terça-feira, 12 de março de 2019

São Tomé | Drenar o pântano: Ver para crer


Adelino Cardoso Cassandra* | opinião

Muito recentemente, tive a oportunidade de ouvir uma pequena reportagem ou conjunto de entrevistas avulsas, na RDP-África, tendo a região autónoma do Príncipe como epicentro, sobre o processo de distribuição e comercialização do arroz ofertado ao país pelo Japão naquela região do nosso arquipélago.

Sinceramente que fiquei estupefacto com a emergência ou manifestação de sintomas e atropelos, por parte do atual governo central, neste âmbito específico, que, julgava erradicados no nosso país, como prática procedimental, até pelo facto do atual primeiro-ministro, reiteradamente, nos ter prometido fazer diferente, neste e todos os outros domínios de governação.

Durante aquele conjunto de entrevistas, tive a oportunidade de ouvir vários comerciantes da região autónoma do Príncipe, num tom inusitadamente crítico e de grande irritação, condenar todo o processo de distribuição e posterior comercialização do referido arroz, naquela parcela do nosso território, que privilegiou, de forma discriminatória, os militantes do MLSTP naquela região, deixando-os, em contrapartida, com autênticas migalhas e outros, ainda, sem nada.

Um daqueles comerciantes chegou a afirmar, naquela entrevista, que, tendo em conta tal procedimento por parte do governo central, tal facto representaria, indubitavelmente, um desrespeito, não só aos pequenos empresários regionais como significaria uma afronta e desconsideração ao governo e toda a comunidade regional.


É preocupante, como, em menos de três meses, após a tomada de posse, estamos perante um governo novo, dirigido por um primeiro-ministro que nos prometeu um “mundo novo”, mas, todavia, com práticas anacrónicas que denunciam o estilo e modus operandi inconfundível do “velho MLSTP”.

De facto, nesta operação, quase clandestina, do “arroz do Japão”, tivemos, por parte do atual governo central, os mesmos tiques que caracterizam o “velho MLSTP”: nepotismo, clientelismo, falta de transparência, arrogância, desrespeito por outras instâncias de organização do nosso Estado e predação sobre bens públicos.

Num país sério e com um governo decente, o responsável por esta pasta ministerial seria automaticamente exonerado e faz-me alguma confusão que, o primeiro-ministro, depois de, reiteradamente, nos ter prometido mudança de práticas e procedimentos, mais transparência, maior cumprimento da legalidade, melhor organização e controlo dos bens públicos e mais equidade e aprofundamento democrático, em menos de três meses de vigência do seu próprio governo, o “arroz do Japão” o tenha colocado em prova, desmentindo, um por um, todos os seus propósitos reformadores anunciados atempadamente.

Esta afronta aos valores e princípios reformadores, reclamados pelo primeiro-ministro, para a legislatura em curso, não veio de uma qualquer direção administrativa ou empresarial do Estado, de uma estrutura partidária ou de uma autarquia dirigida pelo partido em causa; muito pelo contrário, veio do próprio núcleo governamental que, o primeiro-ministro, aparentemente, deveria controlar e manter em ordem.

E é bom que se lembre que o tal “arroz do Japão” não foi ofertado ao MLSTP mas, sim, ao povo de S.Tomé e Príncipe e qualquer tentativa, mais ou menos clandestina, de o transformar num instrumento de compensação, com fins político-partidários, privilegiando seletivamente alguns comerciantes nacionais em detrimento de outros é, em si mesmo, um ato de nepotismo, de falta de transparência e justiça e, até, em última instância, de corrupção. É óbvio que os referidos comerciantes já começaram a pensar: se eles fazem isto com o “arroz do Japão” o que não farão, por exemplo, com as linhas de crédito para os pequenos empresários recentemente referenciadas pelo próprio primeiro-ministro, após a sua visita a Angola?

