Ao ordenar à Google sabotar a
Huawei, ele revela um Ocidente rancoroso e dominador — mas abre um flanco.
Chineses recorrerão ao software livre. E se resgatarem a lógica de circulação
de saberes que marcou a internet em seu início?
Pablo Romero, no Público | Tradução: Rôney Rodrigues
| Outras Palavras
A guerra comercial entre EUA e
China está se convertendo em escalada. Uma das últimas consequências foi a
suspensão, pelo Google, de uma significativa parte de seu negócio com a Huawei,
depois da inclusão dessa companhia na lista estadunidense de empresas que
representariam uma “ameaça à segurança nacional”. Prova-se, mais uma vez, como
é arriscado deixar nas mãos de empresas de outros países elementos essenciais
de determinado produto, como o “software”: uma decisão da Casa Branca pode
prejudicar cidadão de todo o mundo.
Essa decisão do governo Trump,
que ataca diretamente a próspera divisão de celulares da fabricante chinesa,
presume que a Huawei perderá acesso à maioria dos “benefícios” do gigante
estadunidense. Seus celulares, a partir de agora, deixarão de ter acesso ao
Google Mobile Services, a plataforma que aglutina serviços como o Google Play
Store (a “loja” de aplicativos), o Gmail, o aplicativo do Youtube e o navegador
Chrome para celular: os novos telefones não poderão oferecer esses “apps”.
A empresa asiática, no entanto,
ainda contará com acesso à versão livre do Android por meio de licenças de
código aberto, disponíveis para quem quiser usá-las. Na verdade, a Huawei
desenvolveu um sistema operativo derivado baseado no Android; a instalação desse
sistema, que já não dependeria do Google em nada, poderia criar um mercado
alternativo mundial: não nos esqueçamos que a companhia chinesa conseguiu
colocar, no ano passado, em todo o mundo, nada menos que 200 milhões de
dispositivos móveis.
“Se você depende de um provedor
que está em um país e se submete a suas regras, e amanhã esse país se irrita
com o seu por qualquer razão, você tem um problema”, comenta ao Público,
em conversa por telefone, o advogado especializado em tecnologia David Maeztu.
O caso atual é o exemplo perfeito
que mostra como depender de terceiros sediados em outros países pode se
converter em uma vulnerabilidade para o negócio dos gigantes tecnológicos
(entre muitos outros problemas), mas também como o “software livre” pode ser uma
garantia contra a determinadas decisões políticas.
“O bom do ‘software livre’ é que
companhias desenvolvem produtos próprios baseando-se no que outros já fizeram,
ou seja, não há por que começar do zero e, além disso, todo esse trabalho
contribui para a comunidade”, lembra o especialista já citado.
Efetivamente, o ponto forte do
Android é que sua base é “software livre”, o que vai permitir a Huawei reagir
melhor do que se tivesse que criar um sistema operativo do zero. “O que é bom
para você se converte em algo bom para a comunidade, o que também amplia a
padronização. Os sistemas tornam-se mais interoperacionais. Se amanhã um
governo tomar decisão como a dos EUA, o impacto pode ser menor”.
A camada básica do Android conta
com licenças Apache e GPL [ou seja, pode ser usada e modificada livremente],
comenta Maeztu, que aponta o principal problema que a Huawei terá: ficar sem
acesso aos aplicativos do Google. “Mas os celulares já funcionam sem eles”,
afirma, e arrisca: “Imaginemos que um fabricante como a Huawei se meta com a
distribuição”.
Ele prossegue: “O fato de a
decisão de um país afetar os consumidores e cidadãos de outros países redefine
as regras da governança global: os EUA podem obrigar a Google a executar
determinadas ações pelo fato dela estar sediada em seu território”, argumenta
Maeztu, que aponta: “Também deveríamos estar pensando em como avançar para
fazermos sistemas mais abertos, e que a internet seja o que era: pessoas que
espalhavam o conhecimento e a liberdade para usá-lo. Todo esse movimento pode
significar, em um futuro não muito longe, a ruptura do monopólio ‘real’ que a
Google exerce nos sistemas operativos móveis. E isso pode ser uma boa notícia”.
Soberania tecnológica
Para o advogado especializado em
internet e doutor em filosofia Javier de la Cueva, um histórico defensor do
“software livre”, no caso da Google e Huawei “existe uma questão de soberania
tecnológica que está intimamente ligada à liberdade de concorrência: no momento
em que vem de fora uma disposição norte-americana que estabelece uma proibição
da concorrência precisamente por meio de um código, o que está sendo feito é
beneficiar uma série de produtos em detrimento de outros”.
