sábado, 23 de fevereiro de 2019

Portugal | Vícios públicos


Inês Cardoso | Jornal de Notícias | opinião

A cisão não é nova, mas a crispação sobe de tom a reboque de recentes decisões políticas.

Da incerteza na ADSE à colocação dos funcionários públicos num patamar salarial mínimo de 635 euros, não têm faltado motivos para se ouvir discutir as diferenças entre trabalhadores públicos e privados. Rui Rio foi o primeiro a discordar de distinções no salário mínimo nacional. Marcelo Rebelo de Sousa acompanhou essa reserva, embora insuficiente para travar a promulgação do diploma com as atualizações.

Há várias falácias neste tema. A primeira é considerar que alguma vez existiu um salário mínimo universal, quando a base da tabela na Função Pública foi, historicamente, autónoma. A segunda é criar a ideia generalizada de que os funcionários do Estado são privilegiados nestes aumentos, quando muitas das atualizações são anuladas pelo efeito travão nas progressões. Somando congelamentos a fatores como o duplo aumento dos descontos para a ADSE durante a intervenção da troika, a verdade é que milhares de funcionários públicos ganharam este mês, mesmo com aumentos, menos do que recebiam antes da recessão.


A dicotomia público/privado presta um bom serviço à propaganda do Governo e acaba por ser um espelho de alguns dos nossos vícios enquanto sociedade. Ao fazer eco de alegadas melhorias substanciais, mais apregoadas do que reais, o discurso de diabolização da Função Pública cria o ambiente perfeito para que reivindicações como as dos professores ou dos enfermeiros sejam olhadas com desconfiança. Facilitando a António Costa a tarefa de argumentar que os ganhos dos últimos anos já foram muitos e que o dinheiro não chega para tudo.

Pior, a dicotomia revela uma tendência de olharmos para o lado e querermos nivelar por baixo. Devíamos estar a exigir ao Governo reformas para que os serviços sejam mais eficazes e para que a economia seja fortalecida. Políticas que deem às empresas condições para crescer e pagar melhores salários. Com uma cultura de exigência, com objetivos de real crescimento, ganhamos todos. Com o vício de apontarmos o dedo a quem legitimamente aspira por mais, só colocamos travões uns aos outros.

*Diretora-adjunta do JN

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