Afinal, o relatório de Robert
Mueller não é tão assim tão tedioso, tão pálido, tão desprovido de novidades
como se esperava. Afinal, sempre houve “esforço concertado de Trump para
impedir a investigação” e um Trump enquanto candidato a presidente que “pediu
aos seus associados que conseguissem os emails de Hillary Clinton”, além de 30
perguntas de Mueller às quais o Presidente respondeu com “não sei, não me
lembro”. Agora, há uma vaga de nova revolta democrata que não vai parar de
explorar as potenciais armadilhas legais que ainda pode colocar no caminho de
Trump antes das eleições de 2020
Ao saber das principais conclusões
do relatório do procurador-especial Robert Mueller reveladas esta quinta-feira,
Donald Trump escreveu no Twitter que o jogo tinha terminado. “Game Over”, foram
as suas palavras, acompanhadas de uma imagem editada da série “Game of
Thrones”. Mas pode não ser bem assim. Embora não tenham sido encontrados
indícios de conluio entre Trump e a Rússia nas presidenciais de 2016 ou de
tentativas de obstrução à justiça norte-americana por parte de Trump, o
relatório é coisa para deixar o Presidente norte-americano, no mínimo,
desconfortável.
O procurador-especial já foi
chamado pelos democratas à Câmara dos Representantes e é provável que muitos
dos deputados democratas (que formam a maioria nessa câmara) continuem a
insistir no “impeachment” de Trump. Também William Barr, o novo
procurador-geral, irá ao Comité Judiciário a 2 de maio e espera-se um
interrogatório duro, já que muitos democratas, como é o caso do próprio
presidente desse comité, Jerry Nadler, acreditam que não há razão para que a
leitura que Barr faz do relatório seja tão branda com Trump e os seus
associados. Barr já tinha tido acesso a uma versão mais pequena do relatório e
na altura disse que o relatório ilibava o presidente, tanto de conluio com os
russos durante a campanha para as presidenciais de 2016, como de obstrução à
justiça. Mas, depois de se ler o relatório, há várias passagens que parecem
provar precisamente o contrário.
NÃO CRIMINALIZA MAS NÃO ILIBA
Além disso, há também o pequeno
pormenor de que Mueller escreve a seguinte frase, sem rodeios: “Enquanto este
relatório não conclui que o Presidente cometeu um crime, também não o iliba”.
Esta é uma das frases-chave para os democratas, mas há outra. No relatório,
Mueller explica que o Congresso pode agora pegar nas suas conclusões e
continuar a investigação: "O Congresso pode aplicar as leis de obstrução
ao exercício corrupto do poder do cargo de presidente, isso está de acordo com
o nosso sistema constitucional e com o princípio de que nenhuma pessoa está
acima da lei."
E é com estas frases de Mueller
como sustentação que os democratas devem agora partir para os seus próprios
esforços de investigação. Adam Schiff, presidente do Comité Permanente dos
Serviços de Informações da Câmara dos Representantes, disse que o relatório
indica que as ações de Trump e seus associados durante a campanha "são
inquestionavelmente desonestas, antiéticas, imorais e antipatrióticas" e
que o que vem no relatório "não é motivo para exoneração, é mais para
condenação", disse aos jornalistas esta tarde, na Califórnia.
Questionado sobre a afirmação de
Trump "the game is over", Schiff disse que "certamente não
está". O líder da maioria democrata na Câmara, Steny Hoyer, disse à CNN
que não há nada que ele tenha visto até agora no relatório de Robert Mueller que
pudesse mudar a atual estratégia de liderança da Câmara, que é a de evitar
procedimentos de 'impeachment'. “Com base no que vimos até agora, não vale a
pena avançar com 'impeachment'. Muito francamente, há uma eleição em 18 meses e
o povo americano fará o seu julgamento ”, disse Hoyer.
