Para o Dia da Consciência Negra,
memória de uma provocação do geógrafo. Para ele, racismo em nosso país tem
indecente peculiaridade: aqui, os carrascos é que são os ressentidos. Escolas
podem ser contraponto — por isso, são tão temidas…
Há uma frequente indagação sobre
como é ser negro em outros lugares, forma de perguntar, também, se isso é
diferente de ser negro no Brasil. As peripécias da vida levaram-nos a viver em
quatro continentes, Europa, Américas, África e Ásia, seja como quase
transeunte, isto é, conferencista, seja como orador, na qualidade de professor
e pesquisador. Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em diversos
países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais
correspondentes. Cada uma dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e
todas elas diversas da própria experiência brasileira. As realidades não são as
mesmas. Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da
história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes
deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e
desigualitária. Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas
arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm
incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez
ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social
sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos
(paradoxalmente contra as vítimas). Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por
cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de
inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que
o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma forma de
discriminação ou preconceito.
Milton Santos |
500 anos de culpa
Agora, chega o ano 2000 e a
necessidade de celebrar conjuntamente a construção unitária da nação. Então é
ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da história: 500
anos de culpa, 1 ano de desculpa. Mas as desculpas vêm apenas de um ator
histórico do jogo do poder, a Igreja Católica! O próprio presidente da
República [Fernando Henrique Cardoso, na época] considera-se quitado porque
nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma notável mulher
negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os
negros para a grande Casa Brasileira. Por enquanto, para o ministro da
Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro
da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam reservas
indígenas. A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para
ultrapassar o palavrório retórico e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação
política consequente. Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter
o direito a uma participação plena na vida nacional? Que outras reflexões podem
ser feitas, quando se aproxima o aniversário da Abolição da Escravatura, uma
dessas datas nas quais os negros brasileiros são autorizados a fazer, de forma
pública, mas quase solitária, sua catarse anual?
Hipocrisia permanente
No caso do Brasil, a marca predominante
é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a
existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é, também,
duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan
Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito de
cor, mas manifestá-lo. Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do problema
torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral
é substituído por referências ao dicionário. Veja-se o tempo politicamente
jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discriminação,
racismo e quejandos, com os inevitáveis apelos à comparação com os
norte-americanos e europeus. Às vezes, até parece que o essencial é fugir à questão
verdadeira: ser negro no Brasil o que é?
Talvez seja esse um dos traços
marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem
racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é
frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a
convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso
individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e
instituições. Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os
que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre,
o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de
maneira adequada e sistêmica.
Marcas visíveis
Que fazer? Cremos que a discussão
desse problema poderia partir de três dados de base: a corporeidade, a
individualidade e a cidadania. A corporeidade implica dados objetivos, ainda
que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui dados
subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente. Com a verdadeira
cidadania, cada qual é o igual de todos os outros e a força do indivíduo, seja
ele quem for, iguala-se à força do Estado ou de outra qualquer forma de poder:
a cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode
efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na
prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na
esfera social.
Costuma-se dizer que uma
diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e
aqui não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica, pois não
podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade é que, no caso
brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é
frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de
julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito
das pretensões de individualidade e de cidadania do outro. Então, a própria
subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja
avaliação, no entanto, é preconceituosa.
A individualidade é uma conquista
demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes
aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao
mesmo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio
privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração
objetiva da pessoa, diante de outro olhar. No Brasil, onde a cidadania é,
geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses
cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os
estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais
aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso
maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade.
Peço desculpas pela deriva
autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de
vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao
sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como
negro -imagem fácil- e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida
longa e produtiva. Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua
socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da
consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a
efetividade da cidadania. Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil,
o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria
mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira
consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.
Olhar enviesado
Enfrentar a questão seria, então,
em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la diante da opinião, e
aqui entra o papel da escola e, também, certamente, muito mais, o papel
frequentemente negativo da mídia, conduzida a tudo transformar em “faits-divers”,
em lugar de aprofundar as análises. A coisa fica pior com a preferência atual
pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda mais, o
enfrentamento do tema no seu âmago. E há, também, a displicência deliberada dos
governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado muito mais
em termos eleitorais que propriamente em termos políticos. Desse modo, o
assunto é empurrado para um amanhã que nunca chega.
Ser negro no Brasil é, pois, com
frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece
considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim
tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da
pirâmide social quanto haver “subido na vida”.
Pode-se dizer, como fazem os que
se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana
ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há
diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se
buscam remédios. A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações
é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade,
de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se
realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro
próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.
Milton Santos, no GGN, publicado em 13/05/2001 | em Outras
Palavras
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