Sai um governo e entra outro, o país continua, de forma obstinada, numa espécie de pântano e qualquer observador, menos informado sobre a nossa realidade socioeconómica e política, pode pensar que estamos perante um cíclico concurso insular para determinar qual será a estrutura partidária nacional que, uma vez no governo da república, mais rapidamente conseguirá transformar o próprio Estado na principal organização criminosa do país sem quaisquer referências éticas ou judiciais que garantam a sobrevivência da nossa comunidade.

É este o pântano que o primeiro-ministro Jorge Bom Jesus nos prometeu drenar durante os próximos quatro anos.

O problema é que, aparentemente, as pessoas começam a interiorizar a ideia, no interior e exterior do país, que existe uma contradição entre os seus propósitos reformadores, recorrentemente verbalizados, e a ação governativa, tendo passado, somente, três meses de vigência do seu governo.

Só pode haver duas interpretações para este comportamento: ou o senhor primeiro-ministro decidiu fazer um exercício político de dissimulação, muito comum nas nossas paragens; ou, em alternativa, ele foi capturado, no interior do seu próprio partido, por interesses privados tão fortes que o impedem de agir de acordo com os seus propósitos reformadores, estando estes interesses, representado pelo “velho MLSTP”, no próprio governo que ele dirige.

Em qualquer das alternativas anteriores, estaríamos, necessariamente, daqui por quatro anos, no nosso incontornável ponto de partida: o pântano.

Tal significaria, objetiva ou subjetivamente, o falhanço completo do reformismo, recorrentemente propalado pelo primeiro-ministro Jorge Bom Jesus, e a morte, quase definitiva, do MLSTP, por ter andado quatro anos a fingir que estava a governar, consequência do uso da dissimulação como estratégia política permanente; ou, como das outras vezes, condenado por julgamento popular por somente valorizar grupos de amigos, quando está no governo da república, por práticas recorrentes de clientelismo e nepotismo.

E é difícil entender como é que este “velho MLSTP” tem dificuldades em compreender que foram exatamente estas práticas, recorrentemente utilizadas pelo referido partido quando foi chamado para funções governativas no país, que ofereceu munições ao ADI, e especialmente ao Patrice Trovoada, para condenar o partido em causa, durante muitos anos, a uma quase nulidade política, cujos efeitos, ainda hoje, perduram, em quase toda a extensão do país.

O primeiro-ministro Jorge Bom Jesus não estando a praticar um exercício de dissimulação, como creio, deve, contudo, sentir-se, neste momento, completamente capturado por interesses privados muito fortes vindos do interior do seu próprio partido.

Jorge Bom Jesus deve sentir-se, neste momento, o homem menos livre do país, apesar de ser primeiro-ministro.

Só assim se compreende esta contradição entre o seu discurso reformador e as decisões políticas que toma ou deixa de tomar para o cumprimento dos objetivos relacionados com esta suposta agenda reformadora. Pagaremos todos, mais uma vez, como comunidade, um preço altíssimo, por um capricho egoísta, açambarcador e inconsequente deste “velho MLSTP”.

Não podendo agir, em termos de decisões políticas consequentes, de acordo com a sua suposta agenda reformadora, apesar de ser primeiro-ministro, só resta ao Jorge Bom Jesus a utilização de instrumentos de natureza simbólica para a expressão deste desejo, deixando, todavia, o pântano como está, durante os próximos quatro anos.

É por isso, aliás, que a receita do primeiro-ministro, como instrumento de intervenção política, relativamente aos seus desejos reformadores, neste momento de reclusão, voluntária ou involuntária, restringe-se somente: aos soundbites produzidos em discursos ou intervenções políticas de ocasião; ao fomento de contactos permanentes e afetuosos com o povo; às manifestações de gestos, de nobreza de caráter, como, por exemplo, o de devolver às finanças o remanescente dos subsídios de viagens realizadas ao exterior, ou ainda, à decisão governamental de impedir os ministros de poderem viajar em classes executivas.

