terça-feira, 15 de janeiro de 2019

EUA | O Green New Deal sacode a política


Verde e Vermelho: surge um movimento para reduzir as emissões de carbono enfrentando, ao mesmo tempo, pobreza, desocupoção e desigualdade. Uma jovem deputada latina é seu símbolo

Naomi Klein, no Intercept Brasil | Outras Palavras | Tradução: Cássia Zanon

Como muitos outros, fiquei empolgada com a ousada liderança moral vinda de membros recém-eleitos do Congresso norte-americano — como Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Rashida Tlaib e Ayanna Pressley — diante da crise climática em espiral e dos espantosos ataques a migrantes desarmados na fronteira. Isso me fez pensar na diferença crucial entre uma liderança que atua e uma liderança que fala sobre atuação.

Vou chegar ao New Deal Verde e por que precisamos nos agarrar a essa corda salva-vidas com todas as forças. Mas, antes disso, me acompanhe em uma visita à grandiosa política climática do passado.

Era março de 2009, e as capas dos heróis ainda estavam esvoaçando em clima de comemoração na Casa Branca depois da histórica vitória eleitoral de Barack Obama. Todd Stern, o recém-nomeado emissário do clima, contou a um grupo no Congresso que ele e seus colegas negociadores precisavam abraçar seus super-heróis internos, salvando o planeta do perigo existencial em cima da hora.

A mudança climática, disse ele, pedia por “aquela velha sensibilidade das histórias em quadrinhos de se unir diante de um perigo comum que ameaça a Terra. Porque é isso que temos aqui. Não é um meteoro ou um invasor espacial, mas os danos ao nosso planeta, à nossa comunidade, aos nossos filhos e aos filhos deles serão igualmente grandes. Não podemos perder.”

Oito meses depois, na decisiva cúpula climática das Nações Unidas em Copenhague, na Dinamarca, toda a pretensão de super-heroísmo do governo Obama havia sido abandonada sem cerimônia. Stern percorreu os corredores do centro de convenções como a Morte, passando a foice em todas as propostas que resultariam em um acordo transformador. Os EUA insistiram em uma meta que permitiria o aumento da temperatura em 2ºC, apesar das objeções de muitos delegados africanos e ilhéus do Pacífico que diziam que essa meta equivalia a um “genocídio” e levaria milhões a morrerem em terra ou em barcos afundando. Foram derrubadas todas as tentativas de tornar o acordo juridicamente vinculativo, optando por metas voluntárias inexequíveis (como faria em Paris cinco anos depois).

Stern rejeitou categoricamente o argumento de que os países ricos e desenvolvidos devem compensar os pobres por conscientemente lançar na atmosfera o carbono que está aquecendo a Terra, usando, em vez disso, fundos tão necessários para a proteção da mudança climática para forçar esses países a se alinharem.

Como escrevi na época, o acordo de Copenhague – preparado a portas fechadas com os países mais vulneráveis deixados de fora – equivalia a um “pacto sujo entre os maiores emissores do mundo: eu finjo que vocês estão fazendo alguma coisa em relação à mudança climática se vocês também fingirem que eu estou. Combinado? Combinado.”

Quase nove anos depois, as emissões globais continuam a subir, junto com as temperaturas médias, com grandes áreas do planeta atingidas por tempestades recordes e causticadas por incêndios sem precedentes. Os cientistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática confirmaram exatamente o que os Estados africanos e insulares de baixa altitude alertam há muito tempo: permitir que as temperaturas subam 2ºC é uma sentença de morte; apenas uma meta de 1,5ºC nos dá uma chance de lutar. De fato, pelo menos oito ilhas do Pacífico já desapareceram sob os mares em elevação.

Os países ricos não apenas deixaram de lado a tecnologia limpa e negaram ajuda significativa às nações mais pobres para que se protegessem dos extremos climáticos. Na verdade, a Europa, a Austrália e os Estados Unidos reagiram ao aumento da migração em massa – se não causada diretamente, intensificada por estresses climáticos – com força brutal, variando da política “deixe-os afogar” da Itália à guerra cada vez mais real de Trump contra uma caravana desarmada da América Central. Que ninguém se engane: essa barbárie é a maneira como o mundo rico planeja se adaptar à mudança climática.

