Parece inegável que em pontos
muito diferentes do globo há povos que despertam contra a ditadura económica
globalizante do neoliberalismo e as suas trágicas consequências sociais.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A paz podre do neoliberalismo
globalizante e o conformismo social que lhe corresponde estão a ser sacudidos
através do mundo. Nas urnas e nas ruas – as duas frentes são democraticamente
legítimas e complementares – os povos dão sinais de que a sonolência hipnótica
induzida pelo entertainment mediático em que se transformou tudo o
que tem a ver com a vida das pessoas é uma arma que também se desgasta,
desmascara e vai perdendo eficácia. Uma faúlha representada por um aumento de
preços, um corte de subsídios sociais, o lançamento de mais um imposto
tornaram-se agora susceptíveis de provocar grandes e vibrantes explosões
sociais. A arbitrariedade e a impunidade do sistema dominante começam a
encontrar barreiras humanas.
Multiplicam-se os focos de
contestação popular em zonas diversificadas do mundo. Mas será um erro
avaliá-los segundo uma bitola única, além de ser profundamente desaconselhável
deixar-nos conduzir pelos conteúdos e sistematizações que brotam da comunicação
social dominante. Esta recorre a métodos padronizados com alguns objectivos
principais: diluir a importância e a legitimidade de acções cívicas através do
empolamento dos fenómenos de violência e que, em última análise, funcionam em
benefício do opressor; misturar razões e motivos para confundir e esconder,
deste modo, a mensagem essencial enviada pelos comportamentos de massas;
associar situações que são liminarmente antagónicas; ou então evitar ligar
circunstâncias e consequências que, sendo diferentes, têm, obviamente, objectivos
convergentes. Por exemplo, tratar as manifestações no Chile contra o
neoliberalismo como irmãs gémeas dos desacatos na Bolívia a favor do
neoliberalismo é tão perverso do ponto de vista informativo como esconder que
os movimentos populares chilenos têm exactamente a mesma motivação que os
resultados das eleições na Argentina dando guia de marcha a Macri, o homem do
FMI.
A única maneira de compreender o
que está a passar-se do ponto de vista global através das grandes movimentações
populares em curso é partir da observação isolada de cada caso para chegar ao
que têm em comum – como indicadores de uma tendência.
Do Chile à Catalunha
Embora em diferentes fases de
maturação, é possível comparar, sem misturar alhos com bugalhos como capricha
em fazer a informação mainstream, várias situações em diferentes
continentes: Chile, Bolívia (e Venezuela), Líbano, Catalunha, Argentina,
Equador, Hong Kong, Honduras, Iraque, Nicarágua.
O que está a passar-se no Chile
tem características objectivas e simbólicas importantíssimas, das quais
ressalta uma rejeição absoluta da ditadura económica neoliberal. O Chile é o
país onde foi aplicada pela primeira vez, já lá vão 46 anos, a ortodoxia
económica neoliberal, a cargo dos agentes da sua escola teórica em Chicago, sob
cobertura da ditadura política fascista do general Augusto Pinochet.
A situação demonstrou que o
neoliberalismo é, de facto, o fascismo económico; desenvolvimentos posteriores
revelaram – como aliás constatou a senhora Thatcher, inspiradora do «novo»
partido parlamentar Iniciativa Liberal – que pode ser compatível com formas
muito controladas e manipuladas de democracia política, desde que sustentadas
pela transformação da comunicação social dominante num aparelho feroz de
propaganda. O que se mantém, em qualquer das situações, são os mecanismos de
ditadura económica através da imposição da ortodoxia do «sistema de mercado».
No Chile não houve uma transição
para a democracia com a saída de Pinochet, mas sim o prolongamento do
pinochetismo travestido de democracia, regime em que se comprometeu – traindo
inexoravelmente a memória do sacrificado Salvador Allende – o Partido
Socialista do Chile, através da ex-presidente Michelle Bachelet.
É contra essa eternização da
escravatura neoliberal que se levantam agora as massas chilenas, quanto a
propaganda disfarçada de informação prefere destacar os comportamentos
violentos para esconder, por exemplo, a gigantesca manifestação pacífica de um
milhão e 200 mil pessoas em Santiago no passado dia 25, que só tem paralelo com
as da Unidade Popular nos anos setenta do século passado. O aumento dos preços
das viagens de metropolitano foi o detonador, a gota que pôs fim à paciência
dos chilenos, que os ricos mais ricos de um dos países mais desiguais do mundo
julgavam eterna.
