sábado, 2 de novembro de 2019

O DESPERTAR DOS POVOS


Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que despertam contra a ditadura económica globalizante do neoliberalismo e as suas trágicas consequências sociais.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

A paz podre do neoliberalismo globalizante e o conformismo social que lhe corresponde estão a ser sacudidos através do mundo. Nas urnas e nas ruas – as duas frentes são democraticamente legítimas e complementares – os povos dão sinais de que a sonolência hipnótica induzida pelo entertainment mediático em que se transformou tudo o que tem a ver com a vida das pessoas é uma arma que também se desgasta, desmascara e vai perdendo eficácia. Uma faúlha representada por um aumento de preços, um corte de subsídios sociais, o lançamento de mais um imposto tornaram-se agora susceptíveis de provocar grandes e vibrantes explosões sociais. A arbitrariedade e a impunidade do sistema dominante começam a encontrar barreiras humanas.

Multiplicam-se os focos de contestação popular em zonas diversificadas do mundo. Mas será um erro avaliá-los segundo uma bitola única, além de ser profundamente desaconselhável deixar-nos conduzir pelos conteúdos e sistematizações que brotam da comunicação social dominante. Esta recorre a métodos padronizados com alguns objectivos principais: diluir a importância e a legitimidade de acções cívicas através do empolamento dos fenómenos de violência e que, em última análise, funcionam em benefício do opressor; misturar razões e motivos para confundir e esconder, deste modo, a mensagem essencial enviada pelos comportamentos de massas; associar situações que são liminarmente antagónicas; ou então evitar ligar circunstâncias e consequências que, sendo diferentes, têm, obviamente, objectivos convergentes. Por exemplo, tratar as manifestações no Chile contra o neoliberalismo como irmãs gémeas dos desacatos na Bolívia a favor do neoliberalismo é tão perverso do ponto de vista informativo como esconder que os movimentos populares chilenos têm exactamente a mesma motivação que os resultados das eleições na Argentina dando guia de marcha a Macri, o homem do FMI.

A única maneira de compreender o que está a passar-se do ponto de vista global através das grandes movimentações populares em curso é partir da observação isolada de cada caso para chegar ao que têm em comum – como indicadores de uma tendência.


Do Chile à Catalunha

Embora em diferentes fases de maturação, é possível comparar, sem misturar alhos com bugalhos como capricha em fazer a informação mainstream, várias situações em diferentes continentes: Chile, Bolívia (e Venezuela), Líbano, Catalunha, Argentina, Equador, Hong Kong, Honduras, Iraque, Nicarágua.

O que está a passar-se no Chile tem características objectivas e simbólicas importantíssimas, das quais ressalta uma rejeição absoluta da ditadura económica neoliberal. O Chile é o país onde foi aplicada pela primeira vez, já lá vão 46 anos, a ortodoxia económica neoliberal, a cargo dos agentes da sua escola teórica em Chicago, sob cobertura da ditadura política fascista do general Augusto Pinochet.

A situação demonstrou que o neoliberalismo é, de facto, o fascismo económico; desenvolvimentos posteriores revelaram – como aliás constatou a senhora Thatcher, inspiradora do «novo» partido parlamentar Iniciativa Liberal – que pode ser compatível com formas muito controladas e manipuladas de democracia política, desde que sustentadas pela transformação da comunicação social dominante num aparelho feroz de propaganda. O que se mantém, em qualquer das situações, são os mecanismos de ditadura económica através da imposição da ortodoxia do «sistema de mercado».

No Chile não houve uma transição para a democracia com a saída de Pinochet, mas sim o prolongamento do pinochetismo travestido de democracia, regime em que se comprometeu – traindo inexoravelmente a memória do sacrificado Salvador Allende – o Partido Socialista do Chile, através da ex-presidente Michelle Bachelet.

É contra essa eternização da escravatura neoliberal que se levantam agora as massas chilenas, quanto a propaganda disfarçada de informação prefere destacar os comportamentos violentos para esconder, por exemplo, a gigantesca manifestação pacífica de um milhão e 200 mil pessoas em Santiago no passado dia 25, que só tem paralelo com as da Unidade Popular nos anos setenta do século passado. O aumento dos preços das viagens de metropolitano foi o detonador, a gota que pôs fim à paciência dos chilenos, que os ricos mais ricos de um dos países mais desiguais do mundo julgavam eterna.

