Com o individualismo, floresceu a happycracia,
que transforma a autosatisfação num dever, a ser alcançado apesar das misérias
mundanas. Que tal propor, como alternativa, o conflito transformador — sentido
essencial da política?
José Durán Rodríguez, em El Salto | Outras Palavras | Tradução: Ricardo
Cavalcanti-Schiel | Imagem: Joan Cornellà
No inverno de 2013, a multinacional de
refrigerantes Coca-Cola anunciou na Espanha o lançamento de uma página web com
mais de 400 estudos sobre felicidade e saúde, que se pretendia como referência
no campo das pesquisas sobre bem-estar. O fez por meio do Instituto Coca-Cola
da Felicidade, constituído no âmbito da divisão espanhola da companhia, que em
2010 e 2012 já tinha organizado em Madri duas edições de um evento denominado
Congresso Internacional da Felicidade.
Entre o artifício publicitário e
a produção de uma imagem amigável para a marca, sob o álibi filantrópico de
responder ao crescente interesse sobre o tema, a Coca-Cola se juntou a uma
agenda global que propõe ser feliz como resposta para todos os males.
Margarita Álvarez é uma das 50
mulheres mais poderosas da Espanha, segundo a revista Forbes, e também foi
incluída na lista das 100 mulheres mais influentes do país em 2016, na
categoria das executivas, elaborada pelo portal Mujeres&Cia [Nota do
Tradutor: algo como a versão espanhola exclusivamente feminina da revista Você
S.A.]. Álvarez criou e presidiu o Instituto Coca-Cola da Felicidade entre
janeiro de 2008 e março de 2011. Ela acaba de publicar Desconstruindo a
felicidade, um livro cujo propósito, conforme se lê na nota de imprensa
divulgada pela editora Alienta [N. do T.: em português, “Encoraja”], é
“ajudar a você a averiguar se a felicidade realmente existe e, se existe,
determinar onde pode encontrá-la”.
A nota acrescenta que nas suas
páginas não há “regras nem pautas, só conhecimento. Porque saber e possuir
informação sobre algo tão relevante, ajudará a você a entender como funciona o
cérebro, como pode utilizar os seus pensamentos e como pode identificar e
aceitar todas as suas emoções, para enfrentar melhor as circunstâncias da
vida”.
Parece pouco provável que a ideia
de ser feliz com que lida Álvarez tenha alguma relação com a que possam ter,
por exemplo, as mais de 800 pessoas demitidas da fábrica da Coca-Cola de
Fuenlabrada (Madri) desde 2014.
A dela se trata, antes, de mais uma das vozes dos
privilegiados que durante os últimos 30 anos participaram da construção e
propagação de uma noção de felicidade que repousa sobre o ímpeto, a vontade e a
superação individual como ferramentas para alcançá-la. Livros de autoajuda,
oficinas de pensamento positivo e palestras motivacionais difundiram a miragem
de que ser feliz está ao seu alcance e que não é preciso mais que desejá-lo.
Nesses tempos da mais grave crise
econômica mundial desde o crack de 1929, discursos como esse
encontraram um público desesperadamente receptivo, ao qual que se oferece
bem-estar simplesmente olhando para dentro de si, sem ter que se relacionar com
absolutamente mais ninguém. Claro, não é exatamente assim: essa felicidade
prometida passa necessariamente por poder pagar, porque o que há detrás dela
tem muito pouco de altruísta.
“Toma-se como ponto de partida
que se trata de uma escolha pessoal e que, para ser feliz, basta que uma pessoa
decida ser e se dedique a isso por meio de uma série de guias, conselhos,
técnicas, exercícios, que esses pretensos especialistas dos mais diversos
campos propõem: cientistas, psicólogos, coaches, escritores de autoajuda e
uma enorme quantidade de profissionais que voejam no mercado da felicidade”,
explica Edgar Cabanas. Esse doutor em Psicologia e pesquisador da Universidade
Camilo José Cela, de Madrid, é o autor, junto com Eva Illouz, de Happycracia (Ed.
