Salazar e Aristides de Sousa Mendes. Da repressão à liberdade em apenas 22 km
No Vimieiro e em Cabanas de
Viriato avançam projetos para a construção de um "centro
interpretativo" e de uma casa-museu que querem recuperar a memória de
António Oliveira Salazar e de Aristides de Sousa Mendes. Mundos opostos que se
cruzam.
“Eis o mus" e só se
adivinham as outras duas letras, "eu", muito apagadas, com uma seta a
apontar para a porta verde da casa branca, um piso térreo com a marca do tempo,
uma janela partida, a caliça caída, que só a placa escura resgata do esquecimento
- para curiosos e devotos. "Aqui nasceu em 28-4-1889 Dr. Oliveira Salazar
um Senhor que governou e nada roubou" e a bandeira portuguesa inscrita. Há
ideias feitas que perduram. Como a ideia de um museu, que não será museu, alimentando a polémica há semanas e cujo projeto será
apresentado na próxima quarta-feira, 4 de setembro.
"A polémica só acontece
porque vivemos em democracia", atira em jeito de saudação Rui Oliveira, 66
anos, presidente da Junta de Freguesia de Óvoa e Vimieiro. "A
controvérsia é saudável, se vivêssemos em ditadura seria diferente." Nesse
tempo, no tempo de quem ali nasceu, naquele lugar de Vimieiro, concelho de
Santa Comba Dão, "quem estivesse contra ia para o Tarrafal", recorda,
referindo-se ao campo de concentração em Cabo Verde para opositores políticos à
ditadura do Estado Novo.
A democracia tem esta virtude: as
opiniões diferentes são acolhidas, ninguém é preso nem morre por as defender.
Para Rui Oliveira, o futuro Centro Interpretativo do Estado Novo, que a Câmara
Municipal de Santa Comba Dão quer instalar na antiga Escola-Cantina Salazar no
Vimieiro, "devia ter à entrada uma foto de Salazar ou de uma das suas
obras e ao lado a foto de Humberto Delgado a dizer que foi morto por
Salazar". "O homem não era um santo", completa o autarca
socialista sobre o antigo presidente do Conselho, enterrado no cemitério da
aldeia, para defender que "um homem só não faz um regime, toda a máquina
funcionava". Mas, garante Rui Oliveira, esse centro "nunca será
um oratório de Salazar".
Nem lhe chamem museu. O
presidente da câmara, Leonel Gouveia, ausente de Santa Comba Dão, não quer
falar mais, como a funcionária da autarquia que atende o DN a remeter para o
comunicado emitido a 24 de agosto sobre o assunto e a corrigir o jornalista quando
se fala em "museu".
No comunicado, Leonel Gouveia,
também socialista, sublinhou que "conscientes das notícias, muitas delas
descontextualizadas, que recentemente davam como certa a criação, em Santa
Comba Dão, de um museu dedicado a António de Oliveira Salazar, vem a Câmara
Municipal de Santa Comba Dão, em nome da verdade, informar o seguinte: jamais
esta autarquia teve intenção de promover a criação do denominado "Museu
Salazar"".
Na avenida com nome de ditador,
Rui Oliveira conduz o DN até à escola que será o futuro centro interpretativo,
registando que os "saudosistas" que ali vêem "são minorias
insignificantes". E recorda um evento recente em que estiveram "não
mais de 40 pessoas... saudosistas".
O cemitério como romaria
Estes não precisam de mais um local
de romaria: o cemitério, no alto da aldeia, junto ao Santuário de Santa Cruz,
já é esse sítio. "Mantenha a porta fechada" - e indiferentes à
caveira no cimo, vão entrando curiosos e devotos, cumprindo o pedido do aviso.
Logo à esquerda, uns metros à frente, lá estão as lápides que veneram o
ditador, mostrando o que quase estava escondido: a sepultura rasa, com as
iniciais AOS e o ano 1970, num dos lados, era pouco. Por isso, os veneradores
salpicaram a parede de palavras e flores - já secas ou de plástico. "O
homem mais poderoso de Portugal do século XX e modesto sem igual. Nasceu
humilde e humilde cresceu, viveu humilde e humilde morreu." As loas são as
habituais, a azia de quem escreveu pela democracia instalada também:
"Medíocre é o povo que com ele nada aprendeu."
