Ataques à imprensa. Funcionários
“divergentes” demitidos. Nepotismo escancarado. Elogios à ditadura. Em seis
meses, governo Bolsonaro mostra do que pode ser capaz — se não for barrado por
grandes manifestações
Almir Felitte | Outras Palavras
Democracia, muitas vezes, é um
termo controverso. Em nome dela, por exemplo, e usando-a como uma falsa
justificativa, guerras são travadas por países que, na base da força,
conquistaram o direito de dizer quem é e quem não é democrático mundo
afora. É também em nome de uma “democracia liberal” que uma elite minúscula em
tamanho conseguiu criar uma verdadeira ditadura dos interesses burgueses na
ordem mundial. Por essas e outras, confesso ter dificuldades em definir o que é
Democracia. Mas se ela realmente foi pensada como contraponto a regimes
autoritários, uma coisa é certa: o Brasil ficou bem mais distante dela nos
últimos tempos.
É bem verdade que as
“benfeitorias democráticas” nunca atingiram igualmente a todos os brasileiros
na longa história do nosso país, onde a desigualdade sempre relegou as camadas
mais pobres e vulneráveis a um grande déficit de democracia. Nos
últimos cinco anos, porém, esse déficit começou a se tornar um
verdadeiro abismo. É o que acontece quando a elite de um país, talvez por interesses
das elites de outros países, resolve simplesmente rasgar o “livro de regras” da
sociedade para tomar o poder.
Desde que os resultados
eleitorais foram contestados em 2014 por uma direita mais uma vez derrotada, já
ficara claro o tom de vale-tudo que essa mesma direita implantaria na política
brasileira, mesmo que a esquerda vencedora, ironicamente, estivesse disposta a
fazer uma série de concessões à agenda liberal na economia. Mas quem achava que
o fundo do poço de autoritarismo no país seria um impeachment sem base legal se
enganou redondamente.
Poderia dizer que uma tragédia anunciada
não é tão assustadora assim, pois já é esperada. Ainda mais quando a tragédia
se trata de um Presidente que, logo após vencer as eleições, confirmou
publicamente, em rede nacional, o seu desejo de pulverizar a oposição através
de prisões, exílios e execuções. Mas a velocidade que a ruptura democrática
atingiu nos últimos meses é aterrorizante. Impressiona como um país pode ser
submetido a tantos fatos autoritários em tão curto espaço de tempo e de forma
cada vez mais desavergonhada.
Aliás, vergonha tem sido item
ausente em um Governo cujo Presidente admite nepotismo em tom de deboche a cada
vez que vê um microfone da grande mídia. Se a ascensão meteórica do filho de
Mourão no Banco do Brasil já parecia ruim, talvez nem mesmo os mais pessimistas
esperassem a indicação de um “Baby Doc” à embaixada brasileira nos EUA,
anunciada por um “Papa Doc” risonho e orgulhoso, em meio a piadas, para a
imprensa.
Na imprensa, aliás, já se notam
os primeiros indícios de censura. Não a autocensura que já nos acostumamos a
ver, quando as grandes mídias evitam tocar em assuntos que não são de seus
interesses. Mas a censura clássica mesmo, daquelas que parecem a um passo de
descambar para a violência contra jornalistas. As ameaças à segurança de Glenn
Greenwald por revelar os escândalos da Vaza Jato são emblemáticas, mas até
gente como Miriam Leitão, que aplaude boa parte das medidas do Governo, já vem
sofrendo um forte cerco dessas “milícias bolsonaristas”, grupos cada vez mais
próximos de tornarem-se uma versão brasileira do Patria y Libertad,
milícia fascista que surgiu no Chile pouco antes do golpe de Pinochet.
Mas enquanto na mídia a censura
ainda não chega a ser tão direta, nos órgãos oficiais de Governo já não se pode
mais dizer o mesmo. O caso do INPE, onde o diretor do instituto foi exonerado
por revelar dados de desmatamento que Bolsonaro não gostaria que se tornassem
públicos, foi um dos últimos, mas a lista dos indícios de aparelhamento
autoritário do Estado brasileiro pelo Presidente é extensa
.
As trocas de membros na Comissão
de Mortos e Desaparecidos Políticos e a transferência de um oceanógrafo que
dificultava a expansão hoteleira em Noronha para o Sertão Nordestino também são
casos recentes que se somam à exoneração de uma diretora do INEP que criticou o
Presidente quando este disse que gostaria de ver a prova do ENEM antes de sua
aplicação e à exoneração de um chefe do IBAMA que havia multado Jair em 2012,
entre tantos outros casos.
Com todos esses acontecimentos
autoritários em um tão curto espaço de tempo, é impossível não se questionar se
ainda estaríamos vivendo em tempos democráticos, mesmo que se considere o
conceito capenga de Democracia que sempre vivemos no Brasil. Aliás, importante
dizer: nossas falhas democráticas costumeiras, que sempre atingiram os mais
pobres, também estão piorando. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
o número de vítimas letais da violência policial no país, por exemplo, saltou
de 3.330 em 2015 para 4.240 em 2016, chegando a 5.159 em 2017. Tudo indica que
a situação será ainda pior este ano.
Essa rápida escalada autoritária
vista no Brasil nos leva a pensar que Bolsonaro vai se tornando uma espécie de
“Ditador de Schrödinger”. Sem ainda ter sido testado por amplas manifestações
populares mais enérgicas, como a que incendiou Ministérios em 2017, não podemos
afirmar com todas as letras qual será a reação de Bolsonaro a revoltas que
possam nascer da já existente insatisfação popular com o seu Governo. Até lá,
Bolsonaro, ao mesmo tempo, é e não é um déspota escancarado. Suas atitudes até
agora, porém, já mostram bem o que veremos quando “abrirmos essa caixa”.
No último sábado, um encontro de
mulheres organizado pelo PSOL foi intimidado pela Polícia Militar, que queria
identificar as mulheres ali presentes. No dia seguinte, domingo, um torcedor do
Corinthians foi agredido pela polícia, retirado do estádio e detido por
criticar o Presidente. Em pouco mais de seis meses, já não resta muito “verniz
democrático” no Governo Bolsonaro. Esperaremos não poder escrever mais textos
como este que agora escrevo para pararmos essa tragédia?
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