Na Catalunha não é o
neoliberalismo que está directamente em causa. Mas a incapacidade para se dar
conta da existência de um movimento de milhões de pessoas pela autodeterminação
catalã é comportamento próprio de um Estado centralista e avesso ao
diálogo – como são as estruturas de poder neoliberais.
É evidente que a propósito da
Catalunha, a região mais rica de Espanha, existem razões económicas escondidas
em invocações «constitucionalistas» baratas e em «unidades nacionais» de índole
feudal. Um Estado verdadeiramente democrático não teria dificuldades em dar a
palavra aos catalães – e a outros povos de Espanha – para decidirem sobre o seu
futuro. Mas o Estado que emana de Madrid o seu neofranquismo latente, agora
como sustentáculo da ortodoxia neoliberal, não é capaz de viver com isso. No
entanto, tal como no Chile, há novas realidades que tornam impossível que tudo
continue como até aqui.
Por detrás do autoritarismo do
Estado espanhol está a União Europeia, esse panteão neoliberal que se recusa a
conhecer o que pretendem os catalães mas foi lépido em acolher entidades
secessionistas como a Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Croácia,
Eslovénia; e que inventou outras por sua conta, risco, fraudes e guerras, como
o Kosovo e a Macedónia do Norte.
Do Equador a Hong Kong
Quem seguir os acontecimentos no
Equador e em Hong Kong comodamente instalado em frente do televisor, ainda que
vá manejando o telecomando para ir variando de espaços noticiosos, fica a saber
que os energúmenos latino-americanos são incapazes de aceitar um corte de
subsídios de combustível recomendado pelo FMI e que o corajoso povo asiático
enfrenta destemidamente os sinistros ocupantes chineses.
São bons exemplos de como
funciona a propaganda neoliberal.
No Equador, as populações
levantam-se contra o ressurgimento neoliberal proporcionado pela traição de
Lenin Moreno à política de uma década de avanços sociais e soberanos conduzida
por Rafael Corrêa, de quem foi vice-presidente. Os equatorianos recusam-se,
deste modo, a regressar a um passado de submissão ainda recente.
Em Hong Kong, os «ninjas»
teleguiados de Washington e recorrendo a uma estratégia generalizada de
intimidação actuam para que se mantenha o colonialismo ocidental, que fez do
território um bastião do capitalismo na sua versão neoliberal mais ortodoxa.
Uma vez que o regresso do
território à soberania chinesa é interpretado como uma tentativa para perturbar
a ortodoxia colonialista reinante torna-se fácil entender o que está a
acontecer, sobretudo enquadrando a situação na fase de ataque cerrado contra os
avanços económicos e comerciais chineses conduzido pela administração Trump. Em
Hong Kong, o activismo a soldo de Washington e Londres nada tem a ver com uma
população que, quando chamada a pronunciar-se sobre a administração do
território, vota em massa nas organizações sintonizadas com a soberania
chinesa.
Nas urnas como nas ruas
Na Argentina e na Bolívia os
cidadãos disseram nas urnas o mesmo que os chilenos, equatorianos, hondurenhos
e libaneses expressam nas ruas: a rejeição do neoliberalismo.
A realidade é mais complexa,
naturalmente, mas essa é a mensagem essencial.
Os argentinos não deixaram margem
para dúvidas: aproveitaram a primeira oportunidade eleitoral que lhes surgiu e
puseram fim ao terrorismo neoliberal implantado pela ditadura de Mauricio
Macri, ao serviço do FMI, que em quatro anos arrasou a economia do país
ampliando fenómenos como a pobreza, a submissão, a desigualdade, a
delinquência.
A afinidade entre chilenos e
argentinos é total; o mesmo acontece com os equatorianos e os hondurenhos.
Estes enfrentam corajosamente um regime terrorista nascido de um golpe
patrocinado por Barack Obama e Hillary Clinton e sustentado por sucessivas
eleições fraudulentas as quais, não obstante, têm recebido a chancela de
legitimidade democrática outorgada por delegações da União Europeia.
