Nas linhas tortas da História, um
caminho pavimentado pela violência colonial: chicotes, pobreza e desumanidades.
Com ultradireita, vive nova encruzilhada. Mas novas revoltas sugerem: hora é de
recuperar o sabor da resistência
Luís Felipe Machado de Genaro
| Imagem: Joaquín Torres García, Construtivo en cinco tonos (1945)
Por vezes me pego refletindo,
entre agonias e desilusões, sobre o mapa invertido da América Latina
do artista uruguaio Joaquin Torres García, que o teria rabiscado em meados da
primeira metade do século passado.
Há neste mapa uma porção de
significados simbólicos que olhando ao nosso redor, neste cenário
histórico-político aterrador, parece, em alguns poucos momentos, me encher de
esperança, enquanto em outros permaneço incrédulo e estático – não há
transformação possível, penso. Como inverteríamos este mapa? Torres García
imaginava um continente unido em oposição radical aos interesses do Norte
global. Nas palavras do artista:
“Nosso norte é o Sul. Não deve
haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora pomos o
mapa ao revés, e então já temos a exata ideia de nossa posição, e não como
querem no resto do mundo. A ponta da América, desde agora, prolongando-se,
assinala insistentemente o Sul, nosso Norte”.
Em um continente marcado por
instabilidades seculares, corrupção pública e privada, desigualdades extremas
entre classes sociais, descaso de governantes para com os direitos mais básicos
e fundamentais de seus povos, violência estatal e para-estatais quotidianas – e
naturalizadas – em muitas de suas regiões e o parasitismo opulento de grupos
dominantes que, nas palavras de Darcy Ribeiro, “são, de fato, muito mais
parecidas com o patriciado escravista romano do que com qualquer burguesia
clássica”, o cenário é desolador.
Por que, questiona o historiador
Fábio Luís Barbosa dos Santos, “de tempos em tempos, somos invadidos pelo
sentimento desesperador do eterno retorno do mesmo?”.
Durante o raiar do século XXI até
alguns atrás parecíamos estar vivendo uma integração civilizadora entre os
países da América, mesmo com as mais diferentes particularidades, tropeços e
concertações políticas destes mesmos países.
Hoje, populações estão adoecendo;
um universo online de notícias falsas e impropérios dos mais diversos
ameaça não só a sanidade mental de suas gentes, mas as instituições políticas
frágeis do continente; classes vulneráveis contam com cada vez menos acesso aos
direitos humanos; senão privatizadas e cada vez mais inacessíveis pela falta de
financiamento, universidades e escolas – Educação pública, crítica e de
qualidade – parecem ser sonho cada vez mais distante; assassinatos e prisões de
lideranças políticas populares na Colômbia, Equador, Argentina e Brasil
tornaram-se recorrentes, como nos tempos do Condor; empregos informais e
precarizados; enfim, uma vida cada vez mais difícil, acelerada, intensa e
solitária em meio à multidão, nos assola. Seria este o destino reservado ao
continente do labor?
O colombiano Gabriel García
Márquez, narrando o general Bolívar em muitos de seus labirintos, num de seus
mais belos romances, escreveu fictício diálogo entre O Libertador e o general
Carreño: – Não me ocorre nada mais digno – concluiu. – Bem, mas
pelo menos lá é a pátria – disse. – Não sejas bobo – disse o
general Bolívar – Para nós a pátria é a América, e ela toda não tem jeito.
Que “jeito” é este que não há de
que nos fala García Márquez em seu romance, pelos lábios do libertador Bolívar?
A História, como imagina o senso comum, não é cíclica e nem se repete, não há fases
e nem mesmo é linear, perfeitamente construída em uma linha reta do passado ao
presente, mas uma infinidade de sedimentos, camadas sobrepostas – talvez uma
linha, sim, mas com infinitos caminhos tortuosos, abissais muitas vezes.
Como escreveu Walter Benjamin,
“cadeia de acontecimentos que acumula incansavelmente ruína sobre ruína”. O
continente sul-americano se encontra em um destes caminhos.
Encurralado, mas resistente no
Palácio La Moneda, em 11 de setembro de 1973, o presidente Salvador Allende,
horas antes de um dos golpes militares mais sangrentos do continente serem
desfechados pelas forças armadas, foi categórico: a História é nossa e a
fazem os povos.
“O drama ocorreu no Chile, pela
desgraça dos chilenos, mas há de passar para a História como algo que aconteceu
sem remédio a todos os homens deste tempo e que ficou em nossas vidas para
sempre”, datilografou García Márquez em suas Reportagens Políticas.
Dramas semelhantes estariam se
avizinhando para os dias que correm? O terremoto social anti-neoliberal no
Chile; a soltura da maior liderança popular do Brasil, Lula, após meses de
prisão política; o golpe civil-militar na Bolívia; a vitória eleitoral de
Fernandez, na Argentina; as dificuldades políticas da Frente Ampla, no Uruguai,
tudo, tudo está conectado.
Hoje, refletindo sobre as
palavras de Evo Morales após o golpe desfechado dias atrás, “Nunca me
abandonaron, nunca los abandonaré”, que precisamos guardar as
desesperanças que nos acometem diariamente em algum lugar obscuro e distante,
trancá-las às sete chaves, girar o continente como rabiscou Joaquin
Torres García, e humanizar a nossa civilização, nossa Pátria Grande tão marcada
por chicotes, torturas, violências, berros, pobreza e desumanidades.
Construir caminhos solidários,
igualitários e fraternos dentre tantos os infinitos que existiram, existem e
existirão – e só pela conscientização política, trabalhos de base, uma luta
feroz nas ruas e avenidas e uma Educação crítica, pública e de qualidade que
conseguiremos estancar as veias abertas da região.
Precisamos que nos devolvam – e
teremos de lutar por isso! – a união entre os nossos povos e a alegria de
viver, uma alegria perdida em um dos continentes mais belos e
extraordinários da Terra.
REFERÊNCIAS
Fábio Luís Barbosa dos Santos.
Uma história da onda progressista latino-americana (1998-2016).
Darcy Ribeiro. América Latina: A
Pátria Grande.
Gabriel García Márquez. O General
em seu Labirinto.
___. Reportagens Políticas.
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