Num país governado por rara
coalizão de esquerda, o protofascismo manipula redes sociais, estimula
estranhíssima greve de caminhoneiros e difunde intrigas entre socialistas e
comunistas. Mas é possível frear sua investida
Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras
Vários acontecimentos recentes
têm revelado sinais cada vez mais perturbadores de que o internacionalismo de
extrema-direita está transformando Portugal num alvo estratégico. Entre eles,
saliento a tentativa recente de alguns intelectuais de jogar a cartada do ódio
racial para testar as divisões da direita e da esquerda e assim influenciar a
agenda política; a reunião internacional de partidos de extrema-direita em
Lisboa e a simultânea greve do recém-criado Sindicato Nacional dos Motoristas
de Matérias Perigosas.
Várias razões militam a esse
respeito. Portugal é o único país da Europa com um governo de esquerda numa
legislatura completa e em que se aproxima um processo eleitoral [as eleições ocorrerão
em 6 de outubro], e é o único onde não tem presença parlamentar nenhum
partido de extrema-direita. Será Portugal assim tão importante para merecer
esta atenção estratégica? É importante, sim, porque, da perspectiva da
extrema-direita internacional, Portugal representa o elo fraco por onde ela
pode atacar a União Europeia. O objetivo central é, pois, destruir a UE e fazer
com que a Europa regresse a um continente de Estados rivais onde os
nacionalismos podem florescer e as exclusões sócio-raciais podem ser mais
facilmente manipuláveis no plano político.
Para a extrema-direita
internacional, a direita tradicional desempenha um papel muito limitado neste
objetivo, até porque ela foi durante muito tempo a força motora da União
Europeia. Daí que seja tratada com relativo desprezo, pelo menos até se
aproximar, pelo seu próprio esvaziamento ideológico, da extrema-direita, tal
como está acontecendo na Espanha. As forças de esquerda, ao contrário, são
forças a neutralizar. Para a extrema-direita, as esquerdas terão se dado conta
de que a UE, com todas as suas limitações, que durante muito tempo foram razão
suficiente para algumas dessas esquerdas serem antieuropeístas, é hoje uma
força de resistência contra a onda reacionária que avassala o mundo.
Não se pode esperar da UE muito
mais do que a defesa da democracia liberal, mas esta corre mais riscos de
morrer democraticamente sem a UE do que com a UE. E as esquerdas sabem por
experiência que serão as primeiras vítimas de qualquer regime autoritário.
Talvez se lembrem de que as diferenças entre elas sempre pareceram mais
importantes quando vistas do interior das forças de esquerda do que quando
vistas pelos seus adversários. Por mais que socialistas e comunistas se
digladiassem no período pós Primeira Guerra, Hitler, quando chegou ao poder,
não viu entre eles diferenças que merecessem diferente tratamento. Liquidou-os
a todos.
Não é relevante saber se é isto o
que as esquerdas pensam. É isto que a extrema-direita pensa sobre as esquerdas,
e é nessa base que se move. Quem a move? Movem-na forças nacionais e
internacionais. São várias e com objetivos que só parcialmente se sobrepõem.
Para surpresa de alguns, a política internacional dos EUA é uma delas. Os EUA
são hoje um defensar muito condicional da democracia, pois só a defendem na
medida em que ela é funcional aos interesses das empresas multinacionais
norte-americanas. A razão principal é a rivalidade dente os EUA e China, que
está condicionando profundamente a política internacional. O confronto entre
dois impérios, um decadente e outro ascendente, exige o alinhamento
incondicional dos países aliados de cada um deles ou na sua zona de influência.
A Europa fragmentada será um conjunto de países ou facilmente pressionáveis ou
irrelevantes (a Alemanha é o único que exige atenção especial).
Mais do que nunca, são os
interesses econômicos que dominam a diplomacia. Assim, segundo a BBC de 9 de
agosto, os tweets em chinês do presidente Trump têm mais de 100 mil
seguidores entre os dissidentes chineses que consideram o presidente
norte-americano um defensor dos direitos humanos. E certamente o será no
contexto da China e porque isso serve os interesses da guerra contra a China.