Paidós, 2019), um ensaio que passa o bisturi nos argumentos manuseados pela
“ciência da felicidade”; argumentos que ignoram questões sociais, morais,
culturais, econômicas, históricas ou políticas, para apresentar teses em
aparência objetivas.
“Enquanto a predisposição dessa
ideia de felicidade é a de produzir seres completos, realizados, satisfeitos, o
que acaba ficando é uma permanente insatisfação: a felicidade é concebida como
uma meta que nunca se alcança, que nunca chega a se materializar. É sempre um
processo constante, que faz a pessoa embarcar em uma busca obsessiva de
maneiras de melhorar a si mesma, seu estado emocional, a administração de si no
trabalho, na educação, na intimidade”, sustenta Cabanas.
Nesse sentido, a pesquisadora
Sara Ahmed, que publicou há uma década The Promise of Happiness [A
promessa de felicidade] (Duke University Press, 2010), traduzido para o
espanhol este ano pela editora argentina Caja Negra, assinalava em março, em
uma entrevista para El Salto que “a felicidade, como promessa de viver de
um determinado modo, é uma técnica para dirigir as pessoas”.
Tornando as coisas ainda mais
precisas, Fefa Vila Núñez, professora de Sociologia do Gênero na Universidade
Complutense de Madrid, nota que essa concepção “nos impele, nos ordena e dirige
em direção ao consumo, vinculado este a uma ideia de vida sem fim, forjada
sobre um hedonismo sem limites, onde melancolia e tecnofilia [N. do T.: a
obsessão pela tecnologia] se unem num abraço íntimo, para conformar a
noção de ganho, de êxito, de imortalidade, de um prazer infinito para aquele
que não se desvie do caminho traçado”.
A pesquisadora encontra a origem
desse discurso num “maquinário de felicidade” ativado depois da I Guerra
Mundial e relacionado a um “capitalismo de consumo” que foi modelando a noção
de felicidade até nossos dias.
A equação da felicidade
O livro de Margarita Álvarez
conta com duas assinaturas convidadas muito significativas. O prólogo é de
Marcos de Quinto, ex-vice-presidente da Coca-Cola Espanha e número dois, por
Madri, do [partido de direita] Ciudadanos nas próximas eleições
gerais. Já o posfácio fica a cargo de Chris Gardner, cuja história costuma ser
usada como exemplo pela assim chamada “psicologia positiva”. Como exceção
tendenciosamente convertida em regra, a biografia de Gardner vai da pobreza ao
êxito empresarial, tendo sido retratada no filme Em busca da felicidade,
de 2006, protagonizado por Will Smith. Gardner é hoje um multimilionário que se
dedica à filantropia e a dar conferências sobre como a felicidade depende da
vontade individual. “Se você quiser, pode ser feliz” é sua mensagem.
Um nome chave no desenvolvimento
da “ciência da felicidade” é o de Martin E. P. Seligman [N. do T.:
ironicamente homônimo (talvez até de forma deliberada) do personagem de Lars
von Trier no filme “Ninfomaníaca”, de 2013]. Eleito, em 1998, presidente da
Associação Norte-Americana de Psicologia (APA, em sua sigla em inglês), pode
ser considerado como um dos fundadores da “psicologia
positiva”, uma vez que participou de seu manifesto introdutório, publicado
no ano 2000. Seligman propõe um novo enfoque sobre a saúde mental, distanciado
da psicologia clínica e enfocado na promoção do que ele considera “positivo”, a
vida boa, para encontrar as chaves do crescimento pessoal.
No seu escritório na APA,
Seligman rapidamente começou a receber polpudas doações e cheques de vários
zeros, procedentes de lobbies conservadores e instituições religiosas
interessadas em promover a noção de felicidade que essa nova corrente da
psicologia promulga. A difusão, pelos meios de comunicação e outros canais, de
algumas de suas publicações gerou a impressão de que existiria uma disciplina
científica capaz de aportar chaves inéditas para alcançar o bem-estar. A repercussão
dessas teorias foi mundial. No entanto, seus objetivos, resultados e métodos
foram criticados pela falta de consenso, definição e rigor científico.