Hoje em dia, a única coisa que se parece com uma capa de super-herói na Casa Branca são todos aqueles casacos que Melania joga sobre os ombros, misteriosamente recusando-se a usar os orifícios das mangas para o seu propósito planejado. Enquanto isso, o marido dela está ocupado em abraçar seu papel de supervilão climático, aprovando alegremente novos projetos de combustíveis fósseis, estraçalhando o acordo de Paris (afinal, não é legalmente obrigatório, então, por que não?), e pronunciando que uma onda de frio no Dia de Ação de Graças é uma prova positiva de que o planeta não está aquecendo, afinal.
Em suma, o meteoro metafórico que Stern evocou em 2009 não está apenas se aproximando de nosso frágil planeta, ele está raspando as copas das árvores.

E, no entanto, aqui está o que é realmente estranho: eu me sinto hoje mais otimista em relação às nossas chances coletivas de evitar o colapso climático do que anos atrás. Pela primeira vez, vejo um caminho político claro e crível que poderia nos levar à segurança, a um lugar no qual os piores resultados climáticos são evitados e um novo pacto social é forjado, o que é radicalmente mais humano do que qualquer coisa atualmente em oferta.

Ainda não estamos nesse caminho – muito longe disso. Mas, ao contrário de um mês atrás, o caminho é claro. Começa com o impulso galopante conclamando o Partido Democrata dos EUA a usar sua maioria na Câmara para criar uma comissão para um New Deal Verde, um plano promovido por Ocasio-Cortez e agora apoiado por mais de 14 deputados.

O texto preliminar pede que a comissão, que seria totalmente financiada e autorizada a elaborar a legislação, passe o próximo ano consultando uma série de especialistas – de cientistas a legisladores locais, passando por sindicatos e líderes empresariais – para mapear um “detalhado plano nacional de mobilização industrial e econômica” capaz de tornar a economia dos EUA “neutra em carbono”, ao mesmo tempo em que promove “justiça econômica e ambiental e igualdade”. Até janeiro de 2020, esse plano seria lançado e, dois meses depois, viria um projeto de lei para transformá-lo em realidade.

Esse prazo inicial de 2020 é importante – significa que os contornos do New Deal Verde estarão concluídos até o próximo ciclo eleitoral dos EUA, e qualquer político que queira ser levado a sério como progressista precisará adotá-lo como peça central de sua plataforma. Se isso acontecer, e o partido no comando do New Deal Verde retomar a Casa Branca e o Senado em novembro de 2020, haveria de fato tempo sobrando no relógio climático para cumprir as duras metas estabelecidas no recente relatório do IPCC, que nos disse que temos apenas 12 anos para reduzir as emissões de combustíveis fósseis em 45%.

Isso, afirma o resumo do relatório em sua primeira frase, não é possível apenas com políticas como impostos sobre a emissão de carbono. Em vez disso, são necessárias “mudanças rápidas, de longo alcance e sem precedentes em todos os aspectos da sociedade”. Ao dar à comissão um mandato que conecta energia, transporte, moradia e construção, bem como assistência médica, salários dignos, garantia de empregos e o imperativo urgente de combater a injustiça racial e de gênero, o plano New Deal Verde estaria mapeando precisamente esse tipo de mudança de longo alcance. Não se trata de uma abordagem fragmentada que aponta uma pistola de água contra um fogo ardente, mas um plano abrangente e holístico para efetivamente apagar o fogo.

Se a maior economia do mundo parecer preparada para demonstrar esse tipo de liderança visionária, outros grandes emissores – como a União Europeia, a China e a Índia – quase que certamente se veriam sob intensa pressão de suas próprias populações para fazerem o mesmo.

Agora, nada a respeito do caminho que acabei de descrever é certo ou mesmo provável: A bancada do Partido Democrata, sob direção de Nancy Pelosi, provavelmente esmagará a proposta do New Deal Verde, assim como o partido arrasou com as esperanças de acordos climáticos mais ambiciosos sob Obama. Os investidores apostarão no partido fazer pouco mais do que ressuscitar o comitê climático que ajudou a produzir a legislação sobre limitação e comércio no primeiro mandato de Obama, um esquema de mercado mal sucedido e confuso que teria tratado os gases de efeito estufa como abstrações de capitalismo tardio a ser negociado, empacotado e especulado como moeda ou dívida subprime (o motivo pelo qual Ocasio-Cortez está insistindo que os legisladores que aceitam dinheiro de combustível fóssil não devem estar na comissão seleta do New Deal Verde).