“Como sempre, a pergunta que deve
ser feita é: a quem beneficia isso tudo? Ou melhor: quem ganha dinheiro?”,
pergunta-se De la Cueva, para quem estamos diante de “uma ação teledirigida
economicamente: aqui o que realmente importa é o dinheiro”. “A União Europeia,
a propósito, teria que verificar se essa decisão não atenta contra o livre
mercado, para começar”, e acrescenta: “Eu acredito que sim”.
Esse advogado também denuncia que
a ação “demonstra como, precisamente através do código, o que está sendo feito
é montar um regulamento em si; ou seja, quando evito que uma série de
atualizações sejam feitas o que faço é, por meio do próprio acesso a esse
código, expulsar um ator do mercado”.
De la Cueva faz uma interessante
reflexão sobre o código aberto. “A base da internet, o que realmente fez
explodir a revolução da rede, foram os Request for Comments (RFC), que são de
licença livre. A internet é a maior e mais relevante obra de propriedade
intelectual livre da história, como nenhuma outra obra ‘proprietária’
[privada]”.
“Em um dado momento”, acrescenta,
“a Google se serviu do kernel do Linux e usou esse núcleo para montar um
sistema operativo – Android – que captura os consumidores. O que vemos aqui é:
até certo ponto, qualquer sistema livre pode ser utilizado para o mal”. “Todo
isso mostra como a Google já estava usando esse sistema livre para cooperar na sociedade
de controle em que vivemos. Prometeram-nos a sociedade do conhecimento, mas nos
entregaram a sociedade de controle. Essa sociedade de controle existe
realmente, não somente sobre os indivíduos, mas também sobre as empresas”.
“É interessante o que está
acontecendo porque, de alguma maneira, obriga a Huawei – não esqueçamos que
também é uma gigante – a fazer um fork ou bifurcação (um projeto que se separe
de outro, a partir de um tronco comum e o código-fonte do tronco já
existente)”, comenta esse especialista. Ele acrescenta: “a longo prazo, os EUA
poderiam estar dando um tiro no pé. Eles forçam os chineses a fazer uma versão
alternativa à dominante, dominada pelo Google, de forma que gere um importante
mercado de celulares sem Google”. Um exemplo de um sistema derivado que é livre
é o LineageOS.
“E olhe”, ironiza De la Cueva,
“viria a calhar para muitos, principalmente para os parlamentares espanhóis que
levam em seus bolsos celulares com aplicativos que enviam sua geolocalização a
servidores de companhias norte-americanas: como é possível que os representantes
da soberania popular estejam cedendo seus dados para o Google? Estamos
loucos?”.
Para esse jurista, “há uma
oportunidade para colocar o valor não na tecnologia chinesa ou estadunidense,
mas na ‘tecnologia cidadã’. Talvez isso produza um impulso nos grupos de
desenvolvimento de ‘software livre’, já que embaixo do guarda-chuva do código
livre pode entrar qualquer tipo de agente”.
“Não sabemos as consequências que
pode ter todo esse movimento, mas o que ocorria até agora não era aceitável: a
situação do monopólio ‘de fato’ a qual fomos entregues tanto para o Google
(Android) como para a Apple (IOS)”. De la Cueva conclui: “Talvez tudo isso que
está acontecendo seja até bom”.
A origem de tudo isso
A guerra comercial entre as duas
maiores superpotências do mundo tem várias vertentes. A última medida
norte-americana, em forma de sanções, é uma ramificação de uma delas: a batalha
pela implantação da tecnologia 5G na Europa.
A jornalista especializada Marta
Peirano explica de forma muito clara, no Twitter, como as acusações de
espionagem da Casa Branca contra as companhias tecnológicas chinesas resultaram
em uma disputa política e judicial que tensiona as difíceis relações entre
ambos os países. Leiam (em espanhol):
Portanto, a decisão que obrigou a
Google e outras empresas tecnológicas dos EUA a romper com a Huawei é uma
política. Precisa ser analisada a partir de uma perspectiva mais ampla. Não se
trata somente de espionagem ou segurança.
“No momento, não se apresentaram
provas de que o governo da China faz o mesmo que o governo dos EUA”, comenta
ironicamente David Maeztu, que acrescenta: “não sabemos se os EUA acusam as
empresas chineses de espionar, ou de que não lhes dão as informações que obtêm
ao espionar”.
Visto com um pouco mais de
distância, o que está em jogo é o domínio da tecnologia móvel pelas próximas
décadas. E se no caminho for possível romper com um ou dois monopólios, ou
conseguir conscientizar um ou dois políticos, talvez devêssemos nos aproveitar
dele.
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