O ministro do Interior italiano
errou no momento e na forma de fazer cair o Governo de seu país, mas já havia
uma operação em marcha para afastá-lo do poder
Matteo Salvini colocou
bermuda em 5 de agosto e apareceu no Papeete Beach, um bar na beira da praia
com dançarinas de maiô, house music e coquetéis na costa adriática. O
ministro do Interior tirou a camiseta, pediu um mojito e se animou a botar o
hino da Itália para tocar enquanto algumas garotas mexiam o corpo no palco.
Seus spin doctors haviam lhe contado que ele tinha quase 38% de apoio
nas pesquisas e uma influência descomunal nas redes sociais. Fez
centenas de selfies, distribuiu abraços. Mas havia dias que um mau
pressentimento o perseguia. “Estava atormentado. Il Capitano não falava com
ninguém de seu círculo, nem com Lorenzo Fontana [ministro de Assuntos Europeus,
também de bermuda], nem com Massimo Casanova [membro da Liga e dono do beach
club]... Passou o dia olhando o celular. Todo ano ele vai a uma praia e faz
algo assim... Mas desta vez tinha um humor lúgubre”, explica uma pessoa que
esteve com ele e o conhece há 20 anos. Naquele dia, ele tomou uma decisão que
propiciou algo parecido com um histórico suicídio político.
A anatomia do colapso de Salvini,
o maior ciclone eleitoral da Itália recente e um político que ainda conserva o
apoio nas ruas, é complexa demais para ser atribuída a um erro de cálculo, um
acidente. Fazia meses que o líder da Liga tinha medo de terminar mal após um
pacto entre o seu então sócio de Governo, o Movimento
5 Estrelas (M5S), e com o Partido Democrático (PD). Depois das eleições
europeias, quando a Liga arrasou na Itália, o Governo dividiu-se em três
blocos: o Executivo de Salvini; o de Luigi Di Maio; e outro formado pelo
primeiro-ministro, Giuseppe Conte, o chanceler, Enzo Moavero Milanesi, o
ministro da Economia, Giovanni Tria, e o próprio presidente da República,
Sergio Mattarella. A partir do terceiro polo (mais institucional e próximo da União Europeia),
explica um deputado do PD que presenciou as negociações, começou a ser
planejada, de forma transversal, a chamada Operação Ursula [em alusão aos
partidos que apoiaram a nova presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der
Leyen]. Desconfiado por natureza, desta vez Salvini percebeu indícios reais.
A teoria diz que quem rompe um
Governo na Itália paga nas urnas. Salvini queria o poder, mas sem ter de usar
esse sambenito. Com a chegada do verão europeu, cada vez mais encurralado, ele
pensou que era o momento oportuno. “Era evidente que algo estava acontecendo.
Houve um movimento europeu para construir um cordão sanitário e isolá-lo. A
Operação Ursula já estava em marcha e, nesse processo, Conte foi uma peça
fundamental de dentro das instituições. Além disso, o vazamento da negociação
de um de seus assessores em Moscou [Gianluca Savoini se reuniu com supostos
enviados do Kremlin para discutir a compra de gás em troca de uma suposta
comissão para a Liga] teve uma origem estranha”, diz o cientista político
Giovanni Orsina. A obscura explosão da trama russa, justo depois do grande
resultado nas eleições europeias, persuadiu Salvini de que os serviços secretos
de algum país próximo pretendiam frustrar seus planos.
Os assessores do líder da Liga,
incluindo o subsecretário do Governo, Giancarlo Giorgetti, pediam havia semanas
que Salvini rompesse com o M5S. Em pleno verão, quando ele deixou de
consultá-los e se fechou em si mesmo, os assessores começaram a se desesperar,
diz um deputado da Liga. Poucas pessoas, além de seu guru digital, Luca Morisi,
tiveram acesso ao seu estado de ânimo até que em 8 de agosto, três dias depois
da festa do Papeete, ele
lançou a bomba e pediu “plenos poderes” aos italianos para anunciar a
queda do Executivo. “A data não foi casual. Ele pensou que durante as férias
seria muito mais difícil que as instituições reagissem e que o PD e o M5S
chegassem a um acordo”, diz o congressista.
A jogada era arriscada, e Salvini
primeiro quis garantir que não haveria pacto entre o PD e o M5S. Ligou para
Nicola Zingaretti, secretário-geral dos sociais-democratas, que o tranquilizou
dizendo que alguns atos políticos também poderiam reforçar sua liderança no PD.
A ideia era forçar a reabertura das Câmaras e o regresso de todos os
parlamentares, acelerando uma moção de censura. Mattarella só poderia convocar
eleições o mais breve possível para evitar um desastre. Mas logo notou que o
chão se movia. Matteo Renzi, histórico inimigo dos grillinos [seguidores de
Beppe Grillo, o fundador do M5S] e ainda possuidor do controle da maioria dos
sociais-democratas, começou a fazer declarações e deu uma série de entrevistas, entre
elas ao EL PAÍS, pedindo o que semanas antes era inimaginável: um Governo
de unidade com o M5S. A armadilha estava pronta.
Grillo e Renzi entraram em acordo
após anos de insultos, e o ex-premiê convenceu o secretário-geral de seu
partido sobre as vantagens de um armistício apoiado do presidente da República
até a Santa Sé, profundamente escandalizada com a tendência de ódio contra a
imigração e a ostentação pornográfica de símbolos religiosos. O líder da Liga
havia trabalhado a política nacional sem descanso durante os últimos quatro
anos. Mas sua ação exterior, encarregada pessoalmente ao ex-grillino Marco
Nazzi, tinha sido um desastre. Especialmente na hora de esclarecer sua posição
na Aliança Atlântica. E por esse flanco veio a última estocada.
Em 17 de junho, Salvini havia ido
a Washington para se reunir com o secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike
Pompeo. A foto do encontro, como tantas antes, seria exibida perfeitamente no
Facebook. Mas sobre a mesa de Pompeo havia várias pastas importantes que
exigiam respostas, como a relação da Itália com a Rússia de Putin, a China (Conte acabava de
assinar um estranho acordo para a Rota da Seda) e a imigração. O encontro não
foi bom, segundo soube-se posteriormente, e os EUA confirmaram suas dúvidas
sobre Salvini. “Se você é a Itália, pode estar com os EUA e contra a Europa; ou
com a Europa e contra os EUA... mas não pode se aliar com a Rússia e estar com
todos. Salvini abriu um desencontro com a Europa sem ter o respaldo dos EUA. E
isso é não compreender os mecanismos da alta política e criar um problema
estrutural”, diz Orsina.
O problema se materializou no
último fim de semana, justo quando Salvini tentava convencer Luigi Di Maio, de
forma desesperada, a retroceder oferecendo-lhe ser primeiro-ministro. Conte,
reunido com outros seis líderes mundiais no G7 em Biarritz, fechou essa porta e
anunciou que a aventura com a Liga chegava ao fim. Logo depois o presidente dos
EUA, Donald
Trump, incentivado pelo mandatário francês, Emmanuel Macron, segundo informaram
jornais norte-americanos, manifestou-se abertamente a favor de uma continuidade
de Conte — embora o chamasse de “Giuseppi” — e, indiretamente, do
pacto que estava sendo forjado em Roma. A autópsia logo diria que esse foi o
último suspiro do Capitano.
Daniel Verdu, Roma | El País
Na foto: Matteo Salvini, líder da
Liga, na última sexta-feira em Pádua | Marco Bertorelo / AFP
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