quarta-feira, 5 de junho de 2019

Portugal | Nós, os lesados da corrupção

Pedro Ivo Carvalho | Jornal de Notícias | opinião

A estatística devia sossegar-nos. Afinal, a perceção dos portugueses sobre a corrupção está em linha com a média europeia. Estagnamos no índice da Transparência Internacional. Mas depois somos sacudidos pela outra realidade que não a dos números inspirados na lógica sensorial e que nos ecoa nos ouvidos com a cadência de um martelo pneumático. Não há semana que passe sem uma nova história sobre corrupção, um esquema ardiloso, um emaranhado de cumplicidades espúrias. Porque não parece haver tréguas possíveis nessa torrente incessante e circular em que emergem o tráfico de influências, o peculato, a participação económica em negócio e a fraude fiscal. Em todos estes comportamentos desviantes (vamos chamar-lhes assim), há um denominador comum: nós. Os lesados da corrupção. Vítimas involuntárias que assistem a tudo na bancada, lançando os cheques em branco com que os serventuários ocasionais do regime forram o caminho.


O favorzinho, o dê lá um jeitinho que é para um amigo, progride com naturalidade na cadeia de valor. Para os patamares dos milhões de euros cozinhados nos gabinetes ministeriais, nos escritórios ensolarados das multinacionais, nos corredores das autarquias e nos bastidores de outras extensões do Estado. Esse outro Estado que floresce na penumbra, que espreme a vitalidade do Estado funcional, de que dependemos para as tarefas essenciais, que se esgueira pelos interstícios do sistema, que quer estar longe, mas que não sabe estar noutro lugar que não seja perto, a sugar os recursos. Aqui a força das palavras é necessária, porque não é simbólica. As quantidades alarmantes de euros que se esvaem neste processo endémico são os nossos impostos. O nosso trabalho. As nossas pensões. O combate à corrupção deve, porquanto, ser assumido como um desígnio e não como uma obrigação pré-eleitoral dos partidos do poder que geram mais arguidos ou condenados. As crises ideológicas dão certamente discussões interessantes, mas esta crise é sobre o modelo de desenvolvimento de um país que, por uma benigna perversão, até transferiu mais dinheiro dos impostos para a solidariedade. Inscrever a corrupção nos programas eleitorais não chega. É preciso músculo legislativo, punições exemplares e doutrina. É imperioso atacar esta parcela do Portugal que vive em fuga permanente.

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