Há algo essencial na celeuma
despertada pelos artigos de André Lara Rezende. Uma ideia básica do
neoliberalismo entrou em crise: não estamos condenados a submeter as decisões
políticas à lógica gélida dos mercados
Felipe Calabrez | Outras Palavras
Semana retrasada um artigo de
André Lara Resende no Valor Econômico deu o que falar entre os
economistas. No artigo, Lara Resende, um dos artífices do Plano Real, que
passou pela Presidência do Banco Central no Governo FHC e integra o mundo das
finanças privadas, vaticina uma crise terminal da teoria macroeconômica
dominante.
Não é a primeira vez que o autor
ataca o pensamento econômico dominante no Brasil e propagado por seus colegas
da ortodoxia. No início de 2017, no mesmo Valor,
Resende colocou em questão os fundamentos da teoria monetária que orientam as
decisões do Banco Central. (Comentei o episódio aqui).
A conclusão era de que os altos juros praticados no Brasil nas últimas décadas
não possuíam sustentação teórica alguma. O efeito dessas políticas, no entanto,
em termos distributivos e de baixo crescimento, são reais.
Dessa vez o economista foi ainda
mais longe. Se naquele momento sua crítica foi centrada na teoria monetária,
agora o alvo foi também a teoria fiscal. Resgatando a teoria das finanças
funcionais de Lerner, escrita na década de 1940, Resende põe em cheque a visão
fiscalista que inunda diariamente os jornais e domina o debate
econômico-moralista, que apregoa que o Estado, assim como a dona de casa, deve
equilibrar suas finanças a qualquer custo.
Em síntese, a ideia por trás de
seu argumento reside na prerrogativa que o Estado possui para emitir sua
própria moeda, o que o libera das restrições financeiras que se impõem a um
família ou empresa. A única restrição que se impõe então, ao Estado, diz
respeito ao volume de recursos (naturais e trabalho) disponíveis para a
atividade da economia. Se forem ultrapassados, produzem efeitos inflacionários.
O ponto mais interessante do
artigo, no entanto, reside nos efeitos que a controvérsia científica pode
produzir. Vejamos suas palavras:
“A compreensão da lógica da
especificidade dos governos que emitem sua moeda provoca uma sensação de
epifania, que subverte todo o raciocínio macroeconômico convencional. Toda
mudança de percepção que desconstrói princípios estabelecidos é inicialmente
perturbadora, mas uma vez incorporada, abre as portas para o avanço do
conhecimento”.
A desconstrução de paradigmas
científicos é lenta e exige embates, sobretudo no campo dos economistas,
conhecidos por se apegarem ferreamente a certas crenças. E aqui reside o perigo
a que estamos submetidos. Ora, não são eles – os economistas – os profissionais
credenciados a elaborar a política econômica que orienta as ações do Estado e
nos promete um mundo e um país melhores? E aqui levanto outra pergunta: Quais
são as bases sobre as quais Paulo Guedes se apoia ao afirmar de maneira
ameaçadora que se a reforma da previdência não passar, não haverá dinheiro para
pagar os salários dos servidores?
Não é preciso acompanhar
exaustivamente o debate econômico para notar que há um diagnóstico geral
propagado pelos economistas convidados a opinar nos jornais e telejornais, e
que esse diagnóstico foi inteiramente endossado pelo ministro Paulo Guedes e
elevado a um imperativo urgente, indiscutível e inquestionável. Ei-lo, em
síntese: O Estado deve cortar imediatamente seus gastos, sob pena de
inviabilizar o pagamento de suas despesas, a retomada do crescimento e o
bem-estar da população. Qualquer ponderação a essa máxima deve ser
imediatamente desclassificada, porque seria “populista”, mal intencionada ou
oriunda daquele incapaz de entender os fundamentos econômicos e contábeis que o
Ministro e sua equipe técnica supostamente dominam. Dessa máxima derivam,
então, a integralidade das propostas políticas da atual equipe econômica.
Reparem, faço questão de frisar, que são os “fundamentos econômicos” os
elementos chamados a dar ares de verdade e urgência ao programa político.
OmMinistro e seus técnicos jamais defenderão tal ou qual política em nome dos
interesses de setores da sociedade — seja industrial, financeiro,
agroexportador ou qualquer outro. Seria então o “saber econômico” do economista
Paulo Guedes que fornece o fundamento para o desenho das políticas propostas.
