austeridade” não é um termo de
origem económica, a palavra tem origens na filosofia moral e aparece no
vocabulário económico como um neologismo que se apropria da carga moral do
termo, especialmente para exaltar o comportamento associado ao rigor, à
disciplina, aos sacrifícios, à parcimónia, à prudência, à sobriedade… e
reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, pródigos, perdulários… Para
Coelho (2014) o discurso da austeridade no campo económico tem profunda raiz
cultural e traços religiosos, pois prega a redenção ou recompensa por
sacrifícios prestados. Como veremos mais adiante, o discurso moderno da
austeridade ainda carrega essa carga moral e transpõe, sem adequadas mediações,
essas supostas virtudes do indivíduo para o plano público, personificando,
atribuindo características humanas ao governo.
Como aponta Schui (2014) os
argumentos em defesa da austeridade económica vêm de longa data e remetem a
pensadores pré-modernos como Aquino e Aristóteles, associados à discussão sobre
o modo de vida e o manejo dos recursos do indivíduo e das famílias para uma
vida boa. O termo austeridade também ganha proeminência nas grandes guerras mundiais,
quando é apropriado por um discurso do governo que busca legitimar o
racionamento e a regulação do consumo privado em prol da mobilização dos
recursos da sociedade para o esforço de guerra. No imediato pós-guerra, a
austeridade continua em voga por conta da necessidade de priorizar a
reconstrução de países destruídos pela guerra, as exportações, os
investimentos, e o provimento bens públicos em detrimento do consumo privado
(Zweinniger-Bargielowska, 2000). Nesse contexto, o discurso da austeridade não
estava ligado à redução do gasto público mas, pelo contrário, tratava-se de
conter o consumo privado para que o governo pudesse atuar fortemente na
alocação de recursos. Curiosamente, na Inglaterra do pós-guerra, era um governo
de esquerda, do trabalhista Clement Attlee, que defendia a austeridade, ou
seja, a manutenção dos controles da economia de guerra e a contenção do consumo
privado para direcioná-los para o provimento de bens públicos de consumo
coletivo, como saúde, educação, moradia, etc. (Zweinniger-Bargielowska, 2000).
Segundo Blyth (2013), “o
argumento moderno” pela austeridade se desenvolve a partir de um grupo de
acadêmicos no qual o mais proeminente é Alberto Alesina. A intuição básica do
argumento é que em tempos de crise as políticas fiscais restritivas (aumento de
impostos ou, preferencialmente, redução de gastos) podem ter um efeito
expansionista, de aumento do crescimento económico. O debate económico em torno
dos efeitos da contração fiscal deu corpo ao conceito de austeridade que pode ser
definido por seu instrumento (ajuste fiscal – preferencialmente corte de
gastos) e seus objetivos (gerar crescimento económico/equilibrar as contas
públicas). Nesse sentido, a austeridade é a política que busca, por meio de um
ajuste fiscal, preferencialmente por cortes de gastos, ajustar a economia e
promover o crescimento. Seus resultados e sua racionale são explorados na
próxima seção.
A lógica da austeridade
A defesa da austeridade fiscal
sustenta que, diante de uma desaceleração económica e de um aumento da dívida
pública, o governo deve realizar um ajuste fiscal, preferencialmente com corte
de gastos públicos em detrimento de aumento de impostos. Esse ajuste teria
efeitos positivos sobre o crescimento económico ao melhorar a confiança dos
agentes na economia. Ou seja, ao mostrar “responsabilidade” em relação às
contas públicas, o governo ganha credibilidade junto aos agentes económicos e,
diante da melhora nas expectativas, a economia passa por uma recuperação
decorrente do aumento do investimento dos empresários, do consumo das famílias
e da atração de capitais externos. A austeridade teria, portanto, a capacidade
de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento económico.
