sexta-feira, 27 de setembro de 2019

"Vigilância massiva, registo permanente", de Edward Snowden


Jorge Figueiredo

Edward Snowden é o Daniel Ellsberg da nossa época. O analista da Rand que teve a coragem de revelar os "Pentagon Papers" (1971) com o relato dos crimes praticados pelo imperialismo no Vietname é um digno antecessor de Snowden. Ambos caracterizam-se pelo eticismo. Fizeram-no abandonando carreiras confortáveis e assumindo riscos enormes.

O livro "Vigilância Massiva, Registo Permanente", [1] de Snowden, agora lançado em Portugal, é uma auto-biografia intelectual e política. Ela revela a evolução de um homem, extremamente talentoso do ponto de vista técnico e cuja origem social radica nas camadas médias que trabalham para o aparelho de Estado americano. Ele ingressou aos 22 anos na chamada "Comunidade da Informação" (CI) motivado sobretudo pelos sentimentos patrióticos em que acreditava.

Snowden trabalhou para a Central Intelligence Agency (CIA) e para a National Security Agency (NSA), muitas vezes através dos empreiteiros que as serviam. Começou a sua carreira como um jovem técnico desejoso de colaborar para a construção de "um mundo melhor". Acreditava nisso sinceramente e, graças ao seu enorme talento técnico, em apenas sete anos atingiu os mais altos níveis de responsabilidade operacional no aparelho mundial da CI, com acesso às mais classificadas informações.

Pode-se perguntar. O que motivou um homem assim a tornar-se um denunciante? Ele explica. Nos seus primeiros tempos de actuação trabalhou em actividades técnicas específicas do sistema de vigilância mundial do aparelho de espionagem americano. Tinha a ambição intelectual de ver o todo do sistema, no seu conjunto. Mas como as actividades da espionagem são compartimentadas, isso só ia se tornando possível à medida em que subia nos escalões hierárquicos da CIA.

Snowden não é um socialista, muito menos um marxista. Os seus valores são os de um liberal que pretende aplicar a Constituição americana do século XVIII que impõe o respeito pelas liberdades individuais. Entretanto, verificou que a realidade presente dos EUA nada tem a ver com tais propósitos. Hoje os EUA são um Estado opressivo de vigilância massiva sobre todos os seus cidadãos e sobre o resto do mundo.

A sua consciência evoluiu progressivamente, mantendo sempre bases éticas e com o pano de fundo libertário dos primeiros tempos da Internet. Entretanto, houve um momento em que se deu o "clic" na sua consciência – o célebre salto qualitativo. Foi, como ele conta, o momento em que verificou que a vigilância individualizada passara a ser massiva, uma vigilância de toda a população estado-unidense e mundial. Na verdade, como ele diz, "redefinimos o conceito de espionagem". Esta deixou de ser a clássica de encontros clandestinos estilo James Bond e passou a ser a das redes de arrasto que colectam tudo.

Poucos sabem que a vigilância generalizada já é a realidade actual pois o aparelho foi montado em segredo. Ele foi possível graças a dois grandes saltos tecnológicos: 1) A capacidade de interceptar todos os fluxos de comunicação (telefones, email, mensagens, redes sociais, etc); e 2) A capacidade de armazenar ad eternum os gigantescos volumes de dados assim coligidos. Estas capacidades tecnológicas permitiram uma sociedade muito mais vigiada do que qualquer polícia política no mundo alguma vez teve possibilidade de concretizar.

Ambas as capacidades têm implicações fundas e apontam para uma sociedade distópica. O poder de interceptar significa o fim da privacidade e o poder de armazenar para sempre o que foi interceptado constituem armas a serem utilizadas selectivamente contra cidadãos. A classe dominante que tem tais poderes exerce de facto um controle ditatorial num Estado fascista de novo tipo.

Descobrir tudo isto, um processo em desenvolvimento acelerado e já em curso mas ainda desconhecido da maior parte do mundo, deve ter sido angustiante para Snowden – sobretudo porque tinha de manter secretos tais pensamentos. Na sua ingenuidade liberal, chegou a pensar em denunciar pelas vias hierárquicas legais as infracções sistemáticas à Constituição e às leis em vigor – mas o triste destino de colegas que fizeram tímidas tentativas desse tipo dissuadiram-no. Estava assim diante de um problema de coerência entre pensamento e acção. Denunciar ao mundo tal situação, para preveni-la, era um dever. Mas cumpri-lo exigia planeamento, coleccionamento de provas, contactos com jornalistas, rupturas, perigo de vida e sobretudo uma enorme coragem – tanta que dificilmente poderá haver um outro denunciante do nível dele na CI estado-unidense.

O acervo de provas que coligiu na CI dos EUA, a qual domina a rede dos Cinco Olhos (com a Grã-Bretanha, Austrália, Canadá e Nova Zelândia), é colossal. Snowden é um herói da humanidade por tê-las trazido aos olhos do mundo, denunciando-as. Mas, com este livro, ele vai mais além. Numa linguagem tão didáctica quanto possível ensina às pessoas como se defenderem da intrusão avassaladora do poder dominante. É assim que mostra a ilusão corrente de que se possa "apagar" uma informação e aponta o caminho, mais eficaz, da criptografia. É uma lição importante, sobretudo, para as forças progressistas (o liberalismo, ou inconsciência, é tamanho que o Gmail, devassado pela NSA, continua a ser usado generalizadamente).

Outra percepção aguda de Snowden é a da criação da irrealidade , em que a verdade e a mentira se misturam de modo indetectável para o comum dos cidadãos. Vale a penas citar as suas palavras:

"As tentativas de funcionários eleitos para deslegitimar o jornalismo têm sido ajudadas ou consentidas por um assalto frontal ao princípio da verdade. O que é real está a ser deliberadamente misturado com o que é falso, através de tecnologias capazes de levar essa mistura a um nível sem precedentes de confusão global.

"Tenho um conhecimento íntimo deste processo, porque a criação da irrealidade sempre foi uma das artes mais negras da Comunidade da Informação. As mesmas agências que, só no espaço temporal da minha carreira, manipularam a informação com o objectivo de cria pretexto para uma guerra – e usaram políticas ilegais e um sistema judiciário paralelo para permitir o rapto como "rendição extraordinária", a tortura como "interrogatório reforçado" e a vigilância massiva como "recolha de dados" – não hesitaram um instante em chamar-me agente duplo chinês, agente triplo russo, e pior: "um millenial " [2] .

O livro de Snowden é uma leitura indispensável para as forças progressistas do mundo todo. Elas têm o dever de abandonar a displicência e o liberalismo quanto à segurança do que recebem e transmitem, de defender a privacidade nas suas comunicações inter-pessoais. Dizer que nada têm a esconder é o mesmo que dizer que não se preocupam com a censura porque não são jornalistas.

Registe-se finalmente o mérito da editora Planeta que foi capaz de lançar esta obra em Portugal em simultâneo com a sua edição em inglês, numa tradução rápida e escorreita de Mário Dias Correia.

25/Setembro/2019

Notas
[1] Vigilância Massiva, Registo Permanente , Edward Snowden, Planeta, 2019, 398 p., ISBN 978-989-777-312-9
[2] Millenial: pessoa nascida entre 1981 e 1991, a geração que já cresceu no mundo dos computadores, telemóveis inteligentes e sistemas de jogos.

Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/ 

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