Eu desconfio da bondade e da
boa-fé dos dirigentes do sindicato dos motoristas de ditas matérias perigosas.
Os dirigentes nem são motoristas, nem as matérias que os motoristas do
sindicato transportam são perigosas. Ou mais perigosas que tantas outras. Duas
mistificações para começar.
Carlos de Matos
Gomes | Jornal Tornado | opinião/crónica
Há muito tempo, nas estepes da
Ásia Central, nasceu um menino a que os pais deram o nome de Zaratustra. Ao
nascer, Zaratustra não chorou; pelo contrário, riu sonoramente. Todo o povo da
aldeia se admirou pois nunca tinham visto um bebé rir ao nascer. Onde já se viu
rir ao nascer nesse mundo triste e escuro?! Os deuses estão furiosos! O
Zaratustra está a rir-se deles.
Ao crescer, Zaratustra deambulava
pelas estepes perguntando:
"Quem fez o sol e as estrelas do
céu? Quem criou as águas e as plantas? E quem faz a lua crescer e minguar? Quem
implantou nas pessoas a dúvida sobre a bondade das pessoas?".
Eu desconfio da bondade e da
boa-fé dos dirigentes do sindicato dos motoristas de ditas matérias perigosas.
Os dirigentes nem são motoristas, nem as matérias que os motoristas do
sindicato transportam são perigosas. Ou mais perigosas que tantas outras. Duas
mistificações para começar.
A doutora Raquel Varela, de quem
sou amigo e por quem tenho muita estima, defende a bondade deles. Mais, defende
que eles são meus defensores e escreve no Público que a democracia em Portugal
está a ser defendida pelos motoristas reunidos num sindicato de motoristas de
camiões cisterna de combustíveis, a que atribuíram de moto próprio a categoria
exclusiva de matérias perigosas. Na realidade a categoria de matérias perigosas
abrange mais cargas, desde a água ao transporte de animais, de ar líquido a
ácidos, de farinhas a caixas de bebidas. Até o lixo é matéria perigosa. Estes
motoristas e os seus padrinhos apenas identificam os combustíveis como matérias
perigosas porque são os combustíveis que lhes permite perturbar a vida da
sociedade, de causar danos económicos e sociais de forma rápida e com
resultados garantidos. Como os faquistas sabem onde espetar o punhal. Adiante,
porque a defesa da democracia é um ato sério, praticado por gente séria. Não é
o caso dos dirigentes deste sindicato erigidos pela doutora Raquel Varela em
condestáveis da democracia. Alguém os viu em algum ato de defesa da democracia,
numa eleição democrática, na defesa de saúde ou educação pública? Na luta pelos
direitos de minorias? Na defesa de uma causa como a da paz, ou do ambiente?
Assim: O vice presidente do
sindicato da defesa da democracia é o advogado Pardal Henriques, de recente
formação jurídica, em 2017, investigado pelo MP por burla a um investidor
francês, e também pela Ordem dos Advogados, que abriu uma investigação a
Pardal Henriques, pelo o facto de o advogado pertencer a uma firma de mediação
imobiliária desde 2007, algo que é proibido aos advogados. Em resumo, um
sindicalista motorista sem carta profissional, defensor da democracia, que já
foi empresário de consultoria de gestão e saúde, com tanto sucesso e lisura que
foi inibido de administrar bens de sociedades comerciais ou civis, associações
ou fundações privadas de actividades económicas, empresas públicas e
cooperativas durante sete anos, depois de ser sentenciado por insolvência
culposa. Este é o vice-presidente do sindicato que defende a democracia em
Portugal!
O presidente é o empresário
Francisco São Bento, proprietário da Transportes Francisco São Bento Lda,
dissolvida e liquidada em Novembro de 2017 e de que não se conhece nem trabalho
assalariado, nem tradição de luta sindical, ou política. É o emplastro que
surge nas fotografias ao lado do doutor Pardal Henriques.
Nem ao dito vice presidente
Pardal Henriques, nem ao dito presidente do sindicato Francisco São Bento são,
pois, conhecidas anteriores intervenções sindicais, de ordem cívica, política,
ou cultural. São dois arrivistas, de passado obscuro e de presente suspeito.
Quem está por detrás deles? Uma estudiosa dos movimentos sociais acredita em
salvadores saídos do nada? Nem a Joana d’ Arc, o foi. Nem qualquer dos
revolucionários franceses, nem russos. Todos os protagonistas de movimentos
sociais tinham uma história. Até os relâmpagos têm uma causa, uma origem
conhecida. Estes dois salvádegos da democracia não, saíram do ovo e logo se
transformaram em serpentes! Ora é a estes dois neófitos da luta sindical e da
luta cívica e política que Raquel Varela atribui a defesa da democracia! E
tantos homens e mulheres dignos foram torturados, presos, exilados,
assassinados por lutarem pela democracia e afinal era tão fácil e rápido!
Por mim, não só dispenso a
participação destas duas sombrias figuras na defesa da democracia – devemos
temer defensores sem história – como, no caso de a defesa da democracia lhes
ser entregue, declaro que estarei contra, a sério. Se a Raquel Varela pretende
que estes dois “sombras” sejam defensores da democracia, eles que se apresentem
a eleições. Apesar de tudo foi o que fizeram o Bolsonaro e a sua camarilha, ou
o Salvini. Mas mais, se a democracia for entregue ao Pardal, ao Francisco São
Bento e à sua tropa de choque, após esta heróica luta de camiões cisterna de
gasolina e gasóleo (que não é inflamável, já agora), de desestabilização
social, de falsidades e de nuvens escuras, até de ridículo, eu vou reactivar a
licença de uso e porte de arma e reunir quem se lhes oponha e os desmascare.
