Humberto Cardoso | Expresso das Ilhas | opinião
Em Cabo Verde, parece que depois
de várias tentativas falhadas abriu-se oficialmente a temporada da corrida das
ilhas pelos recursos do Estado.
Toda a política parece girar à
volta de quem mais oferece para as ilhas, quem mais faz para fixar as pessoas e
quem mais empodera as populações. Os deputados da nação estão num processo
acelerado de transformação em porta-vozes das ilhas na assembleia nacional. O
governo há muito que o seu foco se concentra fundamentalmente nas realizações
locais que podem ser estradas de desencravamento, requalificação urbana e
programas de desenvolvimento do tipo “uma família, um turista”. Até o
presidente da república já promoveu uma reunião do conselho da república para
se debruçar sobre assimetrias e desigualdades regionais e fazer recomendações
para a fixação da população. No meio disto tudo imagine-se a energia ganha
pelos candidatos a populistas com esta nova política de disputa de recursos.
A fixação nas ilhas tende a fazer
esquecer a abordagem global que se deve ter na orientação do país. Cabo Verde é
um país arquipélago com uma consciência nacional de há muito consolidada.
Durante séculos de profunda escassez, de fomes e de relativo isolamento do
mundo as ilhas fizeram um percurso sócio-económico e cultural que lhes impregnou
uma idiossincrasia própria. A diversidade das experiências não constituiu
impedimento para a emergência da consciência da caboverdianidade. Pelo
contrário, enriqueceu-a. A relação com o mundo e as transacções comerciais
variaram ao longo dos séculos, ora tendo uma ilha como pivot do
desenvolvimento, ora outra. Todas acabavam beneficiadas pela prosperidade geral
e pelo enriquecimento cultural. Com tal percurso histórico devia ser evidente
que uma relação externa por via de exportações de bens e serviços e do turismo
teria que ser central para se conseguir um Cabo Verde próspero. Na procura de
oportunidades no mundo nenhuma ilha deveria ser secundarizada como eventual
interface principal do país com a economia global.
Muita coisa mudou quando no
pós-independência se adoptou a política de reciclagem de ajuda externa e o país
foi virado para dentro. Houve globalmente crescimento económico provocado por
fluxos do exterior, mas a centralização político-administrativa e a natureza
estatizante do regime e a sua hostilidade à iniciativa individual e ao
investimento externo impediu que as diferentes ilhas ganhassem dinâmica em
resposta a solicitações do exterior. A concentração no Estado dos recursos
disponibilizados ao país desencadeou migrações internas que fizeram a Capital
crescer exponencialmente e abriram caminho para a paulatina decadência das
ilhas com pendor rural mais pronunciado. Os investimentos públicos financiados
pela ajuda externa não conseguiam reflorescer a economia dessas ilhas que para
além de enfrentarem constrangimentos de produção e de mercado dificilmente
poderiam acomodar a pressão populacional que se seguiu à melhoria nos cuidados
de saúde e em outros serviços prestados pelo Estado. O quadro daí emergente de
desigualdade entre as ilhas e de assimetrias regionais não é fácil de inverter
como se pode constatar em todos estes anos em que se procurou construir uma
economia de mercado e se abriu o país para o investimento externo e para o
turismo.
A dificuldade em dialogar
aprofundamente para compreender a situação pode fazer o país caminhar para
soluções mais complicadas e cujo sucesso não é garantido. Na última década, com
as migrações internas em direcção às ilhas do Sal e da Boa Vista em resposta à
procura externa representada pelo turismo, aumentou a pressão para agir. Já
anteriormente existia o fluxo migratório para a cidade da Praia e S. Vicente
que, aliás, continua em ritmo acelerado. Com o problema real das ilhas mais
rurais a agudizar-se e elas a perderem população, convém não cair na tentação
de encontrar uma razão simples para o que está a acontecer: dizer, por exemplo,
que a culpa é simplesmente a centralização do Estado e que a solução é um
modelo de regionalização aplicável a todas ilhas. Quando se faz isso, está-se a
pôr de lado a questão central de qual deve ser o real motor do crescimento
económico de Cabo Verde. E historicamente sabe-se que os momentos de
prosperidade do arquipélago aconteceram quando foi possível estabelecer algum
tipo de relação dinâmica com a economia mundial. A excepção criada pela ajuda
externa, por levar a uma economia dependente, não podia ser sustentável nem
recomendável.
A via a seguir deve ser preparar
o país para aproveitar oportunidades fazendo-o mais competitivo e tornando-o
mais produtivo. Deve-se de facto descentralizar o Estado diminuindo os custos
de contexto e melhorar significativamente os processos de decisão. O facto de o
país ser um arquipélago e as ilhas apresentarem características próprias e de
constituírem em termos de população, recursos humanos e base tributária
desafios diferentes devia ser um convite para se encontrar formas inovadoras de
resposta aos problemas da administração do território sem prejuízo da autonomia
municipal constitucionalmente consagrada. Por outro lado, não se pode alimentar
a ideia que é possível que todas as ilhas avancem ao mesmo tempo ou cresçam ao
mesmo ritmo. Isso em nenhum lado aconteceu. Só era possível no mundo imaginário
soviético do desenvolvimento harmonioso com o Gosplan. E sabe-se no que deu.
Como em todo o lado, políticas de dinamização da economia que facilitam o
acesso dos factores capital e trabalho a recursos naturais devem ser
acompanhadas de políticas de solidariedade. A redistribuição, a verificar-se,
será na perspectiva de potenciar recursos locais com vista ao aproveitamento
futuro num quadro de economia nacional que se quer mais diversificada.
Cabo Verde deve ser visto como
mais do que o somatório das suas ilhas. Precisa crescer a taxas muito mais
elevadas para se recuperar do atraso inicial e do impacto negativo das
oportunidades perdidas devido a políticas marcadas por ideologias datadas. Para
isso seria de toda a importância conseguir-se flexibilidade e criatividade na
gestão do país arquipélago, facilidade de mobilidade do factor trabalho e sua
qualificação e também consensos na necessidade de investir onde os maiores
retornos poderão ser conseguidos para o bem de todo o país. Não se pode ver o
país como num jogo de soma nula. É verdade que para se desenvolver há que
promover a cooperação e solidariedade e isso não se consegue com disputas por
recursos num quadro dominado por reivindicações populistas. Mais do que nunca
impõe-se que se evite desencadear forças centrífugas na sociedade que movidas
por processos identitários tendencialmente cada vez mais paroquiais ameaçem
rasgar o tecido social e podem criar fracturas no próprio corpo da nação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na
edição impressa do expresso das ilhas nº 915 de 12 de Junho de 2019
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