Na Catalunha não é o neoliberalismo que está directamente em causa. Mas a incapacidade para se dar conta da existência de um movimento de milhões de pessoas pela autodeterminação catalã é comportamento próprio de um Estado centralista e avesso ao diálogo – como são as estruturas de poder neoliberais.

É evidente que a propósito da Catalunha, a região mais rica de Espanha, existem razões económicas escondidas em invocações «constitucionalistas» baratas e em «unidades nacionais» de índole feudal. Um Estado verdadeiramente democrático não teria dificuldades em dar a palavra aos catalães – e a outros povos de Espanha – para decidirem sobre o seu futuro. Mas o Estado que emana de Madrid o seu neofranquismo latente, agora como sustentáculo da ortodoxia neoliberal, não é capaz de viver com isso. No entanto, tal como no Chile, há novas realidades que tornam impossível que tudo continue como até aqui.

Por detrás do autoritarismo do Estado espanhol está a União Europeia, esse panteão neoliberal que se recusa a conhecer o que pretendem os catalães mas foi lépido em acolher entidades secessionistas como a Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Croácia, Eslovénia; e que inventou outras por sua conta, risco, fraudes e guerras, como o Kosovo e a Macedónia do Norte.

Do Equador a Hong Kong

Quem seguir os acontecimentos no Equador e em Hong Kong comodamente instalado em frente do televisor, ainda que vá manejando o telecomando para ir variando de espaços noticiosos, fica a saber que os energúmenos latino-americanos são incapazes de aceitar um corte de subsídios de combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso povo asiático enfrenta destemidamente os sinistros ocupantes chineses.

São bons exemplos de como funciona a propaganda neoliberal.

No Equador, as populações levantam-se contra o ressurgimento neoliberal proporcionado pela traição de Lenin Moreno à política de uma década de avanços sociais e soberanos conduzida por Rafael Corrêa, de quem foi vice-presidente. Os equatorianos recusam-se, deste modo, a regressar a um passado de submissão ainda recente.

Em Hong Kong, os «ninjas» teleguiados de Washington e recorrendo a uma estratégia generalizada de intimidação actuam para que se mantenha o colonialismo ocidental, que fez do território um bastião do capitalismo na sua versão neoliberal mais ortodoxa.

Uma vez que o regresso do território à soberania chinesa é interpretado como uma tentativa para perturbar a ortodoxia colonialista reinante torna-se fácil entender o que está a acontecer, sobretudo enquadrando a situação na fase de ataque cerrado contra os avanços económicos e comerciais chineses conduzido pela administração Trump. Em Hong Kong, o activismo a soldo de Washington e Londres nada tem a ver com uma população que, quando chamada a pronunciar-se sobre a administração do território, vota em massa nas organizações sintonizadas com a soberania chinesa.

Nas urnas como nas ruas

Na Argentina e na Bolívia os cidadãos disseram nas urnas o mesmo que os chilenos, equatorianos, hondurenhos e libaneses expressam nas ruas: a rejeição do neoliberalismo.
A realidade é mais complexa, naturalmente, mas essa é a mensagem essencial.

Os argentinos não deixaram margem para dúvidas: aproveitaram a primeira oportunidade eleitoral que lhes surgiu e puseram fim ao terrorismo neoliberal implantado pela ditadura de Mauricio Macri, ao serviço do FMI, que em quatro anos arrasou a economia do país ampliando fenómenos como a pobreza, a submissão, a desigualdade, a delinquência.

A afinidade entre chilenos e argentinos é total; o mesmo acontece com os equatorianos e os hondurenhos. Estes enfrentam corajosamente um regime terrorista nascido de um golpe patrocinado por Barack Obama e Hillary Clinton e sustentado por sucessivas eleições fraudulentas as quais, não obstante, têm recebido a chancela de legitimidade democrática outorgada por delegações da União Europeia.

