terça-feira, 8 de outubro de 2019

Manuel Loff: "O fascismo não morreu"


Fascismo, populismo e capitalismo, três dos «ismos» sobre os quais se debruça o historiador Manuel Loff, numa entrevista ao AbrilAbril, para analisar o momento político em que vivemos.

Trabalhas sobre o fascismo, ideologia que marcou o século XX. Mas os artigos que publicas e muito do conteúdo de algumas entrevistas que te são feitas falam sobre a actualidade. Há um diálogo entre o teu trabalho e a realidade política que vivemos hoje?

Há diálogo porque o fascismo não morreu. É muito importante percebermos que na história das ideias políticas e dos movimentos sociais cada conjuntura histórica produz novas ideias políticas e actualiza outras. E é evidente que as ideologias de uma forma ou de outra não morrem nunca.

A convicção sobre a qual se refundaram as democracias liberais a ocidente, a partir de 1945, e se criaram os novos regimes que se definiram a si próprios como socialistas na Europa Centro-Oriental, era de que o fascismo tinha morrido, uma vez confirmada a sua derrota militar. Mas foi uma convicção com validade provisória.

A extrema-direita que hoje nos aparece, não vou dizer que não seja uma novidade, porque corresponde a uma conjuntura histórica diferente da do passado. Mas é herdeira do fascismo dessa época e esteve sempre presente no espectro político europeu e à escala mundial desde 1945.

Esta «nova» extrema-direita só poderia ter o mínimo de sucesso popular, eleitoral e mediático uma vez reunidas de novo algumas das condições que habitualmente estão presentes no momento em que o fascismo ou os «neo-fascismos» têm aparecido e têm tido sucesso.

Ora, depois dos anos 80 dá-se uma mudança profunda no sistema económico internacional com a viragem económica a que se tem chamado de globalização e que é uma ulterior expansão do sistema capitalista a regiões do globo de onde tinha desaparecido, aliada a uma nova ordem internacional com a construção de um mundo unipolar resultante da implosão do sistema soviético.

Este novo contexto histórico caracteriza-se pelo esgotamento da capacidade de representação das democracias chamadas liberais e também o esgotamento, a partir da perestroika, dos modelos de socialismo que estavam vigentes em grande parte da Europa e abre espaço para que uma reinterpretação de uma velha ideologia aparecesse como nova. 

Chamar-lhe nos nossos dias de «populismo», ou simplesmente «extrema-direita», é uma forma sintética e até simplista de definir o que é a readaptação ao contexto actual do fascismo na sua versão neo-fascista.

Essa extrema-direita é inevitavelmente herdeira dos valores de uma ideologia que no contexto do final da Primeira Guerra Mundial estava a nascer e que procurava uma solução radical de direita, assumidamente violenta, para resolver o problema da legitimidade popular e política dos regimes liberais, que tinham perdido a sua capacidade de adesão e reunião de consenso.

Hoje começam a surgir estes novos movimentos que, em grande medida, são herdeiros do fascismo de há 100 anos e que pretendem disputar à esquerda a sua capacidade de contestação, procurando roubar-lhes a bandeira da ruptura.

Ao contrário do fascismo dos anos 20, hoje têm o cuidado de nunca pôr formalmente em causa a natureza liberal-democrática dos regimes, embora assumindo um discurso ultra-securitário do ponto de vista de criação de inimigos externos, que têm manifestação interna a partir da imigração.


Como se explica que em Portugal não se assista até agora a um crescimento eleitoral destas forças? Poderá tratar-se de uma inibição que resulta do património que ainda existe fruto do processo revolucionário do 25 de Abril de 1974 e do derrube do fascismo em Portugal?

Bem, Portugal é só uma relativa excepção. Porque, como acontece geralmente com este tipo de correntes de opinião, a extrema-direita pragmaticamente insere-se mais ou menos dissimuladamente nos partidos da direita clássica. Como sempre acontece com as ideias políticas, um dos aspectos centrais é saber o que é mais útil: se a autonomia orgânica e criação de partidos próprios ou se, pelo contrário, entrar em partidos já organizados e mais próximos do poder.

Não entendo que a extrema-direita até agora tenha praticado uma espécie de entrismo, ou seja, não eram submarinos dissimulados dentro da direita. A direita clássica portuguesa sempre incorporou homens e mulheres que assumiam, em determinado tipo de debates, valores abertamente próximos da extrema-direita, designadamente no que diz respeito à memória da ditadura salazarista. Mas optaram por estar politicamente organizados dentro desses partidos.

Mas perguntas: é ou não relevante que não haja extrema-direita organicamente autónoma com sucesso eleitoral em Portugal? Bem, houve uma progressão da extrema-direita nas últimas eleições para o Parlamento Europeu que não foi pouca coisa. Não sei qual vai ser o resultado final das eleições legislativas...

