A produção declina, o desemprego
volta a crescer, os investimentos não voltarão tão cedo. Mas eles insistem na
miragem “Reforma da Previdência” – como se quisessem voltar a Pinochet, aos
banhos de sangue, ao fascismo de mercado
José Luís Fiori | Outras Palavras
| Imagem: Salvador Dalí,O sono (1937)
“Quem diria que no começo do
mandato de um governo liberal ele
iria sancionar subsídios e discutir a retomada de proteções setoriais.
iria sancionar subsídios e discutir a retomada de proteções setoriais.
Não é só a tarifa do leite, é a proteção de bens de capital”.
-Marcos Lisboa, O Globo, 18/02/2019
Súbito, fez-se o consenso, e já
não é mais possível tapar o sol com a peneira: no primeiro trimestre de 2019, a economia brasileira
entrou em marcha forçada na direção do colapso. Em apenas três meses, o mercado
reduziu quatro vezes seguidas seu prognóstico com relação ao crescimento do PIB
de 2019, que caiu de 3% para 1.8%. E tudo indica que seguirá caindo, tanto que
o próprio mercado reconhece que não haverá retomada dos investimentos neste
ano, qualquer que seja a circunstância. Pelo Índice de Atividade Econômica do
Banco Central (o IBC-BR), a economia brasileira recuou 0,41% no mês de janeiro,
enquanto a produção industrial despencava 0,8% no mesmo mês, segundo o IBGE. No
acumulado do trimestre, o preço da gasolina subiu 28,3% e, no mês de março, a
produção de veículos caiu 6,4% com relação a fevereiro, enquanto a capacidade
ociosa da indústria química chegou a 25%, e a da economia brasileira ronda os
40%. A taxa de desemprego subiu de 11,6% para 12,4%, e o número de
desempregados chegou aos 13 milhões, com aumento de um milhão em apenas três
meses, numa economia que já tem 27,9 milhões de subempregados, em uma sociedade
que voltou a ter 21% da sua população abaixo da linha da pobreza. Por fim, as
receitas federais e o otimismo dos empresários e da população vêm caindo de forma
acelerada e contínua.
Tudo isto poderia ser apenas um
soluço econômico, mas não é. Na década de 2011 a 2020, a taxa média esperada
do crescimento anual da economia brasileira deverá ser de apenas 0,9%, segundo
estudo publicado pelo IBRE, da Fundação Getúlio Vargas. Uma taxa média menor
que a da década de 80, que foi de 1,6%, e por isso chamada de “década perdida”. Segundo esse mesmo estudo do IBRE/FGV, o crescimento médio desta década deverá
ser o pior dos últimos 120 anos da história brasileira, implicando um
empobrecimento anual dos brasileiros na ordem de 0,3% do PIB ao ano. E não há
no momento a menor perspectiva de reversão deste quadro, com a taxa de
investimento da economia brasileira girando em torno dos 15,5%, taxa muito
inferior à do Chile ou do México, que está na casa dos 20%, e muitíssimo
inferior à taxa de investimento de alguns sócios brasileiros do BRICS, como é o
caso da China, que investiu 44,18% do PIB em 2018, ou mesmo da Índia, que
investiu 31,4% no mesmo período, segundo dados do FMI.
Uma situação que fica ainda mais
difícil para o Brasil, num momento em que o mercado mundial de bônus vem
caindo, sobretudo no caso dos bônus do governo alemão e dos títulos do tesouro
norte-americano, tornando os investidores internacionais cada vez mais
reticentes, apesar do afrouxamento da política monetária do BCE e do FED. O
economista Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano,
considera que a economia mundial está entrando num longo ciclo de “estagnação
global”, enquanto outros economistas falam do descenso de mais um ciclo de
Kondratiev, mas a consequência é a mesma: para sair do buraco nessa conjuntura
internacional, o Brasil terá que contar com seus próprios recursos e estímulos,
para poder crescer de maneira contínua, a taxas de 3 e 4%, em um período de
pelo menos 5 a
10 anos. É a única forma de absorver a capacidade ociosa e eliminar o
desemprego, retomando o caminho do crescimento indispensável para que uma
economia “atrasada” ou “imatura” consiga vencer sua miséria, reduzir sua desigualdade
social e participar, em igualdade de condições, da competição entre as nações
pela riqueza mundial.
Para enfrentar esse desafio, os
economistas liberais têm uma proposta simples e recorrente: reformar a
Previdência, privatizar empresas estatais e fazer reformas institucionais que
abram e desregulem os mercados. Com relação à proposta de privatização da
Previdência, balanço recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
constata que dos 30 países que fizeram a mesma reforma, entre 1981 e 2014, 18
já voltaram atrás em decorrência do fracasso de seus novos sistemas de
capitalização, iguais ao que está sendo proposto no Brasil. E a própria reforma
chilena, que foi concebida pelo economista José Piñera, do grupo dos Chicago
Boys, e depois imposta por decreto ditatorial do General Pinochet em 1981 (ou
seja, oito anos depois do golpe militar de 1973), hoje vem sendo questionada de
forma cada dia mais agressiva, por uma verdadeira massa de idosos, pobres ou
miseráveis, frustrados com os resultados desastrosos do novo sistema.