Não se percebe, por exemplo, se, o objetivo do primeiro-ministro e do seu governo, a montante, está relacionado com poupanças que tais decisões simbólicas venham a proporcionar às finanças públicas de um país pobre como o nosso, por que razão o governo que ele dirige não apresenta, em alternativa, um vasto plano de contenção de despesas, em todos os domínios da administração e empresas públicas, que inclua, também, a contenção na aquisição e distribuição anárquica, por parte do Estado, de automóveis aos seus dirigentes ou discipline as nomeações para cargos públicos ou empresas do Estado, muitas vezes desnecessariamente, obedecendo somente a critérios partidários?

Isto também é demonstrativo da situação de reclusão, voluntária ou involuntária, em que se encontra o senhor primeiro-ministro, por parte deste “velho MLSTP”, e não o permitirá drenar o pântano em que continuamos a viver.

Percebe-se, por tudo isto, o recurso às decisões e atos de natureza simbólica, como aqueles que referi anteriormente, por parte do senhor primeiro-ministro, em detrimento de uma boa e verdadeira política reformadora que o pais precisaria neste momento.

Só que estes gestos de natureza simbólica, para além de não terem efeito transformador efetivo, sobretudo numa sociedade com os problemas que a nossa apresenta, só têm impacto nas pessoas que estão dispostas a acreditar ou crer genuinamente neles.

As pessoas necessitam, em primeiro lugar, de reconhecer, no primeiro-ministro, a legitimidade de um genuíno reformador, decorrente das políticas que implementa para a modificação da realidade prevalecente para, posteriormente, darem algum valor ao poder simbólico que as suas ações, eventualmente, exercem nelas.

Neste âmbito, quando o senhor primeiro-ministro, deixa de tomar uma decisão política reformadora necessária, ou, em alternativa, toma uma iniciativa política nociva, com impacto no contexto social, político ou económico do país, decorrente da situação de clausura, voluntária ou involuntária, em que se encontra, não é o “poder simbólico” das suas ações que atenuarão as consequências daqueles atos.

Para que este “poder simbólico” tenha impacto é preciso que seja reconhecido por parte daqueles que estão submetidos ao mesmo.

É preciso que as pessoas acreditem, confiem e, em suma, dêem um voto de credibilidade ao primeiro-ministro para poderem acreditar neste “poder simbólico”.

Ora, isto parece-me extremamente difícil, reinando a contradição inultrapassável entre aquilo que é má política decorrente da clausura, voluntária ou involuntária, em que o primeiro-ministro se encontra, neste momento, e a manifestação de ações de natureza simbólica para compensar este estado de clausura.

Nenhum empresário estrangeiro vai investir no país pelo facto do primeiro-ministro devolver às finanças o remanescente dos subsídios de viagens realizadas ao exterior mas, todavia, deixarão de o fazer, de certeza absoluta, se souberem que estamos perante um país em que os governantes, por prática de nepotismo,  clientelismo e falta de transparência, privilegiam os amigos, clientes e apaniguados partidários, por exemplo, em processos de distribuição e comercialização de bens públicos ofertados ao país.

Trata-se de uma questão de boa ou má política e não de ações de natureza simbólica que, sendo necessárias, não têm impacto transformador que o país necessita.

Não tenho dúvidas nenhumas que o Jorge Bom Jesus é uma pessoa séria, honesta, íntegra e imbuída de propósitos reformadores para o país. Não deixo de reconhecer a importância, moralmente inquestionável, destes gestos simbólicos que ele tem realizado que o dignificam como um grande Santomense. Mas como político tenho muitas dúvidas que ele consiga fazer muito mais do que isto, tendo em conta o estado de clausura, voluntária ou involuntária, em que ele se encontra, nas mãos deste “velho MLSTP” que não tem emenda. É preciso muito mais do que estes gestos simbólicos para drenar o pântano em que vivemos. Como S.Tomé prefiro “Ver para Crer”.

*Adelino Cardoso Cassandra | Téla Nón

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