Como chega uma reconhecida
estudiosa dos movimentos sociais ligados ao trabalho à conclusão que um grupo
tão suspeito e de origens tão propiciadoras de suspeição é um reduto de defesa
da democracia e dos direitos dos cidadãos numa sociedade livre e solidária?
Tenho uma explicação tão pouco científica quanto a metodologia das ciências
sociais me permite: A identificação do cientista social com o objecto da sua
investigação e trabalho, uma atitude semelhante ao conhecido síndrome de
Estocolmo que leva as vítimas a aderir intelectual e sentimentalmente ao
agressor.
Quem se envolve neste tipo de
análise social estabelece premissas que, em vez de colocar em causa as certezas
de partida, as teses, e se distanciar para as observar materialisticamente, as
toma como verdades assumidas que só poderão ser confirmadas. Ao colocar-se
intelectualmente do lado do trabalho e as lutas pela melhor repartição de
justiça social, o analista passa a atribuir ao trabalhador todas as virtudes só
pelo facto de o ser. Pode ser uma posição moral, mas não é uma posição
científica.
O analista social coloca-se na
posição do publicitário que originou o slogan: Se é Bayer é bom! Se é
trabalhador é bom! A estatuária dos estados socialistas do século passado é
exemplar desta deificação do trabalhador, a literatura e o cinema do
neo-realismo são outros bons exemplos. Nesta visão idílica o trabalhador é
sempre um herói, um fermento de progresso e de futuro radioso. A frase do
Manifesto Comunista: proletários de todo o mundo uni-vos! é tomada no
sentido literal e como dogma de fé, fora do circulo da razão. Assume que se os
proletários se unirem a sociedade se torna ideal, acaba a exploração do homem
pelo homem! Sabemos hoje que não é nada assim. Que a primeira questão é a da
finalidade da união. Unir para quê?
Curiosamente este sindicato do
doutor Pardal, içado a defensor da democracia, não só investe na desunião, mas
explora ainda o mais feroz egoísmo: estes motoristas de camiões de combustíveis
não são pelos proletários uni-vos, são por nós, os motoristas de combustíveis,
eles não querem justiça e equidade, querem sacar o seu deles, tratar da sua
vidinha e que os outros se danem e tratem da deles. Chama-se a isto a
democracia da mafia: um bando impõe a sua lei e arrecada o lucro! É essa que
defendem!
Mais, muitos estudiosos desta
área da relações dos elementos de uma sociedade, onde Raquel Varela parece
inserir-se, partem do principio que as lutas dos trabalhadores são autónomas
quer da política no sentido restrito – os assuntos da polis, as questões
nacionais – quer da política em sentido lato, o que habitualmente se designa
por geoestratégia (um conceito com má carga histórica e hoje pouco utilizado),
isto é, das relações de força entre as grandes potências pelo domínio do
planeta e dos seus recursos. Sem ingenuidades académicas: as lutas sindicais
fazem parte do arsenal das guerras entre estados e para o domínio de
superpotências. São pedras de um xadrez de poder, como são a manipulação das
opiniões públicas, os boicotes económicos, a espionagem de dados electrónicos,
entre tantos outros. A greve deste sindicato ad hoc, feito ao microondas,
ou de uma Bimby, pode muito bem ser um instrumento de uma estratégia muito mais
vasta. Um dia saberemos. Antes convinha, por prudência, não classificar o
doutor Pardal Henriques e os seus apoiantes de cavaleiros da liberdade e da
democracia. Os combatentes da liberdade – freedom fighters –
inventados e incensados por Reagan nos anos 80 do século passado afinal eram
talibãs e alquaedas financiados pelos Estados Unidos!
Os estudiosos dos movimentos
sociais, normalmente criados em estufa, idealizam grupos como elementos de um
modelo de cadeia de produção que eles criaram, e enquadram-nos em estereótipos.
Os modelos sociais são representações muito falíveis da realidade e ignoram o
saber da vida, uma outra forma de empirismo mas que merece ser levada em conta.
A minha avó, uma mulher que aos dezoito anos saiu dos Açores para os Estados
Unidos, que foi recolhida na ilha Ellis, que atravessou a América de Providence
à Califórnia para ir ter com o homem com quem casou, que viveu nas terras do
Oeste, no Vale de São Joaquim, dizia que mais valia um ano de tarimba que cem
de Coimbra. Pese embora o exagero e a necessidade do estudo sério e profundo,
convém dar também atenção às vozes de pessoas como a minha avó Honorina e até à
do Padre Américo, o fundador da Obra do Gaiato, de quem terá ficado
apenas a primeira parte da frase em que ele apreciava os jovens recolhidos e de
quem desconhecia o passado: «Não há rapazes maus». Ficou censurada a última
parte: O que há é muito filho da mãe.
Os estudos sociais deviam tomar
em consideração os filhos da mãe, porque eles existem e não são todos burgueses
e aristocratas. Deve até haver sindicatos e uma ordem deles.
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