Jerry Nadler, numa conferência de
imprensa, acusou o procurador-geral, William Barr, de "prejudicar seu
próprio departamento para proteger o presidente Trump" e disse que foi
"desonesto e enganador" da sua parte dizer que Trump está "livre
de qualquer acusação". Na mesma conferência de imprensa, Nadler disse que
"é muito cedo para falar em destituição" porque primeiro é preciso
ver "onde nos leva o mapa oferecido por este relatório" e, também,
porque estão previstas mais investigações. No entender de Nadler, os americanos
"não podem acreditar no que Barr nos diz". "O relatório Mueller
descreve provas perturbadoras de que o presidente Trump se envolveu em
obstrução da justiça", disse.
TRUMP SÓ NÃO OBSTRUIU A JUSTIÇA
PORQUE OS SEUS HOMENS MAIS PRÓXIMOS NÃO RESPEITARAM AS SUAS ORDENS
Vamos voltar um pouco atrás na
história das ligações de Donald Trump aos russos até ao dia em que o “New York
Times” publicou, nas páginas de opinião, um artigo com identidade anónima.
Nesse texto, que denunciava o presidente dos Estados Unidos como um homem com
um raciocínio próximo de “um estudante do 11º ano”, entre outras coisas
bastante graves sobre a forma como conduzia a sua presidência, há uma ilação que
adquire agora a textura de uma evidência. Essa fonte anónima diz que são os
homens de quem o presidente se rodeou que o impedem de cometer erros graves,
potencialmente desastrosos para os Estados Unidos e para o mundo. Esta
quinta-feira, o relatório preparado ao longo de mais de dois anos pelo
investigador-especial Robert Mueller, com mais de 400 páginas, refere
precisamente o mesmo: não foi porque não quis, mas sim porque a contenção dos
seus subalternos o impediu de estar hoje a caminho de um banco de réus para
responder pelo crime de obstrução à justiça. O relatório elenca três ocasiões
em que isto sucedeu.
Primeiro, quando pediu ao
ex-diretor do FBI James Comey que pusesse um fim à investigação a Michael
Flynn, conselheiro para a segurança nacional de Trump no início do mandato, o
que resultou no seu julgamento e condenação por mentir ao FBI. Segundo, quando
pediu a Don McGahn (seu ex-conselheiro para assuntos legais), repetidas vezes
telefonando até para a sua casa, que afastasse Mueller, coisa a que McGahn não
cedeu, colocando, aliás, o lugar à disposição. Também Corey Lewandowski, seu
ex-gestor de campanha, teve nas suas mãos pressionar ou não o então
procurador-geral Jeff Sessions para que afastasse Mueller, mas a mensagem de
Trump nunca chegou a Sessions, porque Lewandowski nunca a entregou.
Muitos dos incidentes que Mueller
examinou, por representarem uma possível obstrução à justiça, foram objeto de
reportagens, artigos, denúncias em vários meios de comunicação - histórias que
sempre foram negadas por Trump e seus aliados. O que é impressionante no
relatório de Mueller é que ele consegue juntá-los de forma a mostrar um padrão
de comportamento que mostra a intenção de Trump. Esta é uma das razões que leva
os democratas - e milhares de pessoas nas redes sociais sob a ‘hashtag’
#TrumpColluded, “Trump esteve em conluio”, ou #TrumpObstructed, “Trump
Obstruiu”. Até porque o relatório não diz, em nenhum ponto, que não houve
obstrução, diz, aliás, que se, de facto, não houvesse obstrução, era isso mesmo
que tinha ficado escrito, mas não foi: "Se tivéssemos confiança após uma
investigação completa dos fatos de que o presidente claramente não cometeu
obstrução da justiça, era isso mesmo que teríamos escrito. Com base nos factos
e nos padrões legais aplicáveis, não poderemos chegar a esse julgamento”, lê-se
no relatório.
CAMPANHA DE TRUMP FOI “RECETIVA”
ÀS OFERTAS DO KREMLIN, ESPERANDO SER “BENEFICIADA ELEITORALMENTE”
Além disso, há outras revelações
novas no relatório tornado público nesta quinta-feira, embora numa versão
bastante editada, como o mostram as inúmeras manchas negras que preenchem
metade de algumas páginas ou mesmo páginas inteiras. Uma delas diz respeito aos
“numerosos contactos” realizados entre a campanha de Trump para as
presidenciais de 2016 e a Rússia.
