segunda-feira, 8 de julho de 2019

Portugal | Votar na Saúde


Com as piruetas do Governo minoritário do PS a que se vem assistindo, quem quiser defender um SNS universal, geral e gratuito, sem PPP nem taxas moderadoras ou outras habilidades privatizadoras do género não terá no PS uma aposta segura. Pelo contrário.

Jorge Seabra | O Diário

Embalados pela esperança criada com a formação de um governo PS viabilizado pelo PCP e pelo BE para quebrar o velho «arco do poder», António Arnaut, ex-ministro histórico do PS, e João Semedo, ex-líder do BE, lançaram-se na luta pela salvação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), corroído por décadas de subfinanciamento e desestruturação causados por políticas governamentais favorecedoras dos grandes interesses privados.

A 6 de Janeiro de 2018, o livro Salvar o SNS, dos dois autores, com a proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde (LBS) que procurava recuperar o seu espírito original, foi lançado com pompa e circunstância na bela e enorme capela do Convento de São Francisco, em Coimbra.

A presença do primeiro-ministro, António Costa, e do ministro da Saúde, Adalberto Fernandes, rodeados por uma numerosa assistência onde curiosamente se juntavam «salvadores» e «agressores» do SNS reunidos num clima de aparente unidade, deixava, desde logo, uma marca de ambiguidade na iniciativa.

Aos discursos de ocasião, de que se destacou o de Manuel Alegre, a voz habitualmente usada pelo PS quando quer dar umas pincelas de vermelho no seu quotidiano, juntou-se a palavra artificialmente roufenha de João Semedo, já muito doente, que, com a ausência de Arnaut, igualmente afectado por graves problemas de saúde, acrescentaram um dramático tom de derradeira despedida das duas emblemáticas figuras da defesa do SNS.

Foi desta forma emotiva que foi posta na ordem do dia a revisão da Lei de Bases da Saúde de 1990, aprovada nos tempos do Governo de Durão Barroso só com os votos do PSD e CDS, escancarando as portas à privatização da Saúde.


Aparentemente, a maioria de deputados PS, PCP e BE que tinham viabilizado o Governo minoritário PS era suficiente para reverter esse processo. Mas, como desde logo alguns avisaram (entre eles o PCP), independentemente da bondade do objectivo, contar com essa soma aritmética e a morte da direita dos interesses e da sua influência no PS talvez fosse, manifestamente um exagero, como diria Mark Twain.

Na realidade, business is business, como diz a canção dos rappers Lil Baby e Guma que se começou a ouvir na altura. E a pergunta punha-se: a abertura da direcção do PS a um acordo à esquerda (até aí sempre recusado) seria por finalmente ter decidido tirar um pouco de socialismo da gaveta, ou por se ter sentido à beira do abismo caso se associasse a mais um governo austeritário de Passos e Portas, adivinhando um definhar até à insignificância como acontecera aos seus irmãos da Grécia e de França?

Uma política na continuidade, com tímidas reversões

A verdade é que a política do governo de Costa e do ministro Adalberto Fernandes, embora com tímidas reversões, estava longe de apontar para uma substancial mudança à esquerda. Muito pelo contrário. Apesar de algumas mudanças pontuais nas contratações e na limitação dos abusos mais flagrantes das taxas moderadoras, a vontade de continuar as parcerias público-privadas (PPP) e a gestão «empresarial» no SNS, com contratos de empresas de trabalho à tarefa e a exportação de listas de espera para o sector privado, manteve-se num crescendo, para além de outras decisões incoerentes ou num sentido errado.

Procurando três exemplos de importância diversa mas representativos dessa política, podemos referir a proibição de reuniões e jornadas científicas em instalações do SNS quando apoiadas por empresas farmacêuticas (o que, face à completa ausência de apoios estatais, apenas se compreende como uma medida populista e pseudomoralista de apoio à hotelaria, para onde se tiveram de deslocar esses eventos aumentando os seus custos), o inaceitável atraso no concurso para integração de jovens especialistas no SNS, fazendo com que muitos fossem para a privada ou emigrassem, e a criação e regulamentação de «centros de responsabilidade» no interior dos serviços hospitalares, promovendo, no melhor espírito de fragmentação «empresarial», grupos autónomos de médicos, enfermeiros e administradores que, actuando de forma independente, contratam com a administração por três anos o tratamento de doentes em lista de espera.

