domingo, 18 de agosto de 2019

Portugal | Do outro lado do mundo


Se há coisa a greve dos camionistas revela é que os jornalistas,  mais uma vez, não parecem entender o que está em causa.

João Ramos de Almeida*

A greve dos motoristas tem todos os contornos para ser considerada estranha:

1) um grupo profissional que esteve "parado" durante 20 anos, de repente "acorda" e é capaz de fazer greves por tempo indeterminado (como se não precisassem dos salários) e durante um período pré-eleitoral, em que está em julgamento um governo apoiado à esquerda; 2) uma greve que surge mesmo após outra greve por tempo indeterminado - a dos enfermeiros dos blocos operatórios - que afectou apenas hospitais públicos (nos privados não havia blocos operatórios?) e que foi financiada por um fundo de greve pouco transparente, em que, nalguns dias, entravam a cada hora centenas de euros; 3) um sindicato dos motoristas que nasceu com um dirigente que é advogado, especialista em offshores e até há bem pouco tempo desconhecido do movimento sindical; 4) e em todas as lutas, numa e noutra, com um apoio maciço das suas centenas de profissionais, capaz de ter efeitos generalizados sobretudo sobre a população e capaz de desestabilizar um país, tudo cheirando a demasiada organização,  com traços semelhantes a outras manobras que já se viram noutros países, como no Chile em 1973, visando derrubar o governo legítimo do socialista Salvador Allende. 

Por isso,  primeiro, sente-se o seu embaraço. Em geral, os jornalistas andaram ao colo com os novos "sindicatos independentes" - que eram genuínos e renovados -, desvalorizando o velho papel sindical, sobretudo dos sindicatos "afectos" (não são capazes de usar a palavra filiados) a uma central sindical, a CGTP.  Mas agora parecem assustar-se. Hoje de manhã, o pivot da SIC designou-os como os sindicatos "ditos independentes" e em crónicas várias quase que se pede o regresso dos "civilizados" sindicatos "afectos" ao PCP. E não foram precisos muitos meses.

Antes, sentia-se que estavam a favor das lutas desses sindicatos independentes - talvez porque atingiam o Governo socialista. Antes da greve, um outro pivot da SIC, noutra emissão, quase trucidou em entrevista o representante da ANTRAM. Agora, aceitam a requisição civil que, claramente, dá força a um dos lados do conflito e põe em causa o direito à greve, mesmo que respaldado num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, favorável à ideia da requisição preventiva,  coisa que não existe no ordenamento jurídico

No programa Praça Pública desta manhã, na SIC, os dois jornalistas em estúdio questionavam-se sobre a quem mais favorecia esta luta. E dizia um deles: "Ao Governo: já não se fala de mais nada senão na greve. Nem se fala dos hospitais, nem dos fogos...". Veja-se bem: eles a queixar-se de que os jornalistas não se preocupam com mais nada senão com a luta dos motoristas, porque aquilo com deviam preocupar-se era apenas... com a ruptura dos hospitais  e com os fogos!

Segundo, os jornalistas não conseguem entender uma luta por jornadas de trabalho de 8 horas ou uma greve a trabalho extraordinário porque, eles próprios jornalistas, acham que isso faz parte de uma reivindicação do tempo da Revolução Industrial. Todos recebem subsídios de isenção de horário e aceitam que o trabalho seja "o que for preciso fazer". Mesmo que isso corresponda ao trabalho de duas pessoas!

Nas entrevistas aos membros do Governo, raramente ou nunca os jornalistas lhes perguntam como é possível que a Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) não tenha -  durante 20 anos - fiscalizado e posto na ordem um sector com jornadas de trabalho como as dos motoristas! A jornada de trabalho é tão adulterada que a própria requisição civil fortalece a greve em curso, ao impor um horário de 7 horas - que é o dos funcionários públicos -, que fura os próprios "serviços mínimos", estimados - pelo Governo - com base em jornadas de trabalho mais alargadas, porque verificadas no período homólogo!! Numa entrevista recente no programa 360, Ana Lourenço fez essa pergunta ao ministro Vieira da Silva e sentiu-se o seu embaraço.

Terceiro, em geral os jornalistas não entendem que um sindicato use a sua vantagem negocial de fechar a torneira do único combustível que move esta sociedade, ou de conter as exportações ou de parar o fluxo turístico (como foi o caso nos anos 90 dos pilotos da TAP cuja greve levou um ministro socialista a criticá-la em conferência de imprensa...). Na verdade, os trabalhadores são isso mesmo: o sangue de um sistema que o pode fazer parar quando tomam consciência disso.

Conviria que, na luta, se prejudicasse antes o lado patronal - não a população - e, neste caso concreto, não servir para justificar uma subida artificial dos preços dos combustíveis. Mas se essa é a sua força, por que não parar por causa de um acordo a 3 anos? "Não, isso é incompreensível". 

Quarto, os jornalistas não entendem o papel do Estado numa sociedade. Acham que se trata de "um assunto entre privados". No entanto, desde 1976 que assistem - sem protestar - a um PS que adoptou como seus, progressiva e inexoravelmente, os mecanismos legais laborais que o FMI e a direita sustentam como eficazes, mas que degradaram as condições de vida desse sangue do sistema, atacaram o papel dos sindicatos, sem ter trazido ganhos relevantes na competitividade externa. 

O patronato e o Governo queixam-se de que os sindicatos estão a forçar uma negociação com "uma espada sobre a cabeça". Mas nem o patronato nem o Governo nem o próprio ministro Vieira da Silva nem o ministro dos Negócios Estrangeiros (que surge agora a querer alargar a requisição civil a todo o país) se lembraram disso quando, desde 2006, o fizeram para o lado dos trabalhadores, ao terem aprofundado as condições impostas pelo Código de Trabalho de 2003, desestabilizando ainda mais a negociação colectiva, hoje ainda mal refeita desse trambolhão tão bem aproveitado pela troica e o Governo PSD/CDS (2011/2015).    

Os dois jornalistas à conversa no estúdio da SIC apenas julgavam: "Para haver a paz, tem de haver um cessar-fogo"; "E que achas de dizerem querer parar por 3 meses?",  questionava o pivot, "Eu não posso!"; "o Governo não pode interferir e obrigar os privados a sentar-se", mas ao mesmo tempo defendia-se: "É preciso encontrar outros protagonistas que estes já não se entendem". Face aos telefonemas dos espectadores que falavam dos imans na caixa de velocidade para não registar a duração da jornada de trabalho (!) e se questionavam por que não actuava a ACT, os jornalistas continuaram a falar do mesmo, sem ater-se ao problema dos horários de trabalho: "Também há pequenas e médias empresas no sector que não podem pagar..."!

Veja-se o programa e questione-se sobre em que mundo vivem os jornalistas. E pense-se por que razão, de repente, o mundo lhes parece ter caído sobre a cabeça.

João Ramos de Almeida* | Ladrões de Bicicletas

*Formado em Economia, foi jornalista de 1986 a 2012 e trabalha actualmente como consultor no Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. É autor do Livro "Eleições Viciadas?", editado pelas Publicações Dom Quixote (2008), de dois filmes de animação (Boxe e Com uma Sombra na Alma) e de dois documentários (OP Belô e Ensaio sobre a Fraude Eleitoral)

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