Mas reconheço que é relevante que, em Portugal, a extrema-direita tenha muito pouca dimensão. Isso decorre da forma como se respondeu à devastação social criada pela crise financeira e recessão deliberada que o capitalismo assumiu em 2007/2008 – que no caso português tem o seu auge no governo da troika.

Se o descontentamento social não se transformou em centenas de milhares de votos para aquilo que à escala internacional se tem chamado de populismo, o motivo é que, até à actualidade, nas situações de forte descontentamento social se mantêm à esquerda forças políticas e sociais que têm conseguido travar eleitoralmente esse crescimento.

Para além disso, tenho insistido que há uma cultura política de massas em Portugal, disseminada à escala da sociedade portuguesa, que incorporou a rejeição da ditadura salazarista. 

Sim, alguns dizem que havia mais segurança, mais respeito, menos corrupção, mas são narrativas normalmente moralistas e todas elas de pura reconstrução do passado. No caso português, essa nostalgia concentra-se sobretudo na figura de Salazar. 

Em relação ao resto da memória da ditadura, não há nenhuma manifestação consistente de que em Portugal se tenha relegitimado a falta de liberdade, a proibição de partidos políticos e sindicatos, a interdição do direito à greve, a censura, a tortura, a guerra colonial – e isso dificulta a progressão da extrema-direita. 

Em suma, não há saudades da ditadura, nunca se recuperou o salazarismo. Não é que não haja tentativas, mas a direita portuguesa ainda está na fase de relativizar os males do salazarismo. Tenta regressar a uma narrativa da casa portuguesa, que era pobre mas honesta, e é o mais que consegue fazer.

Mas assistimos a uma certa «desinibição» no discurso da direita em algumas matérias: sobre a entrada de imigrantes e refugiados na União Europeia (UE), ou quando passa a utilizar a expressão «ideologia de género» para atacar o que consideram ser medidas «anti-família». 

Sim, mas alimentar o discurso moralmente reaccionário e de pura reacção à evolução dos tempos nunca foi um exclusivo da extrema-direita. O horror à transformação e à mudança está patente todas as vezes que se avança na direcção da igualdade, do reconhecimento efectivo de direitos e da diversidade nas relações sociais.

A criação desta expressão, «ideologia de género», que não é nova, é mais uma reacção que vem ao encontro do discurso legitimador da desigualdade, que tende a querer recordar os velhíssimos argumentos da naturalização. Que conceitos como a família, a autoridade, a nação, a religião seriam fenómenos da natureza. Dizer que «isto sempre foi assim» é uma pura invenção, nada na História «sempre foi assim».

Sobre a imigração vale a pena dizer que um dos modismos que a extrema-direita portuguesa descobriu, e que podia ter saída em Portugal, é a discussão em torno do outro. No caso português é simultaneamente a imigração e os ciganos. Mas no caso da imigração existe um problema de fundo: o luso-tropicalismo mitifica a ideia de que os portugueses seriam uma excepção na história colonial à escala mundial e que teriam demonstrado uma capacidade de relacionamento pacífico com os povos coloniais. 

Este paradigma luso-tropicalista, que continua predominante em Portugal, inibe a extrema-direita, na discussão da imigração, de verbalizar ataques contra a comunidade brasileira e africana. Mas manifestam-se de outras formas, por exemplo através da tese de que os pobres que não têm a mesma cor são parasitas do Estado e do resto da comunidade.

Esta tese, que é sociológica e economicamente falsa, tem popularidade em muitos sectores e passa por uma das formas mais eficazes de demonizar o outro, que é transformá-lo num criminoso ou num criminoso potencial.

Como vês os argumentos que defendem a construção de um Museu sobre o Salazar – o chamado «Centro Interpretativo do Estado Novo»? Como é que se pode justificar do ponto de vista científico a abertura de um museu com estas características?

Um conjunto de autoridades municipais, de uma zona tradicionalmente conservadora do País, decidiu criar uma rede de centros interpretativos e o caso mais conhecido é o chamado Centro Interpretativo do Estado Novo, cuja elaboração do projecto foi entregue pela Câmara de Santa Comba Dão ao CEIS20 (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra). Começo por dizer que tenho um enorme respeito pelo trabalho do CEIS20 e não tenho dúvidas sobre as intenções dos investigadores a quem a Câmara Municipal de Santa Comba solicitou esta tarefa. 

Mas solicitou-a depois de um outro executivo municipal ter proposto a criação de um Museu Salazar, afirmando que era preciso «pôr Santa Comba no mapa». Esse executivo propunha a criação de um Museu Salazar acompanhado daquilo que no marketing se chama o branding, ou seja, acompanhado de enchidos de marca Salazar, vinho Salazar, etc.