São essas palavras que Manuel
Abrantes, 26 anos, bebe para justificar a sua presença ali. "Podia ler
palavra a palavra o que ali está, eu não diria melhor." É de Lisboa, está
na região e veio de propósito com dois amigos para visitar a sepultura de
Salazar. "Viemos rezar pela sua alma", completa Margarida
Paccetti, 31 anos. Não é figura de estilo: os três inclinam a cabeça enquanto
leem no telemóvel uma oração pelos fiéis defuntos. "Dai-lhe, Senhor,
o eterno descanso." E rezam o pai-nosso, antes de completarem:
"Acolhei com bondade o vosso servo António."
Adeptos de um museu para Salazar,
os três jovens defendem o projeto. "Não percebo porque é que não foi feito
antes", atira Manuel Abrantes, com a concordância de Margarida Paccetti e
Manuel Tovar, de 22 anos. "Depende é de qual é o partido" a fazer o
espaço, aponta Margarida. "É difícil que seja isento. O problema é
esse."
A casa de Aristides que será
museu
Agosto, o sol bate os 28 graus,
não se vê quase ninguém nas ruas do Vimieiro, o Dão ali ao lado a rasgar uma
fronteira com Santa Comba. Quem passa, passa de carro. Como em Cabanas de
Viriato, 22
quilómetros a norte, já no concelho de Carregal do Sal.
Ali também há projetos para um museu, na Casa do Passal, onde viveu Aristides
de Sousa Mendes, um grande solar que acomodava a família do diplomata com 14
filhos e os empregados. A casa tinha capela e biblioteca - hoje, o seu
interior é uma ruína, de paredes e soalhos escorados à espera da intervenção
que permita a reabilitação para a instalação de um museu.
Nuno Seabra, 45 anos, presidente
da Junta de Freguesia de Cabanas de Viriato, lamenta que ainda não haja porta
aberta na Casa do Passal. "Está ainda na fase de projeto e
candidaturas", depois da recuperação de fachada e telhado. "Nós
sentimos muito, em Cabanas e no concelho, a não finalização das obras. Recebemos
dezenas de pessoas por dia e chegam e não vêem ainda a casa completamente
requalificada."
Há uma corrente que mantém o
portão fechado. Passa um carro com um casal, os dois observam de dentro da
viatura e depois seguem. "Não têm mais para ver", aponta ao DN Pedro
Matos, funcionário da junta.
Falta algo mais, lamenta-se Nuno
Seabra, que faça as pessoas parar mais. Por isso, enquanto não há casa-museu, o
autarca, independente eleito pelo PS, quer criar uma sala de visitas no
edifício da junta, mesmo em frente ao palacete, "para poder receber essas
pessoas". Como aquelas que chegaram num autocarro, com turistas franceses
e ingleses. Isso e construir um memorial de homenagem, que está há anos numa
gaveta da junta. É uma das metas que tem para 2020, quando passam 80 anos
do "ato de consciência" do diplomata que fez frente a Salazar.
"Antes com Deus contra os
homens"
Com a II Guerra Mundial a
alastrar pela Europa e as tropas nazis a entrarem por França dentro, a cidade
de Bordéus encheu-se de refugiados, sobretudo judeus, desesperados por um visto
para fugir ao terror do Holocausto. O cônsul português na cidade, Sousa Mendes,
resolve ignorar a instrução que Salazar tinha dado, através da Circular n.º 14
para todos os diplomatas, determinando a proibição da concessão de vistos a
refugiados judeus, exilados políticos e cidadãos do Leste Europeu.
Na manhã de 17 de junho de 1940,
o cônsul decide passar vistos sem olhar a quem. "Antes com Deus contra os
homens do que com os homens contra Deus", exclama, antes de iniciar uma
maratona de três dias e três noites a assinar vistos, salvo-condutos para a
liberdade. Salazar não gostou e aplicou-lhe um processo disciplinar, que
resultou na suspensão da sua atividade por um ano e na aposentação forçada.
Aristides também foi proibido de exercer advocacia. A sua condição económica
degradou-se, conseguiu que alguns filhos partissem para os Estados Unidos e
morreu pobre, em Lisboa, em 3 de abril de 1954. Só a democracia reabilitaria a
título póstumo o cônsul. O que ainda não fez na totalidade para a sua casa, que
também se foi degradando e acabou vendida em hasta pública. A casa foi aviário,
serviu para um simulacro de bombeiros, foi ruína.
"Era uma casa em que não
faltava nada. Depois é que foi o diabo!", descreve Olímpio Dias Tavares,
de 90 anos e quatro meses, como faz questão de se apresentar ao DN, que convive
de perto com filhos mais novos de Aristides, o João Paulo e o Luís Filipe, com
quem anda na escola, no edifício que hoje é a junta.
