António Guterres,
Secretário-geral das Nações Unidas. Foto de arquivo. Créditos/ Arbresh
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A omissão das instituições
internacionais é mais grave ainda nesta situação, uma vez que existe também a
utilização das vidas de seres humanos inocentes como reféns de uma operação
militar agressiva.
José Goulão | Abril Abril | opinião
A Força Aérea de Israel usou dois
aviões civis de passageiros como escudos, no dia de Natal1,
para poder bombardear regiões dos arredores de Damasco escapando aos efeitos do
sistema electrónico de exclusão aérea montado sobre o território sírio. Apesar
de a manobra traduzir uma dupla violação do Direito Internacional, nem o
Conselho de Segurança da ONU nem o secretário-geral desta organização tomaram,
até agora, qualquer posição sobre o assunto.
O ataque israelita, qualificado
como uma «repelente cobardia» pela imprensa libanesa, não incomodou a
comunicação social mainstream, apesar de ter posto em risco a vida de
centenas de inocentes passageiros que se deslocavam para Beirute e Damasco. Só
a contenção dos serviços sírios de defesa, ao evitar disparar mísseis que
pusessem directamente em causa a segurança dos aparelhos civis, evitou aquilo que o ministro libanês dos transportes, Youssef
Fenianos, qualificou como «uma verdadeira catástrofe».
Devido ao sistema defensivo
reforçado com que recentemente se dotou a República Árabe Síria, mediante
sistemas russos de mísseis S-300 e dispositivos de guerra electrónica que criam
uma zona de exclusão aérea sobre o território sírio, os Estados Unidos, os seus
aliados ocidentais e Israel ficaram inibidos de prosseguir os bombardeamentos
aéreos contra objectivos sírios.
Como consequências visíveis,
Trump anunciou a retirada das tropas ocupantes do território sírio e Israel já
não efectuava nenhum dos seus habituais bombardeamentos desde 18 de Setembro.
Um presente de Natal
No dia de Natal, seis caças F-16
israelitas começaram por invadir espaço aéreo libanês precisamente no momento
em que dois aviões de passageiros aí se encontravam, ambos em manobras de
aproximação aos aeroportos de destino, respectivamente Beirute e Damasco, que
distam apenas 90
quilómetros um do outro.
Aproveitando o levantamento
parcial do sistema de exclusão aérea sírio inerente à aproximação de aparelhos
civis, os caças israelitas bombardearam instalações logísticas a menos de dez
quilómetros de Damasco, atingindo um processo de embarque no âmbito da presença
de forças do Hezbollah que apoiam a resistência síria contra a agressão
internacional.
Os aparelhos israelitas
dispararam várias bombas teleguiadas a laser GBU-39, de fabrico
norte-americano; apesar das restrições, a defesa anti-aérea síria conseguiu
interceptar a maioria dos engenhos: apenas dois chegaram aos alvos, ainda assim
em condições de causar danos pessoais e materiais.
Em todas as declarações, estas
fontes revelaram que as autoridades militares sírias deram prioridade à
segurança dos aparelhos civis e por isso não combateram os aparelhos militares
israelitas que deles se serviram como escudos. A atitude de Damasco poupou
centenas de vidas humanas com as quais as forças as militares israelitas
jogaram sem qualquer contemplação nem respeito pelos direitos humanos e os
vários códigos de conduta estipulados pelas autoridades internacionais da
aviação civil.
Um desmentido logo desmentido
As autoridades militares
israelitas foram as únicas que desmentiram os factos relatados por Damasco,
Moscovo e Beirute. Um comportamento padronizado e que nada tem a ver com a
realidade. Aliás os factos falam, neste caso, muito mais do que as palavras,
uma vez que, durante o ataque contra a Síria, Israel activou plenamente os seus
sistemas defensivos, prevendo as respostas sírias.
Não é, aliás, a primeira vez que
Israel adopta comportamentos semelhantes. Anteriormente, caças F-16
«esconderam-se» atrás de um avião de reconhecimento russo Il-20 para bombardear
território sírio. Uma das respostas do sistema defensivo de Damasco atingiu o
aparelho russo quando tinha como alvo o caça israelita agressor, o que provocou
a morte dos ocupantes, 15 altos quadros russos.
