Se há coisa a greve dos
camionistas revela é que os jornalistas, mais
uma vez, não parecem entender o que está em causa.
João Ramos de Almeida*
João Ramos de Almeida*
A greve dos motoristas tem todos
os contornos para ser considerada estranha:
1) um grupo profissional que esteve "parado" durante 20 anos, de repente "acorda" e é capaz de fazer greves por tempo indeterminado (como se não precisassem dos salários) e durante um período pré-eleitoral, em que está em julgamento um governo apoiado à esquerda; 2) uma greve que surge mesmo após outra greve por tempo indeterminado - a dos enfermeiros dos blocos operatórios - que afectou apenas hospitais públicos (nos privados não havia blocos operatórios?) e que foi financiada por um fundo de greve pouco transparente, em que, nalguns dias, entravam a cada hora centenas de euros; 3) um sindicato dos motoristas que nasceu com um dirigente que é advogado, especialista em offshores e até há bem pouco tempo desconhecido do movimento sindical; 4) e em todas as lutas, numa e noutra, com um apoio maciço das suas centenas de profissionais, capaz de ter efeitos generalizados sobretudo sobre a população e capaz de desestabilizar um país, tudo cheirando a demasiada organização, com traços semelhantes a outras manobras que já se viram noutros países, como no Chile em 1973, visando derrubar o governo legítimo do socialista Salvador Allende.
Por isso, primeiro, sente-se o seu embaraço. Em geral, os jornalistas andaram ao colo com os novos "sindicatos independentes" - que eram genuínos e renovados -, desvalorizando o velho papel sindical, sobretudo dos sindicatos "afectos" (não são capazes de usar a palavra filiados) a uma central sindical, a CGTP. Mas agora parecem assustar-se. Hoje de manhã, o pivot da SIC designou-os como os sindicatos "ditos independentes" e em crónicas várias quase que se pede o regresso dos "civilizados" sindicatos "afectos" ao PCP. E não foram precisos muitos meses.
Antes, sentia-se que estavam a favor das lutas desses sindicatos independentes - talvez porque atingiam o Governo socialista. Antes da greve, um outro pivot da SIC, noutra emissão, quase trucidou em entrevista o representante da ANTRAM. Agora, aceitam a requisição civil que, claramente, dá força a um dos lados do conflito e põe em causa o direito à greve, mesmo que respaldado num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, favorável à ideia da requisição preventiva, coisa que não existe no ordenamento jurídico.
1) um grupo profissional que esteve "parado" durante 20 anos, de repente "acorda" e é capaz de fazer greves por tempo indeterminado (como se não precisassem dos salários) e durante um período pré-eleitoral, em que está em julgamento um governo apoiado à esquerda; 2) uma greve que surge mesmo após outra greve por tempo indeterminado - a dos enfermeiros dos blocos operatórios - que afectou apenas hospitais públicos (nos privados não havia blocos operatórios?) e que foi financiada por um fundo de greve pouco transparente, em que, nalguns dias, entravam a cada hora centenas de euros; 3) um sindicato dos motoristas que nasceu com um dirigente que é advogado, especialista em offshores e até há bem pouco tempo desconhecido do movimento sindical; 4) e em todas as lutas, numa e noutra, com um apoio maciço das suas centenas de profissionais, capaz de ter efeitos generalizados sobretudo sobre a população e capaz de desestabilizar um país, tudo cheirando a demasiada organização, com traços semelhantes a outras manobras que já se viram noutros países, como no Chile em 1973, visando derrubar o governo legítimo do socialista Salvador Allende.
Por isso, primeiro, sente-se o seu embaraço. Em geral, os jornalistas andaram ao colo com os novos "sindicatos independentes" - que eram genuínos e renovados -, desvalorizando o velho papel sindical, sobretudo dos sindicatos "afectos" (não são capazes de usar a palavra filiados) a uma central sindical, a CGTP. Mas agora parecem assustar-se. Hoje de manhã, o pivot da SIC designou-os como os sindicatos "ditos independentes" e em crónicas várias quase que se pede o regresso dos "civilizados" sindicatos "afectos" ao PCP. E não foram precisos muitos meses.
Antes, sentia-se que estavam a favor das lutas desses sindicatos independentes - talvez porque atingiam o Governo socialista. Antes da greve, um outro pivot da SIC, noutra emissão, quase trucidou em entrevista o representante da ANTRAM. Agora, aceitam a requisição civil que, claramente, dá força a um dos lados do conflito e põe em causa o direito à greve, mesmo que respaldado num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, favorável à ideia da requisição preventiva, coisa que não existe no ordenamento jurídico.
