A escola é um novo tipo de
trabalho infantil, que não deixa as crianças brincar. Palavras do psicólogo de
Coimbra nos Caminhos de Leitura, em Pombal
A democratização da escola
permitiu que as crianças voltassem a ser crianças e fossem arrancadas ao
trabalho infantil, recordou o psicólogo e professor Eduardo Sá numa das últimas
sessões da XVII edição dos Caminhos de Leitura, em Pombal, neste sábado. Mas
depois, algo se passou. “Aquilo que me choca é que as crianças do século XXI
começam a trabalhar às oito da manhã e terminam o trabalho às oito horas da
noite”, constata perante uma plateia essencialmente feminina e sobretudo
composta por professoras e educadoras.
A apresentá-lo esteve Dora
Batalim, coordenadora da pós-graduação em Livro Infantil da Universidade
Católica Portuguesa, que o fez ficar “embaraçado” com os elogios prévios à
conferência.
No entender do psicólogo,
retirámos as crianças do trabalho para lhes devolver a infância e
“empanturrámo-las com escola”. Ou seja, “transformámos a escola numa espécie de
trabalho infantil e agora não temos crianças que o sejam quando devem ser”.
Por isso, o psicólogo sugere que
se transforme “o brincar” em Património Imaterial da Humanidade. E declara: “A
escola está a roubar a infância às crianças. A leviandade com que isto se faz é
inacreditável. Da parte dos pais, com a melhor das intenções, e da escola, que
vive numa distracção sem fim”, seguindo o modelo do século XIX, mas com datashow.
“Tenho medo de que a escola não
conheça as crianças”, disse, esperando que consiga “voltar a ser amiga”
delas. Disse ainda: “Nunca ouvi falar tanto das crianças e nunca vi que se
espatifasse tanto a infância.”
Gostávamos que Trump fosse só uma
personagem…
Provocatório e irónico, repete
uma ideia já transmitida noutros fóruns, a de que “as histórias fazem mal às
crianças”, porque “trazem personagens em relação às quais nós não sabemos quem
são os pais, não têm nomes de família nem um currículo que as justifique”.
Mais: elas “correm o risco de
acreditar que as personagens são tão reais, como, sei lá!, o Presidente Trump,
que nós gostávamos que fosse só uma personagem de uma história… de classe B”.
Este talvez tenha sido o momento
em que arrancou a gargalhada mais sonora da sala do Teatro-Cine de Pombal, só
competindo com a altura em que, já no período das questões, sugeriu outro item
para Património da Humanidade, “o esganiçar das mães”.
O também escritor recordou um
inquérito aos adolescentes norte-americanos sobre quem mais influenciou o seu
crescimento. Entre as respostas, houve quem se referisse a presidentes dos EUA,
a Deus, ao Pai Natal, mas também a inúmeras personagens das histórias. “A única
circunstância em que os pais [norte-americanos] contam histórias mais ou menos
a sério é no Natal.” E os miúdos fazem-lhes “o favor de fingir que acreditam”.
Crianças estúpidas (mas
doutoradas)
Eduardo Sá não tem dúvidas de que
“as crianças que não sabem contar histórias e que não escutam histórias são
crianças que não aprendem a pensar”, porque as narrativas “são o aparelho
digestivo do conhecimento”.
Se não conviverem com histórias,
acredita, “mesmo que venham a ser mestradas e doutoradas, são crianças
estúpidas”. Já que “as histórias nos permitem descodificar sentimentos,
perceber aquilo que vai do mistério à descoberta”. E lembra que “todas são de
encantar, porque o encantamento é a experiência de comunhão entre pessoas”.
Por isso afirma: “Os livros de
histórias são os melhores manuais ao longo da vida.” Mas não há pressa em que
aprendam muito cedo a identificar as letras. Pede mesmo que nos infantários e
creches se afixe uma placa à porta: “É proibido aprender a ler.”
O psicólogo afirma que “as
crianças vivem empanturradas de conhecimentos” e que “não lhes damos tempo para
pensar através das histórias”. Falta-lhes “tempo livre”, quando o têm, “criam
personagens, imaginam, põem problemas, resolvem-nos, colocam hipóteses e são
expeditas”.
Está convicto de que “uma
história ensina a conhecer, a decifrar e acaba por nos levar a perceber que
conhecer é sempre reconhecer”. E não aceita “cruzadas contra as histórias
violentas”, exemplificando: “Como se a história da Heidi fosse suave ou a do
Bambi, que perdeu a mãe, fosse uma coisa insignificante.”
Diz que se trata de “vender um
mundo enviesado” e culpa os psicólogos: “Aí entra o autoconceito, a
auto-estima, o ‘ama-te a ti próprio’, o optimismo acima de todas as coisas,
mas um optimismo que não é verdadeiro.”
Para ele, “as histórias
devolvem-nos à verdade, é aquilo que nos permite religar o mundo”. E recorre à
origem da palavra portuguesa “religar”, dizendo que foi ela que originou a
palavra “religião”.
“As histórias têm uma dimensão
absolutamente semelhante à da religião porque nos devolvem ao indispensável,
porque nos põem em contacto com o essencial, porque nos levam a perceber que
somos transformados quando lidamos com a realidade olhos nos olhos, porque nos
levam a descobrir que nunca somos felizes sozinhos”, diz. E acrescenta: “Tudo o
que nos parecia opaco e mais ou menos incompreensível se torna tão simples, tão
simples, tão simples.”
Para concluir, disse o professor:
“O segredo de cada história é termos ao nosso lado alguém capaz de nos escutar
com o coração e de fazer aquilo que as histórias fazem como mais ninguém.
Quando são muito minuciosas, tocam-nos tão dentro de nós que depois,
convictamente, mesmo quando somos crescidos, acreditamos que aquela história foi
escrita especialmente para nós. Esta capacidade única de nos tornar
importantes… apesar de sermos insignificantes perante o tamanho do universo.”
Mensagem final e amplamente
aplaudida: “Deixem-se de histórias e contem histórias.”
Animação e imaginação no jardim
Neste domingo, prossegue a
animação para as famílias da comunidade no Jardim da Várzea, das 15h às 19h. A
tarde começa com a presença dos Irréels (Compagnie Créature), prossegue com
Semear Leituras (Rita Moriés e Sílvia Santos), depois com La Luna en La Cuna
(17h) e termina com a actividade de expressão plástica: Eu Sou Eu… na Arte do
Caminho.
As exposições Motim (Mostra
de Ilustração Portuguesa, com trabalhos de 35 artistas) e Voar (de
André Neves) permanecem nas galerias do Teatro-Cine de Pombal até Setembro.
Os Caminhos de Leitura
realizam-se anualmente em Pombal desde 2002, reunindo especialistas em
educação, contadores de histórias, bibliotecário e ilustradores, entre outros
profissionais ligados à leitura e ao livro.
Esta edição teve início a 13 de
Junho e contou com os convidados: Ana Mourato, Andreia Nunes, Cristina
Taquelim, Eduardo Vera-Cruz Pinto, Elsa Serra, Helena Zália, Mafalda Milhões,
Maria Teresa Meireles, José Saro, Luís Carmelo, Rachel Caiano, Rita Moriés,
Rosa Mendes (Portugal), Rodolfo Castro (Argentina), André Neves, Lúcia Fidalgo
e Tâmara Bezerra (Brasil), Eva Mejuto e Catherine L’Ecuyer (Espanha). E ainda:
Trovadoras Itinerantes, La Luna – Compañia de Cuentos e Cleva, Coro de Leitura
em Voz Alta de Alcochete.
Rita Pimenta | Público
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