Claro que a nada disto a Lei de Bases de 1990 obrigava, como também, embora má, não obrigava à maior parte das malfeitorias feitas ao longo das décadas em que o «arco do poder» do PS, PSD e CDS governou. Nem sequer às PPP que Correia de Campos liberalmente implementou e Adalberto Fernandes fez os possíveis por manter, tendo prolongado sem concurso a de Cascais e só não tendo feito o mesmo à de Braga porque a concessionária Mello Saúde (CUF) exigiu mais, tornando o expediente inexequível.

Foi nessa continuidade que o governo decidiu nomear uma comissão para estudo da nova Lei de Bases presidida por outra sua ex-ministra e assessora da Luz Saúde, Maria de Belém, que teve como particularidade não integrar nenhum médico ou profissional do SNS. O resultado, já possível de prever, foi um texto que, por entre curvas e cotovelos de conceitos mais ou menos humanistas, defendia a continuação dos apoios aos grandes grupos privados, funcionando como um mero aggiornamento da LBS de 1990, o que logo levantou uma onda de protestos.

Enquanto aparentemente se travava a apregoada luta entre o «PS de esquerda» e o «PS de direita» – considerada, por alguns, como uma decisiva confrontação do PS com a sua verdadeira identidade e com a «herança de Arnaut» –, Costa, vendo aproximar-se as eleições, considerou oportuno fazer um outro aggiornamento, agora do próprio ministério: saiu o ministro Adalberto Fernandes, já demasiado desgastado e identificado com a direita, entrou Marta Temido, uma cara jovem que ganha os seus primeiros galões de gauche ao atirar o famigerado relatório Belém para o lixo.

A experiência mostra, contudo, que é sempre bom não personalizar demasiado as políticas ministeriais, que raramente têm alguma independência do colectivo governamental e do primeiro-ministro.

A personalização pode também dar jeito para desresponsabilizar o governo e fazer reset das medidas mais impopulares.

Recordemos a esse propósito que, na parte final do primeiro mandato de Sócrates, o Ministro Correia de Campos, depois de ter fechado Urgências, Serviços de Atendimento Permanente (SAP) e Maternidades, com o Zé Povinho na rua a protestar, viu-se substituído por Ana Jorge, prestigiada pediatra e conhecida como defensora do SNS que, defraudando as melhores expectativas, acabou com o regime de dedicação exclusiva nas Carreiras Médicas, um dos pilares do serviço público que se esperava vir a ser consolidado.

Para quem conhece minimamente a forma e o âmbito de uma Lei de Bases, percebe-se que ela só verdadeiramente se define nas fronteiras que traça sem ambiguidades, nas linhas vermelhas que criam proibições sem janelas ou frinchas por onde se possam esgueirar leis avulsas ou práticas contrárias.

Expressões difusas no significado ou no tempo como «a gestão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde é pública podendo ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas ou do sector social» só representarão avanços se substituídas por outras mais simples e incontornáveis como «os serviços e estabelecimentos do SNS não podem ser geridos por entidades privadas ou do sector social».

Quanto ao resto, uma pincelada de esquerda pode até ser de bom tom nos princípios introdutórios, como disse Lobo Xavier, o comentador mais à direita na Circulatura do Quadrado da SIC, desde que, como referiu, seja como o «caminho para o socialismo», ainda presente na Constituição mas que, na prática, não significa nada.

«Ela [a Lei de Bases] que afirme, em termos emblemáticos, a supremacia do sector público! […] Eu estou-me nas tintas para que o PS ponha lá na lei uma espécie de slogans que lavem a consciência e honrem lá a memória de uns militantes…», concede Lobo Xavier. O importante, acrescenta, é que a lei assegure «o melhor para as pessoas» o que, no parecer do «pragmático» advogado dos grandes negócios, é manter ou até aumentar o número de PPP e a progressiva privatização dos cuidados de Saúde.

Com alguns enunciados que aparentavam apontar para o caminho certo, a negociação da Lei de Bases da Saúde com o PCP e o BE acabou por parecer ultrapassar esses slogans para «lavar a consciência» e chegar-se mais à esquerda, com o governo a apresentar uma proposta em que aceitava o fim da gestão privada das unidades do SNS.

Que a referida proposta não era uma iniciativa pessoal da ministra, prova-o (caso fosse necessário), o facto de o primeiro-ministro ter confirmado explicitamente, na Assembleia da República, o seu conhecimento, em resposta ao BE.