“Mais que enganosas, eu diria que
podem ser perigosas em termos sociais e políticos, além de decepcionantes em
termos pessoais”, considera Cabanas, que indica o mercado, as empresas e a
escola como agentes principais na elaboração e divulgação de certas noções que
se articulam diretamente com valores culturais arraigados no pensamento liberal
norte-americano.
Seligman [N. do T.: de fato,
inacreditavelmente homônimo do personagem cheio de teorias e equações do filme
citado de Lars von Trier; personagem que, ao final, cede a seus próprios
impulsos predatórios] chegou a formular uma equação que explicaria a proporção
de fatores que dão como resultado a felicidade. Ela seria a soma de uma
grandeza pré-definida (a herança genética) com variáveis da ação voluntária e
de circunstâncias pessoais. Sua fórmula outorga ao primeiro fator o peso de
50%, ao fator volitivo o peso de 40%, e tão apenas 10% a todo o resto que diz
respeito a coisas como nível de renda, educação ou classe social. Seguindo essa
receita, a psicologia positiva tem sido categórica ao considerar que o dinheiro
não influi substancialmente na felicidade humana, por exemplo.
Em The Promise of
Happiness [A promessa de felicidade], Ahmed resumiu a tautologia que
sustenta o campo da psicologia positiva. Toda ela “se baseia nesta premissa: se
dizemos ‘sou feliz’ ou fazemos outras declarações positivas sobre nós mesmos ―
se praticamos o otimismo ao ponto de vermos que o lado amável das coisas possa
se converter em rotina ―, seremos felizes”.
Da página web apresentada
pela Coca-Cola como o grande arquivo sobre a felicidade, não restou
absolutamente nada cinco anos depois.
Felicidade Interna Bruta
Desde 2013, 20 de março é
celebrado como o Dia Internacional da Felicidade. Em sua resolução 66/281 de 2012, a Assembleia Geral da
ONU determinou essa data para reconhecer a relevância da felicidade e do
bem-estar como aspirações universais dos seres humanos, e a importância de sua
inclusão nas políticas de governo. Trata-se de uma medida controversa, pela
dificuldade de encontrar indicadores objetivos que quantifiquem o grau de
felicidade, além das repercussões derivadas de sua conversão em norteadora de
ações de governo, em prioridade a outras metas como a redução das
desigualdades, a luta contra a corrupção e o desemprego. Em outras palavras, o
risco de que a administração da coisa pública preste mais atenção a um guru da mindfulness [N.
do T.: “atenção plena”] que aos sindicatos é real.
“As formas de fazer política
baseadas na felicidade ― opina Cabanas ― implicam exaltar as questões
individuais e desfigurar as sociais, objetivas e estruturais. Deposita-se toda
ênfase em que o mais importante é a forma como os indivíduos se sentem, como se
a política se reduzisse a fazer se sentir bem ou mal, e não tivesse nada a ver
com um debate moral ou ideológico”.
Depois de aprovar alguns dos
cortes orçamentários mais significativos da história do país, especialmente
sobre gastos sociais, em fins de novembro de 2010 o primeiro ministro britânico
David Cameron propôs a realização de uma pesquisa para medir a felicidade dos
cidadãos, no intento de difundir junto à opinião pública a ideia de que o
bem-estar se encontra em outras variáveis diferentes do Produto Interno Bruto.
Essa parece ser uma iniciativa recorrente em vários países, e que pode ser
entendida como uma cortina de fumaça para distrair a atenção.
Em 2016, o primeiro ministro e
vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos, xeque Mohamed ben Rashid Al
Maktoum, anunciou a criação do Ministério da Felicidade, para produzir no país
“gentileza social e satisfação como valores fundamentais”. Do mesmo modo,
dispôs essa novidade no âmbito de una série de reformas, entre as quais se
destacava a permissão ao setor privado de se encarregar da maioria dos serviços
públicos.