No plano da teoria económica,
esse efeito decorre do pressuposto de que o setor público e o setor privado
disputam recursos, ou poupança, e que uma redução do gasto público abre espaço
para o investimento privado. Como argumenta o economista de Chicago John
Cochrane (2009), a cada dólar adicional gasto pelo governo é um dólar a menos
gasto pelo setor privado, o impulso fiscal pode criar rodovias em vez de
fábricas, mas não pode criar os dois. A austeridade expansionista dá um passo
adicional nesse argumento ao propor que, dada a maior eficiência do gasto privado,
a contração do gasto público gera um aumento ainda maior do gasto privado.[1]
Esses pressupostos são contrários
ao que propõe John M. Keynes para quem essa disputa por recurso entre o setor
privado e o setor público depende do ciclo econômico. Para Keynes é no boom e
não na crise que o governo pode cortar gastos (Keynes, 1937). E o raciocínio do
autor é bastante intuitivo: na crise, como os recursos da sociedade estão
subempregados, um aumento do gasto público gera crescimento e emprego enquanto
nos momentos de boom, os gastos públicos têm efeito menor sobre a atividade económica.
Ou seja, quando a economia está aquecida, o corte do investimento em uma obra
pública, por exemplo, pode não ter um efeito negativo na economia, uma vez que
a empresa que seria contratada pelo governo provavelmente será contratada por
outra pessoa ou empresa privada. Da mesma forma, a redução das transferências
sociais pode ter impactos distributivos, mas não necessariamente
contracionistas. Já o mesmo não ocorre quando há escassez de demanda,
desemprego e excesso de capacidade ociosa na economia: nesse caso, a demanda
pública aumenta renda e emprego.
Assim, os efeitos da austeridade
podem ser entendidos de forma intuitiva. Gasto e renda são dois lados da mesma
moeda, o gasto de alguém é a renda de outra pessoa: quando alguém gasta, alguém
recebe. Quando o governo contrai o seu gasto, milhões de pessoas passam a
receber menos, o que tem impactos negativos na renda privada. Quando o governo
corta gastos com um investimento destinado a uma obra pública, por exemplo, o
efeito é direto sobre a renda e o emprego, uma vez que a empresa que seria
contratada deixa de contratar empregados e comprar materiais. Da mesma forma, o
corte de gastos em transferências sociais reduz a demanda dos que recebem os
benefícios e desacelera o circuito da renda. Dessa forma, é uma falácia pensar
o governo independente do resto da economia.
Contabilmente, o gasto público é
receita do setor privado, assim como a dívida pública é ativo privado e o
déficit público é superávit do setor privado. Se no momento de crise o governo
buscar superávits, esses se darão às custas dos déficits do setor privado o que
pode não ser saudável para a estabilidade económica.
Além de gerar retração económica,
a austeridade ainda pode piorar a situação fiscal. Em uma economia em crise, a
austeridade pode gerar um círculo vicioso em que o corte de gastos reduz o
crescimento, o que deteriora a arrecadação e piora o resultado fiscal, o que
leva a novos cortes de gastos. Ou seja, em um contexto de crise económica, a
austeridade é contraproducente e tende a provocar queda no crescimento e
aumento da dívida pública, resultado contrário ao que se propõe.
Mitos da austeridade
O discurso da austeridade é
acompanhado de duas ideias extremamente questionáveis conhecidas pelos críticos
como (I) a fada da confiança e (II) a metáfora do orçamento doméstico.
Fada da confiança
O pressuposto teórico para o
sucesso das políticas de austeridade é o aumento da confiança dos agentes
privados. A austeridade é o instrumento e a solução para restaurar a confiança
do mercado o que, por sua vez, seria causadora de crescimento económico. Na
retórica austera, a busca pela confiança do mercado é muito presente tanto no
exterior como no Brasil; são inúmeros os exemplos em que a equipe económica
evoca esse tema como justificativa para cortes de gastos como em 2016, quando
Henrique Meirelles estabelece que o “desafio número 1” é a retomada da confiança[2]
ou, em 2015, quando Joaquim Levy declara que “alcançar essa meta será
fundamental para o aumento da confiança na economia brasileira”[3] ou, ainda,
em 2018, quando Michel Temer cita “confiança” como palavra-chave que permite a
retomada do crescimento económico no país. [4]
Para Paul Krugman (2015), a
crença de que a austeridade gera confiança é baseada em uma fantasia onde se
acredita que, por um lado, os governos são reféns de “vigilantes invisíveis da
dívida” que punem pelo mau comportamento e, por outro lado, existe uma “fada da
confiança” que recompensará o bom comportamento. O autor ainda mostra
evidências de que a os países europeus que mais aplicaram a austeridade foram
os que menos cresceram (Krugman, 2015). Na mesma linha, Skidelsky e Fraccaroli
(2017) mostram que a confiança não é causa, mas acompanha o desempenho económico
e que austeridade não aumenta, mas diminui a confiança ao gerar recessão.