Na Bolívia, o triunfo de Evo
Morales e a nova rejeição do neoliberalismo foram difíceis num ambiente de
manipulação norte-americana – a embaixada em La Paz foi apanhada a comprar
votos, principalmente em Santa Cruz, tal como já o fizera com deputados da
Macedónia do Norte – que continua após as eleições.
O candidato oficial do
neoliberalismo, o antigo presidente Carlos Mesa, deu o tiro de partida para a
contestação levantando a acusação de «fraude» quando a contagem de votos estava
no início. Dessa suposta fraude nenhuma prova apresentou, porque não houve. Mas
as consequentes arruaças servem para a propaganda mediática disseminar o mote
como uma verdade absoluta, sancionada por «organizações internacionais», as que
se consideram portadoras dos mecanismos de avaliação de legitimidades.
Não é difícil perceber a intenção
manipuladora da comunicação social dominante quando associa os protestos na
Bolívia aos do Chile. No fundo é o mesmo estilo de propaganda que transforma em
grandes manifestações populares pela democracia as arruaças terroristas do
usurpador Juan Guaidó na Venezuela.
Desperta também o povo do Líbano.
Nova sobrecarga de impostos num país avassalado por uma crise económica e
afogado em corrupção e privilégios dos titulares e ex-titulares do poder foi a
gota que fez transbordar a paciência. É um protesto massivo contra um sistema
político que pode ser assimilado a outros como os do Chile, Equador e Honduras,
mas que que combina a ortodoxia neoliberal com um confessionalismo herdado do
domínio colonial – sempre presente. Por isso, as reivindicações populares vão
além da convocação de novas eleições gerais; exigem uma lei eleitoral que deixe
de estar subordinada a quotas de eleitos distribuídas pelas comunidades
étnico-religiosas e estabeleça um sufrágio universal directo e proporcional. É
aí que se fixa o nó do problema, porque nenhum dos protectores coloniais do
Líbano, da França aos Estados Unidos, passando por Israel e Arábia Saudita,
está disposto a aceitar uma transparência democrática que possa traduzir-se,
por exemplo, numa vitória do Hezbollah, como chega a ser vaticinada ainda que a
comunidade xiita não seja maioritária no país. As manifestações de massas
fizeram já cair o presidente, mas a realização de eleições segundo a
metodologia em vigor produzirá um pouco de mais do mesmo. E, para já, de uma
maneira perversa, a Arábia Saudita marcou pontos, porque estava interessada na
queda do actual chefe de Estado.
Os tumultos no Iraque têm
motivações bastante mais ambíguas e enviesadas. Não é difícil arrastar as
massas para as ruas numa situação de crise económica grave decorrente da
invasão, ocupação e desmantelamento do país pelas tropas norte-americanas, a
que se seguiram guerras ainda por resolver. Porém, a concretização das
exigências do sector mais radical e contundente dos manifestantes, a demissão
do primeiro-ministro, seria um favor às pretensões actuais dos Estados Unidos,
que vêem no actual governo um adversário aos seus objectivos de isolamento e
fragilização do Irão.
Povos em acção
Parece inegável que em pontos
muito diferentes do globo há povos que despertam contra a ditadura económica
globalizante do neoliberalismo e as suas trágicas consequências sociais.
Independente de questões específicas de cada caso, começa a desenhar-se uma
tendência popular para abandonar o conformismo e enfrentar Estados tornados autoritários
para poderem impor as soluções económicas únicas, as toleradas pelo «mercado».
Essas acções populares não se
confundem, a não ser no âmbito da estratégia manipuladora da própria propaganda
neoliberal, com arruaças, tumultos e comportamentos terroristas como os que
acontecem na Bolívia, na Venezuela, Hong Kong e Nicarágua, por exemplo, onde se
colocam travões aos mecanismos predadores do «mercado».
O despertar dos povos, nas urnas
ou nas ruas, vem pôr em causa os pilares em que assenta a democracia corrompida
que serve de cobertura à ditadura do «mercado». Quer isto dizer que os povos não
só querem ter voz como começam a exigir que esta seja ouvida e respeitada.
O que nos dizem estes
levantamentos? Que ficar à espera de um neoliberalismo democrático é o mesmo
que aceitar passivamente a canga da submissão perante a selvajaria capitalista.
Realidade que é válida tanto no exterior como no interior da União Europeia.
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