Desta feita, o facto de a Síria
não ter caído no engodo cobarde e traiçoeiro montado por Israel para tentar
provar que pode driblar a zona de exclusão aérea poupou centenas de vidas. Um
dos aviões aterrou calmamente em Beirute e o outro pousou incólume no aeródromo
de Khmeimim, para onde foi desviado para escapar às bombas israelitas sobre
Damasco.
Aliás, foi a manobra israelita
escudando-se no aparelho Il-20 que provocou o reforço dos sistemas defensivos
sírios, acordada entre as autoridades de Moscovo e de Damasco e que entrou
recentemente em actividade plena, com efeitos palpáveis imediatos. Por exemplo,
os bombardeamentos da chamada «coligação internacional» supostamente contra o
Isis ou «Estado Islâmico», e que atingiam principalmente civis em regiões do
Norte da Síria, reduziram-se em cerca de 80%. Além disso, o presidente
norte-americano anunciou a redução do esforço militar próprio na Síria, embora
outros aliados, designadamente a França, tenham revelado a intenção de
manter-se no terreno, alegadamente procurando negócios que possam proporcionar
compensações para o investimento feito na guerra – segundo explicou uma
porta-voz do Quai d’Orsay.
Onde está a ONU?
O ataque israelita de dia de
Natal ofende duplamente, no mínimo, o Direito Internacional. Em primeiro lugar,
os caças israelitas em operações violaram o espaço aéreo libanês. É certo que
tal não aconteceu pela primeira vez, podendo dizer-se que é até um velho hábito
das forças militares israelitas, que usam realmente o Líbano como uma extensão
territorial de Israel. Não é a frequência, porém, que «legaliza» o
comportamento, baseando-se num qualquer direito de usucapião inscrito numa
espécie de código jurídico próprio e exclusivo de Israel.
Um mau hábito enraizado também
devido ao comportamento complacente das instâncias internacionais, que nada
fizeram e fazem para o travar – e não lhes faltaram ocasiões para isso.
A omissão das instituições
internacionais é mais grave ainda nesta situação, uma vez que existe também a
utilização das vidas de seres humanos inocentes como reféns de uma operação
militar agressiva. Se Damasco não tivesse manifestado contenção e os dois
aparelhos fossem abatidos, apanhados no fogo cruzado resultante de uma guerra
que a Síria não provocou, haveria centenas de mortos a registar; e talvez
então, mesmo sem ser necessário recorrer a muita especulação, observaríamos a
ira da «comunidade internacional», quiçá palavras revoltadas e compungidas do
secretário-geral António Guterres contra um crime de amplas proporções.
Palavras que não se ouviram agora2.
Nem da parte de Guterres, nem do Conselho de Segurança, nem de qualquer outro
órgão normalmente tão eloquente, de Washington a Bruxelas, de Varsóvia a
Londres, Paris, Madrid ou Lisboa.
Não é novidade que a balança de
António Guterres está mal calibrada em assuntos internacionais e também no
Médio Oriente. A sua atenção, a sua pronta e dedicada solidariedade sempre que,
de tempos a tempos, um atentado atinge Israel chegam a ser comoventes, por isso
contrastando cruamente com o alheamento perante as arbitrariedades e as
constantes violações de direitos humanos em Jerusalém Leste e
na Cisjordânia e o ostensivo esquecimento devotado à permanente catástrofe
humanitária em Gaza.
O crime do silêncio, neste caso,
tem braços ainda muito mais longos e sem prazo de validade, uma vez que outorga
a Israel as autorizações – aliás desnecessárias – para prosseguir impunemente
os seus crimes, desprezando as vidas e os direitos elementares de seres humanos
inocentes.
Notas:
1.Enquanto
na Síria, no território sob controlo de Damasco, comunidades
religiosas de diversos quadrantes, entre elas a cristã, celebravam
pacificamente o Natal, o Estado de Israel escolheu esse dia para efectuar
mais um dos seus ataques aéreos, pondo em sério risco, deliberadamente, a vida
de centenas de civis inocentes.
2.António
Guterres manteve-se em silêncio imediatamente após o ataque de Israel e apenas
na noite seguinte, quando se levantaram vozes reconhecendo à Síria o direito de
retaliar contra um ataque à sua soberania, optou por produzir um apelo às partes para evitarem «actos
hostis» e «uma nova conflagração» no Médio Oriente.
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