Nesse sentido também é intuitivo
pensar por que um ajuste fiscal não necessariamente melhora a confiança; um
empresário não investe porque o governo fez ajuste fiscal, e sim quando há
demanda por seus produtos e perspectivas de lucro. E, nesse ponto, a contração
do gasto público em momentos de crise não aumenta a demanda, ao contrário, essa
contração reduz a demanda no sistema. Em uma grave crise económica, quando
todos os elementos da demanda privada (o consumo das famílias, o investimento e
a demanda externa) estão desacelerando, se o governo contrair a demanda
pública, a crise se agrava.
Metáfora do orçamento doméstico
Na retórica da austeridade é
muito comum a comparação do orçamento público com o orçamento doméstico. Assim
como uma família, o governo não deve gastar mais do que ganha. Logo, diante de
uma crise e de um aumento das dívidas, deve-se passar por sacrifícios e por um
esforço de poupança. No caso brasileiro é comum a análise de que os excessos
(de gastos sociais, de aumento de salário mínimo, de intervencionismo estatal,
etc.) estão cobrando os sacrifícios necessários.[5] Como na fábula da cigarra e
da formiga, os excessos serão punidos e os sacrifícios, recompensados. Nesse
sentido, há um argumento moral de que os anos de excessos devem ser remediados
com abstinência e sacrifícios e a austeridade é o remédio.
No entanto, essa comparação entre
o orçamento público e o familiar não é apenas parcial e simplificadora, mas
essencialmente equivocada[6]. Isso porque desconsidera três fatores essenciais.
O primeiro é que o governo, diferentemente das famílias, tem a capacidade de
definir o seu orçamento. A arrecadação de impostos decorre de uma decisão
política e está ao alcance do governo, por exemplo, tributar pessoas ricas ou
importações de bens de luxo, para não fechar hospitais. Ou seja, enquanto uma
família não pode definir o quanto ganha, o orçamento público decorre de uma
decisão coletiva sobre quem paga e quem recebe, quanto paga e quanto recebe.
O segundo fator que diferencia o
governo das famílias é que, quando o governo gasta, parte dessa renda retorna
sob a forma de impostos. Ou seja, ao acelerar o crescimento económico com
políticas de estímulo, o governo está aumentando também a sua receita. E, como
visto, o gasto público em momentos de crise económica, principalmente com alto
desemprego e alta capacidade produtiva ociosa, incentiva/promove a ocupação da
capacidade, reduz o desemprego e gera crescimento . Por fim, o terceiro fator
não é menos importante: as famílias não emitem moeda, não tem capacidade de
emitir títulos em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas
que pagam. Já o governo faz tudo isso.
Portanto, a metáfora que compara
os orçamentos público e familiar é dissimulada e desvirtua as responsabilidades
que a política fiscal tem na economia, em suas tarefas de induzir o crescimento
e amortecer os impactos dos ciclos econômicos na vida das pessoas. A
administração do orçamento do governo não somente não deve seguir a lógica do
orçamento doméstico, mas deve seguir a lógica oposta. Quando as famílias e
empresas contraem o gasto, o governo deve ampliar o gasto de forma a contrapor
o efeito contracionista do setor privado.
Notas:
[1] O que ficou conhecido
como a tese da contração fiscal expansionista
[2] https://veja.abril.com.br/economia/meirelles-desafio-numero-um-e-recuperar-a-confianca/
[3] http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/11/novo-ministro-da-fazenda-fixa-meta-fiscal-de-12-do-pib-para-2015.html
[4] http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-04/temer-diz-que-confianca-permite-retomada-do-crescimento-da-economia
[5] Por exemplo, o
Presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, afirmou em entrevista que “a atual
recessão foi provocada por anos de excessos”
http://www.josenildomelo.com.br/news/ desta-vez-e-diferente-cristiano-romero/.
[6] E esse reconhecimento
avançou para além dos argumentos keynesianos, como em Wolf (2013) e Krugman
(2015), para o campo da modelagem convencional, como em Farmer e Zabczyk
(2018).
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário