domingo, 11 de agosto de 2019

A Turquia não se alinhará nem com a OTAN, nem com a OTSC


Thierry Meyssan*

Após três anos de ausência relativa da cena internacional, a Turquia definiu a sua via. Ao mesmo tempo que permanece como membro da Aliança Atlântica, e do seu comando integrado, pensa agarrar a sua independência. Ela não irá receber ordens nem da Aliança Atlântica, nem do Tratado de Segurança Colectiva. No plano interno, ao mesmo tempo que se define como muçulmana, deseja integrar as minorias numa base nacional e combater os elementos subordinados aos Estados Unidos.

Turquia muda e as projecções de George Friedman, fundador da Stratfor, revelam-se falsas. Se o antigo Império Otomano visa desenvolver-se, ele não será vassalo dos Estados Unidos.

Mais do que julgar a Turquia através do olhar das normas ocidentais e troçar do seu «novo sultão», devemos tentar compreender como «o sujeito doente da Europa» tenta recuperar do seu atraso cultural em relação à modernidade e da sua derrota da Primeira Guerra mundial, sem portanto negar a sua especificidade histórica e geográfica. Com efeito, um século depois, a via insuflada por Atatürk não chegou ao seu termo e os problemas permanecem.


Nós tínhamos julgado que com o AKP, a Turquia se ia tornar uma democracia islâmica inclusiva, comparando a sua doutrina à da democracia-cristã europeia. Progressivamente, retomava a sua grandeza otomana tornando-se o porta-voz do mundo muçulmano. Apoiada pelos Estados Unidos, ela era levada a tornar-se uma potência económica de primeiro plano. Prosseguindo a sua modernização e a sua ocidentalização, virava então as costas ao seu cliente principal, a Líbia, depois ao seu parceiro económico, a Síria, e envolvia-se cada vez mais com o Ocidente.

No entanto, a tentativa de assassinato do recém-eleito Presidente Recep Tayyip Erdoğan, a 15 de Julho de 2016, em Marmaris, que se transformou num Golpe de Estado improvisado, falhou miseravelmente em reverter a situação. Durante três anos, o AKP tentou digerir esta evolução louca. Ele lançou-se numa introspecção da sua política. Assim, para clarificar as suas posições encenou o terceiro aniversário do Golpe de Estado.

Primeiro, contrariamente ao que se julgava ter compreendido, a Turquia moderna não está nem com o Ocidente, nem com o Leste. Ela define-se como um país a cavalo entre os dois mundos, meio asiático meio europeu, o que nem a sua adesão à Aliança Atlântica nem a sua participação nas guerras ocidentais das «Primaveras Árabes» muda.

E, o que é ilustrado pela compra do sistema anti-aéreo russo, S-400. Ancara reivindica, ao mesmo tempo, a pertença à OTAN tal como a sua capacidade de comprar armas ao adversário da Aliança. Ela precisa mesmo, com razão, que nada nos textos lhe interdita esta escolha, nem autoriza seja quem for a sancioná-la.

Mais do que nunca, os Turcos são «os filhos do lobo das estepes» que conquistaram a Ásia e parte da Europa. É nesse sentido que é preciso levar em conta as negociações de Astana (Rússia-Irão-Turquia) para a paz na Síria. Ou ainda as declarações anti-imperialistas da delegação turca à Conferência dos não-alinhados de Caracas.

Em segundo lugar, a Turquia assenta a sua independência económica sobre o seu projecto energético do Turkish Stream e na exploração da zona marítima exclusiva de Chipre. É evidentemente o ponto fraco. Alguns troços do gasoduto russo-europeu que passa pela Turquia estão já operacionais. Mas a Comissão Europeia pode sempre obstaculizá-lo sob pressão dos EUA; a importância dos investimentos apenas pesará mais na balança no caso do Nord Stream 2. Finalmente, segundo o Direito Internacional, a Turquia não tem quaisquer direitos na zona marítima exclusiva cipriota e o apoio da fantoche República turca de Chipre do Norte é nulo e sem futuro.

É neste contexto que o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Mevlüt Çavuşoğlu, acaba de anunciar a suspensão do acordo migratório com a União Europeia (justamente após ter recebido o pagamento de 2 mil milhões de euros por ano).

Em terceiro lugar, a Turquia rompe com o modelo financeiro anglo-saxão. O nível de vida entrou num progressivo afundamento desde a guerra ocidental contra a Líbia e mais ainda durante a guerra, igualmente ocidental, contra a Síria. Ancara decidiu, pois, bruscamente retomar as rédeas do seu Banco Central e descer a taxa de juro de 24% para 19,75%. Ninguém sabe quais serão as consequências económicas desta decisão.

Em quarto lugar, contrariamente ao período inclusivo de 2002-2016, ser Turco é ainda possível para as minorias, mas não para indivíduos que concluíram alianças no estrangeiro. Desde o Golpe de Estado, uma gigantesca purga expulsou do exército e da administração todos aqueles que eram suspeitos de manter laços de subordinação com os Estados Unidos, e particularmente os discípulos de Fethullah Gülen (refugiado na Pensilvânia). Centenas de milhar de cidadãos foram presos. Não foi retomada a guerra contra a minoria curda, mas, sim contra os Curdos aliados de Washington.

Contrariamente à percepção que temos disso, Recep Tayyip Erdoğan não impõe uma ditadura por mitomania pessoal, antes recorre à violência para mudar o rumo do seu país.
Em quinto lugar, a Turquia define-se como um Estado muçulmano respeitador das minorias. O Presidente Erdoğan acaba, por exemplo, de colocar a primeira pedra de uma igreja siríaca em Istambul. Esta escolha é incompatível com o seu apoio cego à Confraria dos Irmãos Muçulmanos e ao seu projecto de Califado. A «solidariedade muçulmana» é uma ilusão desprovida de sentido e —.tal como para o Irão--- é preciso escolher de que «Islão» ela fala. Desde logo, rompeu com a sua posição anterior ao não apoiar tão fortemente os muçulmanos do Xinjiang chinês.

Actualmente, o exército turco ocupa Chipre-Norte, conduz uma guerra no Iraque, na Síria e na Líbia, e está a instalar-se a toda a volta da Arábia Saudita: no Catar, no Kuwait, no Sudão e no Mar Vermelho. Esta actividade a todos os azimutes não poderá durar e seguramente menos em oposição quer a Israel como à Aliança Atlântica.

Tudo isso mostra, de facto, novas perspectivas que não agradam aos Estados Unidos. Desde já o antigo Ministro da Economia, Ali Babacan, e o antigo Primeiro-ministro Ahmet Davutoğlu juntaram-se ao antigo Presidente, Abdullah Gül. Este último, que renunciara a rivalizar com o seu ex-parceiro Erdoğan durante as eleições legislativas, considera que a derrota do AKP nas eleições municipais —nomeadamente em Istambul--- abre a possibilidade de prevenir a instauração de uma ditadura. Juntos, eles tentam organizar, com a ajuda da CIA, uma dissidência no seio do AKP. Trata-se para Langley de alcançar por via eleitoral o mesmo objectivo da tentativa falhada de assassinato do Presidente Erdoğan em 2016.

«Se não se foi desapontado por eles, por quem o seria?» declarou o Presidente Erdoğan.

Thierry Meyssan | Voltaire.net.org | Tradução Alva

* Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

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