Na Bolívia, o triunfo de Evo Morales e a nova rejeição do neoliberalismo foram difíceis num ambiente de manipulação norte-americana – a embaixada em La Paz foi apanhada a comprar votos, principalmente em Santa Cruz, tal como já o fizera com deputados da Macedónia do Norte – que continua após as eleições.

O candidato oficial do neoliberalismo, o antigo presidente Carlos Mesa, deu o tiro de partida para a contestação levantando a acusação de «fraude» quando a contagem de votos estava no início. Dessa suposta fraude nenhuma prova apresentou, porque não houve. Mas as consequentes arruaças servem para a propaganda mediática disseminar o mote como uma verdade absoluta, sancionada por «organizações internacionais», as que se consideram portadoras dos mecanismos de avaliação de legitimidades.

Não é difícil perceber a intenção manipuladora da comunicação social dominante quando associa os protestos na Bolívia aos do Chile. No fundo é o mesmo estilo de propaganda que transforma em grandes manifestações populares pela democracia as arruaças terroristas do usurpador Juan Guaidó na Venezuela.

Desperta também o povo do Líbano. Nova sobrecarga de impostos num país avassalado por uma crise económica e afogado em corrupção e privilégios dos titulares e ex-titulares do poder foi a gota que fez transbordar a paciência. É um protesto massivo contra um sistema político que pode ser assimilado a outros como os do Chile, Equador e Honduras, mas que que combina a ortodoxia neoliberal com um confessionalismo herdado do domínio colonial – sempre presente. Por isso, as reivindicações populares vão além da convocação de novas eleições gerais; exigem uma lei eleitoral que deixe de estar subordinada a quotas de eleitos distribuídas pelas comunidades étnico-religiosas e estabeleça um sufrágio universal directo e proporcional. É aí que se fixa o nó do problema, porque nenhum dos protectores coloniais do Líbano, da França aos Estados Unidos, passando por Israel e Arábia Saudita, está disposto a aceitar uma transparência democrática que possa traduzir-se, por exemplo, numa vitória do Hezbollah, como chega a ser vaticinada ainda que a comunidade xiita não seja maioritária no país. As manifestações de massas fizeram já cair o presidente, mas a realização de eleições segundo a metodologia em vigor produzirá um pouco de mais do mesmo. E, para já, de uma maneira perversa, a Arábia Saudita marcou pontos, porque estava interessada na queda do actual chefe de Estado.

Os tumultos no Iraque têm motivações bastante mais ambíguas e enviesadas. Não é difícil arrastar as massas para as ruas numa situação de crise económica grave decorrente da invasão, ocupação e desmantelamento do país pelas tropas norte-americanas, a que se seguiram guerras ainda por resolver. Porém, a concretização das exigências do sector mais radical e contundente dos manifestantes, a demissão do primeiro-ministro, seria um favor às pretensões actuais dos Estados Unidos, que vêem no actual governo um adversário aos seus objectivos de isolamento e fragilização do Irão.

Povos em acção

Parece inegável que em pontos muito diferentes do globo há povos que despertam contra a ditadura económica globalizante do neoliberalismo e as suas trágicas consequências sociais. Independente de questões específicas de cada caso, começa a desenhar-se uma tendência popular para abandonar o conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários para poderem impor as soluções económicas únicas, as toleradas pelo «mercado».

Essas acções populares não se confundem, a não ser no âmbito da estratégia manipuladora da própria propaganda neoliberal, com arruaças, tumultos e comportamentos terroristas como os que acontecem na Bolívia, na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo, onde se colocam travões aos mecanismos predadores do «mercado».

O despertar dos povos, nas urnas ou nas ruas, vem pôr em causa os pilares em que assenta a democracia corrompida que serve de cobertura à ditadura do «mercado». Quer isto dizer que os povos não só querem ter voz como começam a exigir que esta seja ouvida e respeitada.

O que nos dizem estes levantamentos? Que ficar à espera de um neoliberalismo democrático é o mesmo que aceitar passivamente a canga da submissão perante a selvajaria capitalista. Realidade que é válida tanto no exterior como no interior da União Europeia.

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