No seu relatório de 2017/2018
sobre Direitos Humanos, a Anistia Internacional concluía que os Emirados Árabes
Unidos restringem arbitrariamente o direito à liberdade de expressão e de
associação, que continuavam presas dezenas de pessoas condenadas em processos
viciados, muitas encarceradas por suas ideias políticas, e que as autoridades
emiratis mantinham os detidos sob condições que podiam ser configuradas como
tortura. Também assinalava que os sindicatos continuavam proibidos e que os
trabalhadores imigrantes que participassem de greves podiam ser expulsos, sob
proibição de regressar ao país durante um ano.
Os Emirados Árabes Unidos ocupam
a posição 21 de um total de 156 países, na edição de 2019 do Relatório Anual
sobre Felicidade Mundial, que as Nações Unidas publicaram no tal dia 20 de
março. Trata-se da sétima edição de um estudo que, neste ano, conforme seus
autores, colocaria o foco na relação entre felicidade e comunidade e em como a
tecnologia da informação, os governos e as normas sociais influem nas
comunidades. Finlândia, Dinamarca e Noruega se situam no pódio desse ranking
tão peculiar, enquanto Israel e Estados Unidos ― dois países com enormes taxas
de desigualdade e pobreza; o primeiro, aliás, sustentado sobre a discriminação
da população palestina ― alcançam os postos 13 e 19 respectivamente.
A felicidade na Espanha a teria
elevado, em um ano, do 36º ao 30º lugar nessa lista cuja confecção levaria em
conta variáveis como expectativa de vida saudável, assistência social,
liberdade para a tomada de decisões, generosidade e percepção da corrupção [N.
do T.: Há uma ironia sutil no texto, que pode passar desapercebida por aqueles
menos familiarizados com a situação política espanhola: são exatamente essas
“variáveis” que vêm sendo objeto de considerável inquietação pública no país].
Sobre os meandros onde se
entrecruzam política e felicidade conhece muito bem a filósofa Victoria Camps,
senadora pelo Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC) entre 1993 e 1996 e
ganhadora do Prêmio Nacional de Ensaio de 2012 com o livro El gobierno de las
emociones(Editorial Herder, 2011). Na sua opinião, a busca da felicidade é “um
direito, expresso de diferentes formas: o direito à igualdade, a ter uma certa
proteção por parte dos poderes públicos, para que todos, e não apenas uns
poucos, tenham a liberdade necessária para escolher uma certa forma de vida”.
Por isso, considera que a política não deve garantir a felicidade, mas que
“possamos buscar a felicidade”. Ela entende que o modelo de Estado do bem-estar
“ia nessa direção, de proteger socialmente os mais desprotegidos, redistribuir
a riqueza e igualar as condições de felicidade”. Para essa filósofa, o Estado
do bem-estar social está em crise, mas acredita que “era um bom modelo e que
deveria ser estimulado, buscando adaptá-lo à novas necessidades, corrigindo
aquilo que não funciona mais”.
Camps conversa com El Salto sobre
seu recente ensaio, intitulado precisamente La búsqueda de la felicidad (Arpa
Editores, 2019). Como filósofa, zela pela distância entre a sua disciplina e o
palavrório da autoajuda: “Creio que estão nos antípodas uma coisa da outra. A
filosofia não dá receitas, mas propõe questões e obriga a aprofundar, a pensar,
a encontrar soluções”. Também lembra algo que o paradigma da psicologia
positiva tende a esquecer: “As condições materiais afetam bastante. Aristóteles
que o diga: a felicidade não está na riqueza, na honra, no êxito, mas isso tudo
é necessário para ser virtuoso. Ou como dizia Bertolt Brecht: primeiro é
preciso comer, e depois falar de moral”.
Por fim, reflete sobre alguns aspectos
nocivos resultantes dessa promoção da felicidade como objetivo impositivo: “O
que ela busca é que as pessoas estejam contentes e não incomodem muito. Em
todos os domínios ― na política, na empresa, na educação ― isso é buscado por
vias muito similares às da autoajuda, de forma muito simples, que não tem nada
a ver com a felicidade. Na política, todas as medidas antipopulares, difíceis
de explicar mesmo que sejam boas para as pessoas, são difíceis de propor porque
amedrontam os políticos, que preferem que as pessoas estejam contentes com
medidas muito mais simples”.