Voltemos então a Lara Resende:
“Já o desenho das políticas a
serem adotadas para sair da situação em que nos encontramos é completamente
diferente caso se adote a visão macroeconômica convencional ou um novo
paradigma. O velho consenso exige o corte das despesas, a venda de ativos estatais,
a reforma da Previdência e o aumento dos impostos, para reverter o déficit público
e estabilizar a relação dívida/PIB. É o roteiro do governo Bolsonaro sob a
liderança do ministro Paulo Guedes. A partir de um novo paradigma,
compreende-se que o equívoco vem de longe”.
A “situação em que nos
encontramos” é conhecida: a economia opera com imensa capacidade ociosa e o
desemprego atinge níveis alarmantes, na casa dos 12%, o que significa um brutal
desperdício de recursos físicos e humanos. Parte expressiva da população se
ocupa da informalidade e, portanto, está inserida em uma atividade que não gera
qualquer receita para o sistema de seguridade e Previdência Pública, aquele
que, insistem alguns economistas, não pode ser deficitário. E diante dessa
tragédia humana, que produz quilométricas filas de pessoas no Anhangabaú em
busca de emprego enquanto outros milhares se arriscam clandestinamente nos
vagões de trem para vender água, biscoitos de polvilho e fones de ouvido
produzidos na china, qual a ação do governo?
A resposta é: nenhuma. Não há
qualquer ação que vise diretamente minimizar a penosa situação dessas pessoas.
Não há qualquer movimento que vise fomentar a demanda agregada via
investimentos públicos porque, lembremos da máxima, “não há espaço fiscal!”.
Não há também em curso uma reforma do sistema previdenciário que vise ampliar,
ou mesmo garantir, uma renda minimamente humanitária àqueles trabalhadores que
estão na informalidade, pois, reza a máxima, o sistema não pode ser
“deficitário”, pois isso elevaria a relação dívida/PIB a níveis insustentáveis.
E soma-se a essa tragédia a recente ameaça de interrupção do pagamento de
salários aos servidores, medida que reduziria ainda mais a renda em circulação. Tudo
em nome do “equilíbrio fiscal” e contenção do endividamento público.
E qual seria o limite máximo do
endividamento público? Não se sabe. A rigor, não há qualquer resposta da ciência
econômica a essa questão. Tudo dependeria das condições de financiamento
do governo, e, dizem alguns, da “disposição dos investidores em emprestar ao
governo” e sob qual taxa de retorno. E aqui volta a questão que o texto de
Resende nos traz: Quem determina a taxa de juros? De onde vem a moeda?
Se estiver correta a teoria
segundo a qual a soberania do Estado sobre a cunhagem da moeda o livra de
restrições financeiras, colocando como limite de seus gastos apenas a
capacidade da economia, que hoje opera com enorme capacidade ociosa, estaríamos
então experimentando fortes doses de sofrimento humano sem razão alguma?
Aqui, como pode notar o leitor, a
questão não está mais restrita a uma mera controvérsia “acadêmico-científica”,
como se tratasse de um “mundo das ideias” desconectado do mundo real. Ao
contrário disso, não são os fundamentos científicos que orientam a ação pública
e oferecem as credenciais de verdade ao discurso do Ministro da Fazenda e
estabelecem as fronteiras entre o possível e o impossível, entre a
“necessidade” e o “populismo irresponsável” daqueles que não compreendem a
verdade?
Ora, poderá pensar o leitor que
sucumbo aqui a uma ingenuidade teoricista, como se o mundo real pedisse licença
às teorias para operar seus interesses mais mesquinhos. Não se trata disso. Não
resta qualquer dúvida de que os donos do dinheiro grosso, aqueles diretamente
interessados em moeda, dívida pública e taxa de juros, são atores fundamentais
nesse jogo. No entanto, permanece a questão: se a base sobre a qual se apoia o
programa do governo está em xeque, o que teria ele a nos dizer? O ministro da
Fazenda vai refutar cientificamente aqueles que lhe roubam a verdade? Sabemos
que não, pois não é sua função.
Mudará então o fundamento do seu
discurso, desnudando os interesses setoriais e mesquinhos sobre os quais se
apoiam suas propostas? Tampouco, pois isso lhe solaparia qualquer fundo de
legitimidade. O que lhe resta então é se agarrar à verdade de seu discurso e
apostar em ameaças e omissões enquanto o avanço do conhecimento corrói como
traças os consensos estabelecidos.
Aqui fica claro porquê a polêmica
teórica instaurada por André Lara Resende é importante demais para ficar
restrita a um debate entre especialistas. Ela traz à tona questões que dizem
respeito às condições de vida de todos. É urgente que a “verdade” que
desclassifica as necessidades do cidadão comum em nome de uma necessidade da
“economia” seja traduzida em linguagem simples. Até porque essa verdade, ao que
tudo indica, esta morta. Seu enterro pode ajudar a desnudar os interesses e
orientar a luta política.
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