E, claro, mesmo que a pressão sobre os legisladores continue aumentando e que os membros da comissão saiam vitoriosos, não há garantia de que o partido reconquistará o Senado e a Casa Branca em 2020.

E, no entanto, apesar de todas essas ressalvas, agora temos algo que estava faltando: um plano concreto sobre a mesa, além de um cronograma baseado na ciência, que não apenas é proveniente de movimentos sociais de fora do governo, mas que também tem um considerável (e crescente) bloco de defensores comprometidos dentro da Câmara.


Daqui a décadas, se tivermos a sorte de contar uma história emocionante sobre como a humanidade se uniu no momento certo para interceptar o meteoro metafórico, o capítulo central não será o momento cinematográfico altamente produzido de quando Barack Obama ganhou a primária e democrata e disse a uma multidão de adeptos que aquele seria “o momento em que a elevação dos oceanos começou a desacelerar, e nosso planeta começou a se curar”. Não, será o momento muito menos roteirizado e marcadamente mais sem graça em que um grupo de jovens cansados do Sunrise Movement ocupou os escritórios de Pelosi após as eleições de meio de mandato, pedindo que ela apoiasse o plano para um New Deal Verde – com Ocasio-Cortez passando pela ocupação para animá-los.

Sei que pode parecer excessivamente otimista investir tanto em uma comissão parlamentar, mas não é a comissão em si a minha principal fonte de esperança. É a vasta infra-estrutura de especialização científica, técnica, política e de movimento pronta para entrar em ação, se dermos os primeiros passos nesse caminho. É uma rede de grupos e indivíduos extraordinários que se mantiveram atentos ao foco e aos compromissos climáticos, mesmo quando nenhuma mídia queria cobrir a crise e nenhum grande partido político queria fazer algo além de fingir preocupação.

É uma rede que vem esperando há muito tempo para que finalmente haja uma massa crítica de políticos no poder capaz de entender não apenas a urgência existencial da crise climática, mas também a oportunidade única no século expressa em — como afirma o projeto de resolução — “eliminar virtualmente a pobreza nos Estados Unidos e tornar a prosperidade, a riqueza e a segurança econômica disponíveis para todos os que participam da transformação”.

O terreno para este momento vem sendo preparado há décadas, com modelos de energia renovável de propriedade da comunidade e controlada pela comunidade; com transições baseadas na justiça que garantem que nenhum trabalhador seja deixado para trás; com uma análise aprofundada das interseções entre racismo sistêmico, conflito armado e perturbações climáticas; com tecnologia verde aprimorada e avanços em transporte público limpo; com o animado movimento de desinvestimento em combustíveis fósseis; com a legislação modelo impulsionada pelo movimento de justiça climática que mostra como os impostos sobre carbono podem combater a exclusão racial e de gênero e muito mais.

O que está faltando é apenas o poder político de alto nível lançar o melhor desses modelos de uma só vez, com o foco e a velocidade que tanto a ciência quanto a justiça exigem. Essa é a grande promessa de um New Deal Verde abrangente na maior economia do planeta. E ao aumentar a pressão sobre os legisladores que ainda não assinaram o plano, o Sunrise Movementtem todo o nosso apoio.

É claro que não faltam especialistas em Washington prontos a rejeitar tudo isso como algo irremediavelmente ingênuo e inviável, o trabalho de neófitos políticos que não entendem a arte do possível ou dos pontos mais sutis da política. O que esses especialistas estão deixando de levar em consideração é o fato de que, ao contrário das tentativas anteriores de introduzir a legislação climática, o New Deal Verde tem a capacidade de mobilizar um movimento de massa verdadeiramente intersecional – não apesar de sua ambição radical, mas precisamente por disso.

Essa é a mudança radical de ter no Congresso representantes enraizados em lutas da classe trabalhadora por empregos com salários dignos e por ar e água não tóxicos – mulheres como Tlaib, que ajudou a travar uma batalha bem-sucedida contra a tóxica montanha de coque de petróleo da Koch Industries em Detroit.