Segundo, os jornalistas não conseguem entender uma luta por jornadas de trabalho de 8 horas ou uma greve a trabalho extraordinário porque, eles próprios jornalistas, acham que isso faz parte de uma reivindicação do tempo da Revolução Industrial. Todos recebem subsídios de isenção de horário e aceitam que o trabalho seja "o que for preciso fazer". Mesmo que isso corresponda ao trabalho de duas pessoas!
Nas entrevistas aos membros do Governo, raramente ou nunca os jornalistas lhes perguntam como é possível que a Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) não tenha - durante 20 anos - fiscalizado e posto na ordem um sector com jornadas de trabalho como as dos motoristas! A jornada de trabalho é tão adulterada que a própria requisição civil fortalece a greve em curso, ao impor um horário de 7 horas - que é o dos funcionários públicos -, que fura os próprios "serviços mínimos", estimados - pelo Governo - com base em jornadas de trabalho mais alargadas, porque verificadas no período homólogo!! Numa entrevista recente no programa 360, Ana Lourenço fez essa pergunta ao ministro Vieira da Silva e sentiu-se o seu embaraço.
Terceiro, em geral os jornalistas não entendem que um sindicato use a sua vantagem negocial de fechar a torneira do único combustível que move esta sociedade, ou de conter as exportações ou de parar o fluxo turístico (como foi o caso nos anos 90 dos pilotos da TAP cuja greve levou um ministro socialista a criticá-la em conferência de imprensa...). Na verdade, os trabalhadores são isso mesmo: o sangue de um sistema que o pode fazer parar quando tomam consciência disso.
Conviria que, na luta, se prejudicasse antes o lado patronal - não a população - e, neste caso concreto, não servir para justificar uma subida artificial dos preços dos combustíveis. Mas se essa é a sua força, por que não parar por causa de um acordo a 3 anos? "Não, isso é incompreensível".
Quarto, os jornalistas não entendem o papel do Estado numa sociedade. Acham que se trata de "um assunto entre privados". No entanto, desde 1976 que assistem - sem protestar - a um PS que adoptou como seus, progressiva e inexoravelmente, os mecanismos legais laborais que o FMI e a direita sustentam como eficazes, mas que degradaram as condições de vida desse sangue do sistema, atacaram o papel dos sindicatos, sem ter trazido ganhos relevantes na competitividade externa.
O patronato e o Governo queixam-se de que os sindicatos estão a forçar uma negociação com "uma espada sobre a cabeça". Mas nem o patronato nem o Governo nem o próprio ministro Vieira da Silva nem o ministro dos Negócios Estrangeiros (que surge agora a querer alargar a requisição civil a todo o país) se lembraram disso quando, desde 2006, o fizeram para o lado dos trabalhadores, ao terem aprofundado as condições impostas pelo Código de Trabalho de 2003, desestabilizando ainda mais a negociação colectiva, hoje ainda mal refeita desse trambolhão tão bem aproveitado pela troica e o Governo PSD/CDS (2011/2015).
Os dois jornalistas à conversa no estúdio da SIC apenas julgavam: "Para haver a paz, tem de haver um cessar-fogo"; "E que achas de dizerem querer parar por 3 meses?", questionava o pivot, "Eu não posso!"; "o Governo não pode interferir e obrigar os privados a sentar-se", mas ao mesmo tempo defendia-se: "É preciso encontrar outros protagonistas que estes já não se entendem". Face aos telefonemas dos espectadores que falavam dos imans na caixa de velocidade para não registar a duração da jornada de trabalho (!) e se questionavam por que não actuava a ACT, os jornalistas continuaram a falar do mesmo, sem ater-se ao problema dos horários de trabalho: "Também há pequenas e médias empresas no sector que não podem pagar..."!
Veja-se o programa e questione-se sobre em que mundo vivem os jornalistas. E pense-se por que razão, de repente, o mundo lhes parece ter caído sobre a cabeça.
João Ramos de Almeida* | Ladrões de Bicicletas
*Formado em Economia, foi
jornalista de 1986 a
2012 e trabalha actualmente como consultor no Observatório sobre Crises e
Alternativas do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. É autor
do Livro "Eleições Viciadas?", editado pelas Publicações Dom Quixote
(2008), de dois filmes de animação (Boxe e Com uma Sombra na Alma) e de dois
documentários (OP Belô e Ensaio sobre a Fraude Eleitoral)
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