Ricardo Paes Mamede* | Diário de
Notícias | opinião
Todos os dias há notícias sobre
problemas nos serviços públicos de saúde em Portugal. São tão insistentes que
ficamos sem saber se o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está à beira do colapso
ou se há quem queira fazê-lo pior do que está. O relatório "Health at a
Glance 2019", publicado há dias pela OCDE, dá-nos uma ideia algo
diferente. Permite-nos ver o bom e o menos bom do sistema no seu conjunto.
Mostra-nos também o que há de assustador nas perspectivas de evolução do SNS.
A saúde em Portugal destaca-se em
áreas como a obstetrícia, a vacinação e a oncologia. Temos uma das mais baixas
taxas de mortalidade infantil da OCDE e somos dos países onde os partos são
mais seguros. A percentagem de crianças com 1 ano vacinadas contra a difteria,
o tétano, a tosse convulsa, o sarampo e a hepatite B é das mais elevadas.
Portugal está também acima da média na taxa de sobrevivência ao cancro da mama,
um indicador de qualidade da prevenção e dos tratamentos oncológicos. Todas
estas são áreas em que predominam os serviços públicos.
O bom desempenho não se limita a
algumas áreas de especialidade. Contrariando o senso comum, o tempo de espera
por cirurgias em Portugal (pelo menos as consideradas no relatório) é hoje
inferior à média da OCDE. Portugal destaca-se também pelos níveis relativamente
reduzidos de mortalidade por causas que podem ser previstas ou tratadas.
Estes e outros aspectos
contribuem para que os portugueses tenham uma esperança de vida à nascença
maior do que a média da OCDE (81,5 versus 80,7 anos). É grande o
contraste com o que sucedia no país em 1970, quando a esperança de vida era de
apenas 66,7 anos. Tudo isto reflecte avanços sociais que não seriam possíveis
sem o serviço de saúde construído pelo regime democrático.
A falta de resposta do SNS não
acontece apenas no caso da medicina dentária, mas na generalidade das consultas
(seja de clínica geral ou de especialidade) e nos tratamentos de reabilitação.
Apesar do progresso, há dados que
evidenciam falhas importantes no sistema, a começar pela desigualdade no acesso
à saúde em função dos rendimentos. Portugal apresenta das maiores diferenças
entre ricos e pobres na probabilidade de consultar um médico em caso de
necessidade. Cerca de metade (47%) das pessoas com menores rendimentos adiam
consultas necessárias por razões económicas - é o segundo valor mais alto da
OCDE, quase o dobro da média (o que não acontece entre a população com mais
recursos). No caso da ida ao dentista, Portugal é o segundo país onde a
diferença entre ricos e pobres é maior.
A falta de resposta do SNS não
acontece apenas no caso da medicina dentária, mas na generalidade das consultas
(seja de clínica geral ou de especialidade) e nos tratamentos de reabilitação.
O Estado português assegura 85% do financiamento dos cuidados hospitalares, mas
apenas 66% dos cuidados ambulatórios (na OCDE, os valores médios
correspondentes são 88% e 77%).
Ou seja, o acesso a consultas
médicas é uma das áreas em que o SNS mais falha, penalizando principalmente as
camadas mais pobres da população. Isto traduz-se em dificuldades sérias para
muitas famílias: Portugal é um dos países com maior incidência de despesas
catastróficas em saúde, definidas como pagamentos que excedem os níveis de
despesa expectável por família.
Igualmente grave é a incapacidade
do SNS para responder adequadamente à evolução demográfica. Portugal
apresentava em 2017 uma das maiores percentagens de população acima de 65 anos
(21,3%) e acima de 80 anos (6,2%). De acordo com as previsões, em 2050 aqueles
valores aumentarão para 35% e 13,4%, respectivamente. Esta evolução demográfica
coloca desafios a que o SNS não tem dado resposta.
A esperança de vida dos
portugueses após os 65 anos é das mais elevadas (22,1 para as mulheres e 18,3
para os homens). No entanto, Portugal é dos países onde é menor a parte de vida
saudável na terceira idade. Cerca de ¾ das pessoas acima dos 65 anos sofrem de
duas ou mais doenças crónicas (contra apenas 31,4% na média da OCDE). Apenas
14,3% dos indivíduos desta faixa etária classificam a sua própria saúde como
boa ou muito boa (três vezes menos do que na média da OCDE).
Apesar da estrutura demográfica e
dos problemas de saúde dos mais velhos, os recursos destinados a este segmento
da população são modestos. Por exemplo, as despesas públicas com cuidados
continuados são de apenas 0,5% do PIB em Portugal, uma das mais baixas taxas da
OCDE (cuja média é 1,7%). Isto reflecte-se não apenas na qualidade de vida dos
idosos, mas também numa pressão crescente sobre os hospitais e centros de saúde
para acudir a situações que, na verdade, estão para lá do âmbito da sua
actuação.
Há, com certeza, casos de má
gestão ou incapacidade de organização dos serviços públicos de saúde em
Portugal. Mas a principal conclusão que se retira dos dados da OCDE é outra: o
SNS está subfinanciado. As necessidades acrescidas que decorrem da estrutura
demográfica e das enormes desigualdades sociais em Portugal aconselhariam um
esforço maior do que a média no financiamento da saúde. Não é isso que
acontece, pelo contrário. A despesa pública em saúde por habitante em Portugal
(em paridades de poder de compra) é menos de dois terços da que se verifica na
média da OCDE. Tirando o caso da Grécia, Portugal é o único país da UE cujas
despesas públicas em saúde em 2017 eram inferiores aos valores de 2010. Foi também
um dos poucos países onde os salários dos médicos caíram neste período.
O subinvestimento no SNS não se
reflecte apenas na saúde dos cidadãos no imediato. A incapacidade de resposta e
a degradação das condições de trabalho dos profissionais abrem espaço à
expansão da oferta privada. O sistema público vai-se tornando um pobre serviço
para pobres, enquanto os privados oferecem serviços em função da capacidade de
pagamento. Se nada de relevante for feito para inverter a situação, acabaremos
todos a pagar mais por um sistema cujos resultados serão medíocres - como o
relatório da OCDE mostra para o caso dos EUA. O interesse objectivo que o poderoso lobby privado da saúde tem na degradação do
SNS é o lado mais assustador desta história. Resta saber se quem defende outro
destino para a saúde em Portugal - dentro e fora do governo - vai ter força
para resistir à pressão dos interesses.
*Economista e professor do ISCTE.
Escreve segundo a ortografia pré-Acordo Ortográfico de 1990.
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