Rumo à felicidade… através da
greve
Em uma entrevista publicada na
página web de El Salto em junho de 2018, o músico asturiano Nacho Vegas falava
de reivindicar a infelicidade, já que, na sua opinião, “há momentos em que parece
que vivemos nisso que Alberto Santamaría chama de capitalismo afetivo, no qual
algumas empresas medem quanto custa para elas a infelicidade dos seus
trabalhadores, e se esforçam, com essas ondas motivacionais e de coaching,
não a criar felicidade, porque o capitalismo não pode fazer isso, mas em mudar
a resposta das pessoas diante da infelicidade”.
Alberto Santamaría é professor de
Teoria da Arte na Universidade de Salamanca. No ano passado publicou En
los límites de lo posible [Nos limites do possível] (Ed. Akal), uma
tentativa de rastrear a forma como a criatividade, as emoções ou a imaginação
possam conformar um mapa afetivo propício para a prosperidade econômica. “As
empresas estão se dando conta de que a infelicidade, a depressão, são problemas
gravíssimos. Pois bem, o que buscam não é uma solução direta. Sua estratégia se
baseia em ampliar a dinâmica de duplo reforçamento entre relação mercantil e
desejos. Assim, a narrativa empresarial quer nos vender a noção de que o único
lugar onde realmente seremos felizes é aquele do trabalho”, comentou a El
Salto.
Para Isabel Benítez, socióloga e
jornalista especializada em trabalho e conflitos laborais, a resposta que as
empresas oferecem diante da infelicidade dos seus quadros de funcionários é um
“mecanismo sofisticado de domesticação, que busca implementar tanto a
produtividade direta, ao tentar melhorar a satisfação, lançando mão dos
recursos emocionais íntimos das pessoas, como também a produtividade indireta:
de reduzir o conflito trabalhista, que é a articulação coletiva do mal-estar
comum”. Na sua opinião, é “imensamente difícil” que no trabalho assalariado se
encontre uma possibilidade de realização pessoal-profissional, ainda que
observe que “no nível individual há, sim, quem o consiga, apesar da instabilidade,
da arbitrariedade, da falta de perspectiva, da ausência de controle sobre o
quê, o como e o ‘para quê’ do seu trabalho”.
Benítez escreveu, junto com
Homera Rosetti, La huelga de Panrico [A greve de Panrico] (Ed.
Atrapasueños, 2018), um livro sobre a experiência da greve indefinida que o
efetivo de funcionários da única fábrica na Catalunha da antiga panificadora
Panrico manteve entre outubro de 2013 e junho de 2014 [N. do T.: A firma
buscava reduzir salários e demitir quase 2.000 funcionários, na tentativa de se
ajustar aos problemas econômicos, que acabaram sendo superados sem essas
medidas, possibilitando a venda da empresa, em condições superavitárias, dois
anos depois, para um grupo mexicano]. Ela acredita que os momentos de
organização, de ganho de posições e de conquista de mudanças no campo laboral
são, estes sim, fonte de satisfação e crescimento para os trabalhadores, apesar
de todos os obstáculos.
Por isso, considera que a greve
não deixa ninguém na indiferença: “É una alteração da normalidade em que se
incrementa a sociabilidade entre trabalhadores, se põe à prova a capacidade de
análise e de organização coletiva, e se descobrem habilidades ‘ocultas’:
criatividade em todos os níveis para pensar ― onde, quando, como pressionar a
empresa, para poder dirigir-se aos demais colegas de trabalho, para ativar
solidariedades externas a ele –, para fazer — construir piquetes, acampamentos
–, para negociar, para planejar. As greves, os processos de luta coletiva,
modificam as pessoas que participam. São momentos de muita tensão e emoção, em
todos os sentidos”.