Ora, a questão é que criar um Centro Interpretativo do Estado Novo não requer o território, o lugar da memória, o território associado à figura de António de Oliveira Salazar. Ele pode ser feito no Porto, em Guimarães ou em Valença do Minho, em Olhão ou no Crato. Eu reconheço a razoabilidade de passar de Museu Salazar a Centro Interpretativo porque um Museu Salazar não teria praticamente nada para mostrar, não há espólio que justifique fazer-se um museu do antigo ditador. 

E começa aqui a minha objecção de natureza metodológica e científica. Eu não preciso de espólio nenhum materialmente associado à figura do ditador para fazer um centro de interpretação do regime que ele dirigiu. Eu não preciso de explicar o nazismo mostrando camisas de Adolf Hitler. 

O que está aqui em questão é: porquê então ter escolhido um lugar da memória? Um território, um conjunto de edifícios, um espaço natural na paisagem, na geografia, que está directamente associado e que é relembrado e recordado pela comunidade como sendo o território de Oliveira Salazar. 

E quem é que vai habitualmente ao lugar do Vimieiro para visitar a campa de Salazar e a casa onde nasceu, que tem placas comemorativas com frases que são puro ideário neo-salazarista de justificação na democracia de uma alegada grandeza histórica de Oliveira Salazar? 

Há informações sobre um grande número de pessoas que ali vão numa atitude de nostalgia e homenagem ao ditador. E será muito difícil criar uma interpretação do que foi o Estado Novo dentro deste território, sendo expectável que a grande maioria dos seus visitantes serão nostálgicos do salazarismo. Teriam que começar por interpretar aquelas placas.

O que se vai criar é uma relação esquizofrénica, uma vez que o visitante nostálgico rejeita o que considera ser uma historiografia militante. E por sua vez, num texto que foi colocado no site da Câmara, dizia o presidente que não se tratava de elogiar o ditador nem de o demonizar. O que pretende dizer com isso? Quem é que o tem demonizado? Por que razão recomenda o presidente da Câmara aos historiadores que convida para que não se demonize a figura? É em relação a essa atitude que eu, se entendo o que se pretende vir dizer, não posso senão manifestar a minha discordância total. 

Há mais de 40 anos de historiografia, de boa investigação feita sobre o salazarismo, que tem contribuído para uma interpretação do Estado Novo sustentada na memória colectiva, nos documentos escritos e fontes primárias da história e não uma historiografia militante. De resto, a rejeição histórica e política do que foi a ditadura fascista está consagrada no preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.

Enfim, não vejo que a criação de um Centro Interpretativo do Estado Novo em Santa Comba Dão possa arrastar multidões de curiosos sobre a ditadura que se sintam representados numa visão da história que tenha natureza científica.

O fascismo e o comunismo como «extremos que se tocam» é uma ideia usada para aproximar as duas ideologias, nomeadamente dando-lhes o rótulo de totalitarismo. Mas o fascismo cresce dentro do sistema capitalista, e é recurso do capital para sobreviver enquanto modelo económico, enquanto o comunismo pretende superar este modelo. Por que é que se mantém esta ideia?

Uma das estratégias mais presentes, e até certo ponto mais eficazes, para tentar legitimar ou reforçar politicamente o triunfo do neoliberalismo na fase final do século XX e reforçar a legitimidade da ordem capitalista, é a tese que foi criada a partir da chamada teoria do totalitarismo, que procura do ponto de vista académico usar a seguinte argumentação: começa por definir como extremismo as opiniões que de facto ou aparentemente contrariam o pensamento dominante. E daí faz o raciocínio de que «no meio está a virtude» e que os extremos se tocam. Essa tese, criada nos anos 30 mas reforçada nos anos 50 durante a Guerra Fria, afirma que esses extremos são o nacional-socialismo, de um lado, e, do outro lado, o comunismo, ainda não derrotado militarmente nem politicamente nessa altura. 

A teoria totalitária reapareceu com grande impacto com o fim da URSS, confundindo-se de certa forma com a tese do «fim da história» do Fukuyama e do triunfo de uma espécie de versão liberal de democracia.

Por exemplo, sempre que haja críticos da UE e da sua política económica, estejam à esquerda ou à direita, banaliza-se a ideia de que os extremos se tocam. Em primeiro lugar, há aqui um simplismo de análise e um forçar da realidade. É uma espécie de tripartição do mundo e a opção correcta está no meio. Em segundo lugar é descontextualizar o aparecimento destas ideologias, a sua origem e a natureza social e de classe dos seus projectos. 