Embora não se possa afirmar que
tenha sido criada uma conspiração criminal (Mueller também não conseguiu obter
informação suficiente para solidificar uma acusação de violação da lei do
financiamento de campanhas contra Donald Trump Jr., o filho mais velho do
Presidente norte-americano que se encontrou com vários russos, incluindo a
advogada Natalia Veselnitskava, a 9 de junho de 2016, na Trump Tower), o
relatório concluiu que a campanha de Donald Trump foi “recetiva” às ofertas do
Kremlin, esperando ser “beneficiada eleitoralmente” através da “informação roubada
e divulgada pelos russos”, que viram na eleição de Trump uma “oportunidade”.
Os esforços da Rússia para
influenciar o resultado das eleições foram, de facto, muitos. “Os contactos
russos consistiram em tentativas de estabelecer laços financeiros, oferecer
ajuda, marcar encontros entre Trump e Putin e entre membros da campanha às
presidenciais e membros do governo russo, e consolidar posições políticas para
melhorar as relações entre a Rússia e os EUA”, refere o relatório.
Outra novidade é, como concluiu a
investigação, que Trump tenha pedido, em privado, ao ex-conselheiro de
segurança nacional Michael Flynn para divulgar os e-mails de Hillary Clinton,
sua adversária nas eleições de 2016. Flynn tentou de seguida obter os referidos
e-mails e entrou em contacto com “vários associados”, incluindo Pete Smith, um
dos membros da equipa de Trump que, até agora, Trump tinha tentado isolar como
uma espécie de “lobo solitário” que tentou ‘sacar’ os emails sem ninguém lhe
pedir. Afinal, Flynn pediu-lhe, sim, e a mando de Trump. Smith cometeu suicídio
e deixou uma nota a dizer que não teve “intenções criminosas”. Mais tarde, o
ex-conselheiro da segurança nacional viria a dizer aos investigadores que o
pedido de Trump era “recorrente”.
“É O FIM DA MINHA PRESIDÊNCIA. ESTOU
LIXADO”
Muito importante, talvez até mais
importante do que o resto, foi a reação de Trump quando soube que ia ser
investigado por obstrução à justiça e que essa investigação seria liderada por
um procurador-especial, Robert Mueller (este viria a ser nomeado a 17 de maio
de 2017). “Isto é terrível. É o fim da minha presidência. Estou lixado”,
afirmou o Presidente norte-americano depois de a informação lhe ter sido
transmitida pelo antigo procurador-geral Jeff Sessions.
Trump mostrou-se “zangado” e criticou
Sessions por este ter-se recusado a liderar a investigação. “Como é que
deixaste isto acontecer, Jeff? Era suposto protegeres-me.” Meses mais tarde, já
no verão, Donald Trump terá insistido com Jeff Sessions para que este
continuasse à frente da investigação à interferência russa, num encontro na
casa do Presidente norte-americano. Em análise a este dado em específico, o
“New York Times” referiu que os esforços de Trump para que Sessions voltasse a
liderar a investigação “mostram que ele interferiu ativamente na recusa do
antigo procurador-geral, podendo isso constituir um ato de obstrução à
justiça”.
A Casa Branca mantém-se, contudo,
unida e inquebrável, como qualquer casa e família que se preze. A conselheira
Kellyanne Conway mostrou-se, aliás, estranhamente satisfeita. “Hoje é o melhor
dia da presidência de Trump”, afirmou aos jornalistas, insistindo que não houve
conluio nem “certamente uma conspiração criminosa com os russos”. Pedidos de
“desculpa” são desde já bem-vindos, desde que sejam dados de bom grado e bom
coração. Mike Pence, vice-presidente, encarreirou pelo mesmo: “Nenhum conluio,
nenhuma obstrução”.
Ana França / Helena Bento |
Expresso
Imagens: 1) Eva Hambach: 2) Chip
Somodevilla/Getty
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