De qualquer maneira,
independentemente do seu custo social e do seu verdadeiro impacto fiscal, o que
importa destacar é que a privatização da Previdência não tem, nem nunca teve,
nenhuma conexão direta com a taxa de investimento da economia, e portanto
também não tem nenhuma capacidade de induzir crescimento econômico. E tudo o
que os economistas liberais dizem sobre este assunto envolve uma especulação
mágica e psicológica sobre as “expectativas dos investidores”, que não tem
nenhuma base teórica nem evidência empírica, inclusive porque os “investidores”
já podem ter perdido sua “confiança” e seu “interesse” na “sobre-oferta”
mundial de reformas da Previdência. Por outro lado, a privatização das demais
empresas estatais só gera recursos do tipo once for all, e não garante
nenhum tipo de investimento posterior dentro da economia brasileira.
O mesmo pode ser dito com relação
às demais “reformas” de que falam os economistas liberais, visando desregular e
abrir os mercados. Qualquer economista, de qualquer tendência teórica, sabe que
nenhuma dessas reformas irá reacender, por si mesma, o “animal spirit” dos
investidores, capaz de recolocar a economia brasileira na trilha do
crescimento. Deste ponto de vista, é bom olhar para a experiência recente da
Argentina de Mauricio Macri, que depois de três anos adotando políticas
ortodoxas e reformas liberais – incluindo a reforma da Previdência – teve um
crescimento negativo do PIB de 2,5% em 2018, e tem uma previsão de queda de
3,1% para 2019. Um resultado desastroso, que se soma a uma taxa de inflação que
está na casa dos 47%, com um desemprego de 9,1 % e com 32% da população
argentina situada abaixo da linha de pobreza.
Nada disso, entretanto, parece
atingir ou afetar a inabalável crença dos economistas liberais, no cálculo
utilitário do homo economicus, na existência de mercados abertos e
desregulados, e na possibilidade de separar a economia capitalista do poder do
Estado. É quase impossível para um economista liberal entender e aceitar que a
economia envolve relações sociais de poder, e é parte de uma luta pela riqueza
entre as grandes corporações e os grandes Estados nacionais. Os economistas
liberais raciocinam como se estivessem no ponto zero da história, dentro de uma
economia homogênea e com atores equipotentes quando, de fato, vivem numa
sociedade que já é, de partida, desigual e heterogênea, envolvendo interesses
econômicos e sociais excludentes e conflitivos. E tudo isto dentro de um
sistema internacional em que os grandes Estados se valem de suas economias
nacionais como instrumentos na sua luta pelo poder e a riqueza internacionais.
Dentro deste pensamento abstrato
e irreal dos economistas liberais, é um grande passo teórico e um avanço
realista a redescoberta da teoria estatal da moeda, de Georg Knapp, com o
reconhecimento da relação indissolúvel entre o poder e a moeda – mesmo quando
seja necessário acrescentar ao raciocínio de Knapp que a autonomia econômica
dos Estados com relação ao manejo de suas próprias moedas também depende da sua
posição dentro da hierarquia mundial do poder político e militar. Mas este já
seria outro assunto e outra discussão.
Por isso voltemos ao ponto
central do nosso argumento quanto à impotência da resposta dos economistas
liberais frente ao desafio que o Brasil está enfrentando neste final da segunda
década do século XXI. Do nosso ponto de vista, como já dissemos, os economistas
liberais partem de premissas teóricas que desconhecem a complexidade do mundo
real, nacional e internacional, e defendem um pacote de “reformas” que não leva
em conta a heterogeneidade dos interesses e as hierarquias de poder que separam
e contrapõem os capitais individuais e as classes sociais e, finalmente,
propõem políticas e medidas que não foram concebidas para promover o
crescimento acelerado de países “atrasados” ou “imaturos”. Isso talvez ajude a
entender por que os empresários e economistas liberais sejam sempre os
primeiros a ser chamados, mas sejam também os primeiros a ser dispensados pelos
governos brasileiros que nasceram dos golpes militares – de 24 de outubro 1930,
de 19 de novembro de 1937, de 29 de outubro de 1945, de 24 de agosto de 1954 e
de 31 março de 1964.
No sentido inverso, talvez também
sejam essas mesmas recorrências históricas do passado que expliquem a paradoxal
admiração contemporânea de alguns economistas liberais brasileiros pelo Sr.
Augusto Pinochet, a figura por excelência de governante violento, ignorante e
corrupto, que se dedicou durante 15 anos à eliminação física de seus
adversários e de toda a atividade política dissidente do seu país. Um
verdadeiro “banho de sangue” que permitiu, em última instância, que os Chicago
Boys chilenos pudessem impor ditatorialmente suas políticas e reformas, por
cima de 3 mil pessoas mortas e mais 20 mil chilenos torturados, em nome do
regime que outro economista norte-americano, Paul Samuelson, chamou de
“fascismo de mercado”.
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