Piruetas à esquerda e à direita

O que se seguiu depois foi pouco edificante, mas exemplar quanto ao contorcionismo dos processos e à falta de convicções e hipocrisia ideológica.

O BE aproveitou a deixa para publicar de imediato a proposta de redacção da ministra ainda antes de concluída a negociação, pretendendo, talvez, aparecer como primeiro vencedor e amarrar o governo ao que tinha escrito.

Como resposta, o PS de esquerda ficou «zangado» com a «habilidade» do BE e passou a PS de direita, mandando às urtigas a memória de Arnaut e o conteúdo da sua própria proposta.

Argumentando com a falha de lealdade negocial, o governo carregou no botão privatizador e ligou o discurso passista-troikiano de Carlos César, retirando tudo o que até aí parecia considerar bom para o povo português – o fim das PPP e das taxas moderadoras.
Se não parecia dar jeito namorar à esquerda então talvez fosse de fazer olhinhos à direita, e toca de abrir negociações com o PSD, cuja proposta, elaborada pelo ex-ministro Luís Filipe Pereira (gestor da Mello Saúde), defendia praticamente tudo o contrário do que até aí o PS dizia defender, como se num aparente e teatral arrufo se pudessem jogar decisões importantes para o futuro do SNS e para a saúde dos portugueses.

O rápido desacordo com as exigências maximalistas e neoliberais do PSD surge, por isso, como numa cena já ensaiada, porque uma tão grande reviravolta também podia parecer mal, ou, como disse o conhecedor Francisco Assis a propósito da vergonhosa trapalhada que tem sido a escolha dos novos dirigentes da União Europeia, «se há lição a tirar de todo este episódio é a de que a acrobacia política tem os seus limites».

Por uma vez e também no caso da Saúde, Francisco Assis tem razão.

E com a voz do GPS eleitoral a dizer para primeiro virar à esquerda e depois virar à direita, as reversões necessárias dos anos de política «austeritária» na Saúde vão ficando em águas de bacalhau, enquanto o descontentamento dos profissionais do SNS cresce, com promessas atiradas para a próxima legislatura.

Para compor o quadro e aproveitando o momento, eis que aparece um tão oportuno como enviesado ranking classificativo dos Hospitais com três PPP à cabeça, esquecendo-se que a primeira está acusada de internar doentes em instalações sanitárias e no refeitório e a outra de falsificar a classificação das urgências.

O que também não parou de borbulhar foi a argumentação justificativa do recuo do PS na LBS: porque o Presidente Marcelo (exorbitando mais uma vez as suas funções) já disse que não deixa, porque é preciso um «acordo de regime» que crie estabilidade (como se a LBS que se mantém desde 1990 não tivesse sido aprovada só pelo PSD e CDS), porque as PPP são um pormenor insignificante e ser contra elas é «ideológico» (mas ser a favor já não é), porque o dinheiro das taxas «moderadoras» faz falta ao orçamento (esquecendo-se que as taxas como copagamento são proibidas pela Constituição).

Mas então, perguntarão as alminhas mais puras, qual será a verdadeira razão de todas estas piruetas do governo?

Afinal, a proposta apresentada com o fim das PPP era só um bluff, para ser depois ardilosamente retirada no decorrer das negociações? Será que as sondagens e as indicações dos spin-doctors vieram reavivar as esperanças do PS de se livrar da pressão «constrangedora» (na expressão do ministro Capoula Santos) do PCP e do BE, procurando a «liberdade» de uma maioria absoluta conseguida ao «centro», que, nas últimas décadas, passou a significar a direita tornada «normal» e «sem ideologia» pelo domínio dos média ligados à área do poder? Ou, depois de ultrapassado o risco de se ver reduzido à insignificância, como o PASOK (graças a algumas cedências à esquerda), volta a emergir à superfície o «velho» PS ligado aos interesses do grande capital, que nele volta a investir?

Provavelmente, é tudo isso e mais alguma coisa, deixando descalça a sua base social de apoio, que ainda acredita na defesa do «Estado Social», sem saber em que sentido vai ser usado o seu voto.

Também por isso, quem quiser defender um SNS universal, geral e gratuito, sem PPP nem taxas moderadoras ou outras habilidades privatizadoras do género, não terá no PS uma aposta segura.

O melhor é confiar nos partidos à sua esquerda. Até para forçar o PS a uma política de esquerda. Mas o mais seguro é mesmo apoiar o mais à esquerda da sua esquerda. A experiência assim o mostra. Sem preconce

Fonte: AbrilAbril

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