Não é por acaso que a China está culpando os EUA pela onda de protestos em Hong
Kong. Mas Trump já não é um defensor confiável dos direitos humanos antes os
venezuelanos sujeitos a um embargo cruel e devastador que a própria ONU
considera uma violação grosseira dos direitos humanos.
A extrema-direita conta com três
instrumentos fundamentais: aproveitamento da contestação social contra medidas
de governos considerados hostis, exploração de idiotas úteis e, no caso de
governos mais à esquerda, maximização das dificuldades de governo decorrentes
das coligações existentes. Do primeiro caso, talvez sirva de ilustração a greve
do Sindicato de Motoristas de Matérias Perigosas. Este tipo de greve pode ter
efeitos tão graves que desmoralizem qualquer governo. Tradicionalmente os
sindicatos sabem disso, negociam forte e ao mesmo tempo sabem até onde podem ir
para não por em causa interesses vitais dos cidadãos. Não é isso o que tem
ocorrido com estes sindicato. É altamente suspeita a linguagem radicalizadora
do vice-presidente do sindicato (“deixou de ser um direito laboral para ser uma
questão de honra”), um personagem aparentemente arvorado em anjo protetor de
sindicalistas descontentes. A história nunca se repete, mas nos obriga a
pensar. O governo democrático socialista de Salvador Allende, hostilizados
pelas elites chilenas e pelos EUA, sofreu a sua crise final depois das greves
de sindicatos de motoristas de combustíveis, precisamente devido à paralisação
do país e à imagem de ingovernabilidade que refletia. Soube-se anos depois que
a CIA norte-americana tinha estado bastante ativa por detrás das greves.
Os idiotas úteis são aqueles que,
com as melhores intenções, jogam o jogo da extrema-direita, embora nada tenham
que ver com ela. Cito dois. Quando foi da primeira greve do sindicato referido,
alguns ingênuos sociólogos apressaram-se a dissertar sobre o novo tipo de
sindicalismo não ideológico, exclusivamente centrado nos interesses dos
trabalhadores. O contraste implícito era com a Centra Geral dos Trabalhadores
Portugueses (CGTP), esta sim considerada ideológica e ao serviço de obscuros
interesses dos trabalhadores. Se lessem um pouco mais sobre os movimentos
sindicais do passado, saberiam que, em muitos contextos, a proclamação de
ausência de ideologia política foi a melhor arma para introduzir a ideologia
política contrária. Mas os idiotas úteis podem sair de onde menos se espera. Um
sindicalista que até há pouco tempo muito admirei, Mário Nogueira, comportou-se
a certa altura como idiota útil ao transformar as reivindicações dos
professores em motivo legítimo para fazer demitir o governo de esquerda apoiado
pelo partido a que pertence. Este radicalismo, que confunde as árvores com a
floresta, serve objetivamente os interesses desestabilizadores da
extrema-direita.
Finalmente, a extrema-direita
sabe aproveitar-se de todas as divisões entre as forças de esquerda, sabe
ampliá-las e sabe usar as redes sociais para criar duas ilusões a partir de
meias verdades. A primeira é que a maioria dos militantes e de anteriores
dirigentes do Partido Socialista são de opinião que o PS sempre se deu melhor
com alianças com a direita (o que é falso), não gosta do radicalismo de
esquerda (que nunca definem) e que, de todo o modo, livre das esquerdas à sua
esquerda, facilmente terá maioria absoluta (o que é improvável). A segunda é
que recíprocas fraturas existem nos outros partidos de esquerda, ansiosos por
regressar aos seus cantos de oposição e cansados de fazer concessões (o que em parte
é verdade).
As forças de esquerda em Portugal
têm dado testemunho de um notável bom senso que dificulta as manobras da
extrema-direita. Se seguirão neste caminho, ou se se renderão às pressões
internas e externas, é uma questão em aberto.
Imagem: Em 7/8, portugueses
protestam contra reunião da extrema-direita internacional, em Lisboa
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