Germano Almeida: “Não devemos
aceitar que nos digam que somos ‘só’ africanos”
Escolas da Cidade da Praia
receberam com alegria Germano Almeida, no decurso do IX Encontro de Escritores
de Países de Língua Portuguesa, em Cabo Verde. O autor ficou feliz por falarem
em português.
Crianças e jovens cabo-verdianos
escutaram o “contador de histórias” Germano Almeida dizer: “Nós precisamos de
insistir e cultivar a língua portuguesa. Ela é também língua nossa.” Argumentou
que “o português e o crioulo devem estar em pé de igualdade”, mas não tem
dúvidas: “A língua portuguesa é que é o instrumento que nos põe em contacto com
o mundo lá fora.”
Recebido em festa pela Escola do
Salineiro e com mais solenidade pelo Centro Educativo Achada Grande, na Cidade
da Praia, o escritor ficou feliz por dois motivos, como explicou ao PÚBLICO:
“Pelo interesse que os alunos mostraram pelos meus livros e pelo facto de
falarem em português na escola.”
Com determinação, Germano Almeida
afirmou perante um grupo de alunos do secundário: “Não podemos negar que somos
uma mistura de África e Europa. Não devemos aceitar que nos digam que somos
‘só’ africanos. Somos europeus e africanos.”
Escutou poesia, música, passagens
de livros que escreveu e viu a sua imagem colada em painéis, rodeada de breves
passagens da sua obra.
Num ambiente de nítida admiração
pelo autor, Prémio Camões 2018, e depois de os alunos declamarem o poema Então
queres ser um escritor? (Charles Bukowski), achou por bem explicar aos
jovens que “um escritor é igual às outras pessoas” e “que não devemos endeusar,
devemos respeitar”.
E quis passar ideias que
considera importantes, como a de que “ninguém é mais importante que o outro”,
lembrando o pensamento de Hegel de que “o homem livre não é invejoso, admira
tudo o que é belo e bom e fica contente porque há outro homem capaz de fazer
coisas assim”.
Varrer bem a rua
Germano Almeida sugeriu aos
estudantes que escolhessem o que fazer no futuro e aconselhou que se aplicassem
o melhor possível. E invocou Martin Luther King, que dizia: “Se a tua função é
varrer a rua, aprende a varrê-la bem.”
Afirmou-se “contador de
histórias” e descreveu como estas o reenviam para um tempo em que as escutava
ao luar. “Quando conto histórias, regresso à minha terra: Boavista.”
Recorda com graça como “pagavam”
aos mais velhos para os “distrair” nessas noites, “podia ser com uma bolachinha
ou então cãcã [uma espécie de rapé]”. Depois de começarem a contar, já não
conseguiam parar.
Embora os livros que escreve não
sejam apenas sobre a sua terra natal, Germano Almeida desvenda: “A Boavista
continua em mim. Transporto comigo a minha ilha e continuo a escavar as minhas
reminiscências.”
Por isso tenta transferir essa
prática para os estudantes: “Não devemos perder a nossa origem e a nossa
cultura. Dão-nos a nossa identidade. Cada ilha criou um homem diferente.” Ainda
assim, há um espírito colectivo: “O povo de Cabo Verde é heróico, somos
resistentes, porque não chove. Mas somos também esperançosos, sabemos que vai
chover. Se não for este ano, será no próximo ou no outro.”
E conclui assim a sua “lição”:
“Devemos ter orgulho nesta terra.”
Padrinho de biblioteca
O escritor foi convidado para ser
padrinho da biblioteca da escola visitada. Aceitou: “Ser padrinho é uma
responsabilidade quase de pai.” E, por conseguinte, prometeu fazer chegar
livros seus e de outros autores.
Um dos alunos perguntou-lhe:
“Como foi a sua caminhada para ser escritor?” A resposta desarmou e animou a
audiência: “Não fiz caminhada nenhuma, mas aconteceu. Fui escritor porque não
gostava de trabalhar.”
Explicou ainda que, quando se lê
muito, tem-se vontade de escrever. “Foi o que me aconteceu”, disse.
Aproveitou para dizer também que
“escrever é um treino” e que o faz há mais de 60 anos: “Como um serralheiro,
tem de se insistir.”
Ser entendido por todos
Revelou-lhes ainda que há muitos
níveis de escrita e impressionou-os com a frase: “Eu escrevo mal, mas sou
entendido por toda a gente.” E ficou feliz quando um grupo de estivadores o
interpelou dizendo que compreendiam o que escrevia.
Divertido, contou que, em
resposta a uma provocação, quis mostrar que sabia fazer “um texto de palavras
difíceis”. No entanto, escreveu-o primeiro na sua linguagem. “Depois,
densifiquei-o”, diz rindo, para concluir: “Não era a minha voz.”
Um aluno teve a curiosidade de
saber qual o livro que mais gostara de escrever. “O livro que a gente gosta
mais de escrever é o que a gente está a escrever. Pois pensa: ‘Agora é que vou
escrever um grande livro’.”
A gargalhada maior que obteve na
sala de aula foi quando quiseram saber qual “o seu sonho de infância”.
Resposta: “É inconfessável!”
O escritor disse gostar de fazer
histórias verosímeis e quer que as pessoas reconheçam a sua gente. Também
informou que a profissão de advogado fornece muito material para a escrita, o
livro Dois Irmãos, por exemplo.
Diz ter a “finitude da vida bem
presente” e revela: “Escapei da morte seis vezes. Da sétima já não escapo.”
O primeiro livro que escreveu,
sobre um naufrágio, extraviou-se. “Foi comigo para a tropa em Angola, mas não
regressou.”
E como foi ganhar o Prémio
Camões?, quiseram os alunos saber. “Fiquei contente, ficamos sempre contentes
quando ganhamos um prémio”, disse. E acrescentou: “Foi só isso.”
Rita Pimenta na Cidade da Praia |
Público
O PÚBLICO viajou a convite da
UCCLA
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