♫ Eu
não quero ser feliz… andar tranquilamente na favela em que eu nasci… eh! ♫
“Mas para mim tem um gosto tão
ruim!…”, diz a letra de uma canção do grupo de rock espanhol Los Enemigos, que
reconhece o incômodo próprio diante de alguém que consegue sorrir quando a
ocasião exige, alguém que distingue os meios dos fins e sabe até onde pode ir,
diante de alguém, em suma, que é tão feliz e que se entrosa bem. A canção,
incluída no disco “La vida mata” (1990), pode ser lida como uma antecipação ao
agastamento diante da impossibilidade de alcançar essa meta da felicidade
sugerida como ideal a partir de tantas frentes. Mas também, em certa medida,
como uma reação.
Quase trinta anos depois da sua
gravação, Edgar Cabanas observa que está se gerando na Espanha uma certa
consciência crítica. “O outro discurso ganha porque é mais simplista,
facilmente traduzível em manchetes, incorporável em políticas empresariais,
comercializável, mas também cresce um terreno fértil, um meio de cultura
crítico para se contrapor a ele”, nota o coautor de Happycracia.
A professora Vila Núñez defende
que “enquanto houver resistência, não há triunfo”, mesmo que não tenha dúvidas
de que estamos em uma nova fase do avanço do capitalismo, “um estágio
sofisticado, definido pelo assalto ao desejo, à própria subjetividade. Um inferno
à medida do nosso desejo, nos lembraria hoje, se estivesse entre nós, Jesús
Ibáñez. Já não somos apenas corpos disciplinados, mas desejos expropriados,
corpos sem memória”.
No seu entendimento, numa
sociedade que afirma o imperativo da felicidade “nada mais tem sentido porque
nada tem nem princípio nem fim, só existe o ‘vai!’, o ‘just do it!’, porque não
há nem lembranças nem compromissos, não somos ninguém, não viemos de parte
alguma e não vamos a parte alguma. Esse é o estado da questão, é o conto do
balanço das contas: Sísifo arrastando a pedra que, ao chegar ao alto, sempre
está à beira de cair”.
La vida de las estrellas [A
vida das estrelas] (Ed. La Oveja Roja), segundo romance de Noelia Pena, foi
publicado ao final de 2018. Trata-se de um relato sobre outras realidades, que
não aquelas impostas pelo arquétipo da pessoa triunfante, o self-made
winner e feliz; realidades que essa figura pretende ocultar. Para a
autora, o que interessava ― diz ela a El Salto ― era “lançar um pouco
de luz sobre certos problemas e conflitos que nem sempre queremos encarar, como
a doença, a solidão, o isolamento, o abuso. A proliferação de patologias como a
ansiedade e a depressão evidencia que esse sistema não nos deixa viver: nos
espreme e asfixia. O que acontece quando uma depressão nos impede trabalhar ou
quando perdemos um emprego? Nossa segurança se estremece, e com ela o modelo de
vida que projetamos em torno do êxito profissional”.
Pena acredita que o grande
problema social continua sendo a emancipação, e trata disso no seu livro, mas
garante que não pretendeu que seus personagens fossem o contraponto ao que
prescreve a psicologia positiva: “O que se pode ver nos problemas dos
personagens do romance é a dimensão coletiva dos mal-estares contemporâneos.
Apesar do individualismo crescente, grande parte dos nossos problemas tem
dimensão social: a solidão dos personagens, para não ir muito longe,
especialmente dos mais velhos. Tanto a mindfulness como os livros de
autoajuda tentam nos convencer de que, mudando nossa mente, podemos mudar a
realidade e, individualmente, podemos alcançar a felicidade. Mas como ser
feliz, se a solução para os nossos problemas não é individual, mas comporta
decisões alheias, sejam políticas, médicas ou então que apontam para estruturas
de poder assentadas há séculos, ou para a violência sobre nossos corpos por
parte de outras pessoas?”. A resposta a essa pergunta é, possivelmente, a mais
importante de todas as que se buscam ao longo da vida.
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