O fascismo surge após a Primeira Guerra Mundial, em grande medida como mobilização de uma parte da direita contra a ameaça da revolução socialista. E reforça-se com a grande depressão, a grande crise do capitalismo internacional em 1929. Ou seja, é, numa primeira fase, a resposta à necessidade de uma parte da direita de preservar a ordem capitalista contra a ameaça revolucionária e, numa segunda fase, a passagem para uma reorganização do mundo e uma disputa de mercados e hegemonias dentro da ordem capitalista. 

O fascismo nunca pôs em causa a ordem capitalista. E nesse sentido é evidentemente um produto, uma opção, de uma parte maioritária da direita social e política e dos interesses da classe dominante. O fascismo em vários países europeus foi absorvendo e «fascizando» grupos inteiros das direitas que até então não eram fascistas, mas que se foram adaptando, que foram percebendo para onde os ventos sopravam. Pelo contrário, o comunismo nasce numa procura da ruptura com a ordem capitalista e consegue fazê-lo em vários casos.

Na Europa dos nossos dias, uma parte da extrema-direita manifesta reservas e contesta, dentro da tradição nacionalista do fascismo, a forma como a UE retira soberania e capacidade de decisão aos Estados e portanto, na perspectiva da extrema-direita, às elites políticas e económicas conservadoras.

Mas o facto de uma parte da extrema-direita contestar as políticas da UE e, ao mesmo tempo, as forças à esquerda contestarem esse mesmo processo não significa que sejam semelhantes. Aqueles que, à esquerda, são críticos da forma como a integração europeia se processou não se devem inibir de persistir nas suas opiniões, porque não partilham de forma alguma a mesma barricada que a extrema-direita.

Como é que se podem defender os regimes democráticos ocidentais, por oposição à ascensão do fascismo, quando nos deparamos com medidas como a lei de emergência em França e a banalização dos sistemas de vigilância e de outras medidas securitárias que limitam as liberdades?

O fascismo dos anos 20 e dos anos 30 propiciou o aparecimento do anti-fascismo. E o antifascismo foi uma das frentes de resistência, em favor da construção da democracia e do seu aprofundamento, mais importantes para a transformação da vida da humanidade. 

O antifascismo não só garantiu depois do mais trágico e dramático acontecimento da humanidade que foi a Segunda Guerra Mundial – considerando do ponto de vista cronológico um acontecimento que dura seis anos e que teve as consequências que conhecemos – dizia, não só conseguiu assegurar as condições da derrota de uma das maiores ameaças para os direitos individuais e colectivos que o fascismo representou até 1945, como construiu as condições para a emancipação social, étnica e de género, que ocorreu pelo menos nos 30 primeiros anos depois da Segunda Guerra Mundial.

O fascismo teve esta capacidade, de mobilizar e de colocar numa luta comum correntes políticas e grupos sociais com interesses muito diversificados entre si. E não temos que ter vergonha nenhuma de saber que, em muitos casos, as nossas políticas de aliança para construir resistência se façam pela negativa, quando enfrentamos um perigo excepcional e incomum contra os nossos direitos, as nossas liberdades, até a nossa existência.

Se o fascismo fez isto nos anos 20, e criou a tal frente de resistência que produziu uma cultura política que desde há 70 anos tem servido de dique para proteger a democracia dos ataques autoritários à direita, hoje, se vai reaparecendo, creio que possa ter a mesma utilidade. E já há várias manifestações neste sentido. Acho que vivemos uma época excepcional a esse nível e que este novo vigor da extrema-direita é um fenómeno incomum das nossas vidas. 

Mas nesse sentido, e respondendo à pergunta, para construir esta nova frente antifascista entre muitos sujeitos políticos diferentes, há contudo uma regra de coerência que temos que sublinhar. Que muitos dos Estados europeus ocidentais, alguns dos quais com governos que se manifestam contra a extrema-direita, que habitualmente chamam de «populismo», têm encenado a ideia do perigo do avanço da extrema-direita, ao mesmo tempo têm transposto para a legislação comum lógicas securitárias verdadeiramente de estado de emergência.

Por um dever de coerência temos forçosamente que denunciar esta deriva autoritária, este liberalismo do medo que tem sido imposto a muitos cidadãos, num momento em que, ao mesmo tempo, a extrema-direita avança alimentando-se desse mesmo medo. 

Chegando ao poder, pode dessa forma usar os recursos deixados por esses governos, que não sendo de extrema-direita se comportaram exactamente como qualquer governo da extrema-direita se comportaria. É fundamental não ter medo das contradições: para resistir ao avanço do fascismo temos que simultaneamente denunciar a deriva autoritária das chamadas democracias que escancaram as portas à extrema-direita e às suas lógicas de acção política alicerçadas na violência.


Na foto: Benito Mussolini e Adolf Hitler Créditos/ iela.ufsc.br/

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