Salazar, entre nazi-fascistas, ladeado do PR de então, Carmona |
Não sei se os historiadores de
Coimbra têm dado conta, mas o regresso do fascismo não se fará de botas
cardadas, com marchas militares e mecanismos repressivos como os do passado.
Pedro Adão e Silva
| Jornal Tornado | opinião
Uma coisa que agradeço é que não
me contem historietas. Pois em relação à proposta do autarca de Santa Comba Dão
para a criação de um “centro interpretativo” dedicado a Salazar, na terra natal
do ditador, sintomaticamente a situar na cantina-escola Salazar, convenientemente
sediada na avenida dr. António de Oliveira Salazar, não só nos querem contar
uma historieta como, enquanto o fazem, tomam-nos por parvos.
Não faltam bons motivos para
promover exercícios interpretativos do Estado Novo. Na transição para a democracia,
descurou-se esta vertente, perpetuando uma certa invisibilidade da natureza
ditatorial do regime, explicável pela ausência de um movimento social fascista
e por uma passividade bucólica, traço marcante da sociedade. Até com uma rutura
política seguida de revolução social, o país preferiu não interpretar o
passado, remetendo-o para o mesmo lugar silencioso.
De certa forma, o museu Salazar,
proposta que afinal nunca existiu, representa o regresso desta invisibilidade
crónica do salazarismo enquanto regime repressivo e autocrático.
Sintomaticamente, num artigo trôpego, o historiador Luís Reis Torgal – a quem é
atribuída alguma responsabilidade científica na proposta autárquica – tentou
promover uma “reflexão séria e calma” sobre o tema. E o que nos propõe
(enquanto referenciava um rol de dissertações que orientou sobre os mais
diversos assuntos)? Que ajudemos a autarquia a resolver o problema que é
“manter em ruínas” a casa do ditador, garantindo que o que está em causa é a
criação de um centro interpretativo, a partir do “espólio” de Salazar,
articulando-o com outros projetos de musealização a criar na região (António
José de Almeida em Penacova; Tomás da Fonseca em Mortágua; Afonso Costa em Seia
e, cereja no topo do bolo, Aristides de Sousa Mendes em Carregal do Sal).
Foto dos arquivos da PIDE, a controlar jovens como Jorge Sampaio e outros democratas |
Quanto mais se sabe, pior se
torna o cenário. Só uma exorbitante neutralidade axiológica e uma fúria
normalizadora podem levar a que se pondere juntar, na mesma rede, republicanos
insignes, figuras de cultura, democratas corajosos e referências morais
absolutas com um ditador abjeto e de baixa estirpe.
Fica demonstrado que temos, como
comunidade, um problema com o legado do Estado Novo. O que torna imperioso que
se multipliquem centros interpretativos: nos tribunais plenários, nas antigas
prisões políticas, nas fábricas, nas faculdades onde a PIDE entrou ou nas
escolas onde professores foram expulsos. Em todos os lugares menos na aldeia
natal do ditador.
A ideia é uma afronta à memória
e, pior, adensa um espetro que paira sobre o futuro. Não sei se os
historiadores de Coimbra têm dado conta, mas o regresso do fascismo não se fará
de botas cardadas, com marchas militares e mecanismos repressivos como os do
passado. É precisamente pela forma sonambúlica como se deixa entrever que o
fascismo de hoje é assustador. Não ajudemos, por isso, a promover um voyeurismo
mórbido em torno do “espólio” de um tirano.
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