terça-feira, 12 de novembro de 2019

O bom, o mau e o assustador nos serviços de saúde em Portugal


Ricardo Paes Mamede* | Diário de Notícias | opinião

Todos os dias há notícias sobre problemas nos serviços públicos de saúde em Portugal. São tão insistentes que ficamos sem saber se o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está à beira do colapso ou se há quem queira fazê-lo pior do que está. O relatório "Health at a Glance 2019", publicado há dias pela OCDE, dá-nos uma ideia algo diferente. Permite-nos ver o bom e o menos bom do sistema no seu conjunto. Mostra-nos também o que há de assustador nas perspectivas de evolução do SNS.

A saúde em Portugal destaca-se em áreas como a obstetrícia, a vacinação e a oncologia. Temos uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil da OCDE e somos dos países onde os partos são mais seguros. A percentagem de crianças com 1 ano vacinadas contra a difteria, o tétano, a tosse convulsa, o sarampo e a hepatite B é das mais elevadas. Portugal está também acima da média na taxa de sobrevivência ao cancro da mama, um indicador de qualidade da prevenção e dos tratamentos oncológicos. Todas estas são áreas em que predominam os serviços públicos.

O bom desempenho não se limita a algumas áreas de especialidade. Contrariando o senso comum, o tempo de espera por cirurgias em Portugal (pelo menos as consideradas no relatório) é hoje inferior à média da OCDE. Portugal destaca-se também pelos níveis relativamente reduzidos de mortalidade por causas que podem ser previstas ou tratadas.


Estes e outros aspectos contribuem para que os portugueses tenham uma esperança de vida à nascença maior do que a média da OCDE (81,5 versus 80,7 anos). É grande o contraste com o que sucedia no país em 1970, quando a esperança de vida era de apenas 66,7 anos. Tudo isto reflecte avanços sociais que não seriam possíveis sem o serviço de saúde construído pelo regime democrático.

A falta de resposta do SNS não acontece apenas no caso da medicina dentária, mas na generalidade das consultas (seja de clínica geral ou de especialidade) e nos tratamentos de reabilitação.

Apesar do progresso, há dados que evidenciam falhas importantes no sistema, a começar pela desigualdade no acesso à saúde em função dos rendimentos. Portugal apresenta das maiores diferenças entre ricos e pobres na probabilidade de consultar um médico em caso de necessidade. Cerca de metade (47%) das pessoas com menores rendimentos adiam consultas necessárias por razões económicas - é o segundo valor mais alto da OCDE, quase o dobro da média (o que não acontece entre a população com mais recursos). No caso da ida ao dentista, Portugal é o segundo país onde a diferença entre ricos e pobres é maior.

A falta de resposta do SNS não acontece apenas no caso da medicina dentária, mas na generalidade das consultas (seja de clínica geral ou de especialidade) e nos tratamentos de reabilitação. O Estado português assegura 85% do financiamento dos cuidados hospitalares, mas apenas 66% dos cuidados ambulatórios (na OCDE, os valores médios correspondentes são 88% e 77%).

Ou seja, o acesso a consultas médicas é uma das áreas em que o SNS mais falha, penalizando principalmente as camadas mais pobres da população. Isto traduz-se em dificuldades sérias para muitas famílias: Portugal é um dos países com maior incidência de despesas catastróficas em saúde, definidas como pagamentos que excedem os níveis de despesa expectável por família.

Igualmente grave é a incapacidade do SNS para responder adequadamente à evolução demográfica. Portugal apresentava em 2017 uma das maiores percentagens de população acima de 65 anos (21,3%) e acima de 80 anos (6,2%). De acordo com as previsões, em 2050 aqueles valores aumentarão para 35% e 13,4%, respectivamente. Esta evolução demográfica coloca desafios a que o SNS não tem dado resposta.

A esperança de vida dos portugueses após os 65 anos é das mais elevadas (22,1 para as mulheres e 18,3 para os homens). No entanto, Portugal é dos países onde é menor a parte de vida saudável na terceira idade. Cerca de ¾ das pessoas acima dos 65 anos sofrem de duas ou mais doenças crónicas (contra apenas 31,4% na média da OCDE). Apenas 14,3% dos indivíduos desta faixa etária classificam a sua própria saúde como boa ou muito boa (três vezes menos do que na média da OCDE).

Apesar da estrutura demográfica e dos problemas de saúde dos mais velhos, os recursos destinados a este segmento da população são modestos. Por exemplo, as despesas públicas com cuidados continuados são de apenas 0,5% do PIB em Portugal, uma das mais baixas taxas da OCDE (cuja média é 1,7%). Isto reflecte-se não apenas na qualidade de vida dos idosos, mas também numa pressão crescente sobre os hospitais e centros de saúde para acudir a situações que, na verdade, estão para lá do âmbito da sua actuação.

Há, com certeza, casos de má gestão ou incapacidade de organização dos serviços públicos de saúde em Portugal. Mas a principal conclusão que se retira dos dados da OCDE é outra: o SNS está subfinanciado. As necessidades acrescidas que decorrem da estrutura demográfica e das enormes desigualdades sociais em Portugal aconselhariam um esforço maior do que a média no financiamento da saúde. Não é isso que acontece, pelo contrário. A despesa pública em saúde por habitante em Portugal (em paridades de poder de compra) é menos de dois terços da que se verifica na média da OCDE. Tirando o caso da Grécia, Portugal é o único país da UE cujas despesas públicas em saúde em 2017 eram inferiores aos valores de 2010. Foi também um dos poucos países onde os salários dos médicos caíram neste período.

O subinvestimento no SNS não se reflecte apenas na saúde dos cidadãos no imediato. A incapacidade de resposta e a degradação das condições de trabalho dos profissionais abrem espaço à expansão da oferta privada. O sistema público vai-se tornando um pobre serviço para pobres, enquanto os privados oferecem serviços em função da capacidade de pagamento. Se nada de relevante for feito para inverter a situação, acabaremos todos a pagar mais por um sistema cujos resultados serão medíocres - como o relatório da OCDE mostra para o caso dos EUA. O interesse objectivo que o poderoso lobby privado da saúde tem na degradação do SNS é o lado mais assustador desta história. Resta saber se quem defende outro destino para a saúde em Portugal - dentro e fora do governo - vai ter força para resistir à pressão dos interesses.

*Economista e professor do ISCTE. Escreve segundo a ortografia pré-Acordo Ortográfico de 1990.

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