As memórias desses tempos, dele e
da vila, começou a registá-las num caderno A4 preto, onde se fala também de
César de Sousa Mendes, o irmão gémeo de Aristides, que foi ministro dos
Negócios Estrangeiros de Salazar e intercedeu junto do ditador pelo irmão sem
sucesso. "Eu bem tenho dito cá na terra que também temos de recordar o
irmão, César", explica Olímpio, numa torrente de histórias nunca
atraiçoadas pela memória.
Lembra-se de nomes, recorda
episódios, recupera datas, do casamento da D. Clotilde, uma das filhas de
Aristides, "com pompa", em que a filarmónica foi convidada para um
concerto, da carrinha Ford, grande, para levar a família toda e os empregados,
uns 28/30 lugares, e lá vinha o cônsul "com rebuçados para todos os
miúdos". "Tratavam muito bem toda esta gentinha", diz,
genuinamente, de Aristides e Angelina, a prima com quem o diplomata se casou.
O bom samaritano de tantos judeus
O cônsul acolhe na sua casa
refugiados judeus e os seus gestos motivam o epíteto de "justo entre as
nações", título atribuído pelo Yad Vaschem, um centro israelita para
lembrar as vítimas judaicas do Holocausto e aqueles que salvaram judeus. O católico
que trouxe de Antuérpia em três peças, porque eram muito grandes e pesadas, um
Cristo-Rei, que encima a colina onde está a Casa do Passal, e que no canto do
jardim fronteiro do palacete tem um crucifixo enorme, foi o bom samaritano de
tantos judeus - e a quem Salazar não perdoou o incumprimento de uma circular
burocrática.
Nos 22 quilómetros que
separam as duas localidades, sonha-se com a construção de dois museus. À
entrada de Cabanas, atrás do balcão da Pastelaria Viriato, Filomena Carvalho
nota que "vêm pessoas de todo o lado, até de camioneta". Com a
casa-museu "ajudava a melhorar" , diz. Estão paradas as obras, está
parada a tarde de negócio. Pelas 17.00, entra o distribuidor de bebidas, quase
não há movimento nas ruas.
O presidente da Junta de Cabanas,
Nuno Seabra, concorda que o museu "iria transformar a nossa freguesia e
concelho num polo de atração turística". Podia ser este também um centro
interpretativo do Estado Novo? Nuno Seabra prefere sublinhar o homem que foi
Aristides. "O que mais me encanta é a simplicidade com que lidava com as
pessoas", diz, sublinhando "o grande homem que foi". "Era
realmente o sonho dele, salvar aquelas pessoas."
Não há quem reze no jazigo da
família no cemitério de Cabanas de Viriato. Há uma fita e uma placa que
assinalam a memória de Aristides, de homenagens antigas. No cemitério do
Vimieiro, Salazar merece a visita quase contínua de pessoas que ali vão. Como aquele
santa-combense que levou ali uns primos e pede para não ser identificado.
"Passámos no cemitério de Santa Comba e eles achavam que era ali que
estava o Salazar e trouxe-os aqui para verem." A curiosidade alimenta
ainda mais a romaria do que a devoção.
"É um tema pacífico em Santa
Comba"
Na sede de concelho, num
restaurante onde há um busto do ditador e uma foto antiga da estátua de Salazar
que foi rebentada em 1978, uma pequena pagela assinala que se trata de "o
melhor governante nos 900 anos de história de Portugal".
Rui Oliveira, o autarca do
Vimieiro, diz que dificilmente se encontrará alguém que fale mal de Salazar por
ali. "É um tema pacífico em Santa Comba Dão, por bairrismo, não por
política. Defendem-no como conterrâneo", esclarece. "Pensar o Salazar
é passado, é história", argumenta. "Queremos é pensar o presente e o
futuro, isso é que é importante", atira a despedir-se.
O homem de 70 anos que passa
junto à casa faz notar ao DN "a vergonha que aqui está". A sua
indignação é outra e ouvem-se, em som de fundo, cães que ladram. Não é metáfora
nenhuma: há ali, no quintal da correnteza de casas que eram de Salazar, um
canil de uma associação de proteção de animais. "Meteram aqui um
canil!", diz, repetindo que ele "deixou barras de ouro no
banco". "Era um grande homem, só os ordenados eram baixos." A
ladainha choca com a realidade: a uns 20 quilómetros ,
Aristides é mais uma prova do que foi o regime do Estado Novo. Repressivo, iníquo.
Uma interpretação que terá de morar em Santa Comba Dão.
Miguel Marujo | Diário de Notícias
*Título PG
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