Quando se faz parte da classe vencedora da economia e se é financiado por vencedores ainda maiores, como muitos políticos são, suas tentativas de criar uma legislação sobre o clima provavelmente serão guiadas pela ideia de que a mudança deve ser mínima e o menos desafiadora possível ao status quo. Afinal, o status quo está funcionando bem para você e seus doadores. Líderes com raízes em comunidades que estão sendo notoriamente reprovados pelo sistema atual, por outro lado, estão liberados para adotar uma abordagem muito diferente. Suas políticas climáticas podem abranger mudanças profundas e sistêmicas – incluindo a necessidade de investimentos maciços em transporte público, moradia acessível e assistência médica –, porque é justamente desse tipo de mudança que suas bases precisam para prosperar.

Como as organizações de justiça climática vêm discutindo há muitos anos, quando as pessoas que mais têm a ganhar lideram o movimento, elas lutam para vencer.

Outro aspecto revolucionário de um New Deal Verde é que ele é baseado no mais famoso estímulo econômico de todos os tempos, o que o torna à prova de recessão. Quando a economia global entrar em outra recessão, o que certamente irá acontecer, o apoio a esse modelo de ação climática não cairá, como ocorreu com todas as outras grandes iniciativas verdes durante recessões passadas. Em vez disso, o apoio aumentará, uma vez que um estímulo em larga escala se tornará a maior esperança de reavivar a economia.

Ter uma boa ideia não é garantia de sucesso, é claro. Mas, pense comigo: se a pressão por uma comissão em tordo de um New Deal Verde for derrotada, os legisladores que quiserem que isso aconteça podem considerar trabalhar com a sociedade civil para estabelecer algum tipo de corpo semelhante a uma Assembleia Constituinte para elaborar o plano de qualquer maneira, a tempo dele roubar a cena em 2020. Porque essa possibilidade é simplesmente muito importante, e o tempo, curto demais, para permitir que ela seja fechada pelas forças habituais da inércia política.

Conforme os eventos surpreendentes das últimas semanas se desenrolaram, com jovens ativistas reescrevendo as regras do possível dia após dia, eu me vi pensando em outro momento no qual os jovens encontraram sua voz na arena da mudança climática. Foi em 2011, na cúpula anual do clima das Nações Unidas, dessa vez realizada em Durban, na África do Sul. Uma estudante universitária canadense de 21 anos chamada Anjali Appadurai foi escolhida para falar aos presentes em nome (absurdamente) de todos os jovens do mundo.

Ela fez uma fala impressionante e implacável (a que vale a pena assistir na íntegra) que cobriu de vergonha os negociadores reunidos por décadas de inação. “Vocês vêm negociando a minha vida inteira”, disse ela. “Nesse período, deixaram de cumprir compromissos, não atingiram metas e quebraram promessas. … A maior traição da responsabilidade de geração de vocês em relação à nossa é que vocês chamam isso de “ambição”. Onde está a coragem nessas salas? Agora não é hora de ação gradual. No longo prazo, estes serão vistos como os momentos decisivos de uma era em que o interesse próprio estreito prevaleceu sobre a ciência, a razão e a compaixão comum.”

A parte mais dolorosa do discurso é que nem um único grande governo estava disposto a receber sua mensagem; ela estava gritando no vazio.

Sete anos depois, quando outros jovens estão localizando sua voz e sua raiva climáticas, finalmente há alguém para receber sua mensagem, com um plano real para transformá-la em política. E isso simplesmente pode mudar tudo.

Nas fotos; 1 - Em Washington, a marcha do Movimento Popular pelo Clima, em abril de 2017. Restrita por muito tempo a pequenos círculos, a preocupação com o aquecimento global ganhou as ruas, depois de eventos como os grandes incêndios florestais e os superciclones; 2 - A deputada Alexandra Ocasio-Cortez participa da ocupação do gabinete da líder do Partido Democrata, Nancy Pelosi. Com apenas 29 anos, descendente de portorriquenhos, Alexandra expressa a emergência de uma nova esquerda — radical mas popular — nos EUA

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