Manuel Carvalho Da Silva*
| Jornal de Notícias | opinião
Quando a troika, municiada por
cabeças neoliberais do nosso burgo, concebeu um "ajustamento" que
assentava na desvalorização do trabalho como terapia que permitiria reduzir os
custos de produção e os preços das exportações, propiciando às empresas ganhos de
competitividade nos mercados internacionais, muitos patrões (e não só)
ter-se-ão regozijado: pensaram que escapavam da crise por entre os pingos da
chuva e consolidavam uma política de baixos salários.
Sabiam que o desemprego e a
desproteção no desemprego obrigariam muita gente a aceitar salários inferiores
aos anteriormente auferidos, mas secundarizaram dois efeitos importantes: i) a
desvalorização que aplaudiam havia de voltar-se contra eles como um bumerangue,
sob a forma de quebras da procura, logo das suas vendas, provocando mais
encerramentos e falências do que previram; ii) a queda dos salários iria
aumentar imenso a emigração, produzindo uma acentuada redução da população
disponível para trabalhar.
A diminuição da população ativa,
de facto ocorrida, está na origem de uma nova manifestação do efeito
bumerangue. A partir de meados de 2013 o nível de emprego começou a recuperar e
o desemprego a cair. Mas o novo emprego concentrou-se fundamentalmente em
setores exportadores caracterizados por baixos salários, por precariedade e
baixa produtividade; em atividades bastante ligadas a um turismo que concorre à
escala internacional pelos preços baixos. A desvalorização salarial favoreceu
uma alteração de estrutura na economia portuguesa que a pode trancar num padrão
de baixos rendimentos.
O crescimento do emprego e a
diminuição da população ativa propiciaram taxas de desemprego relativamente
baixas. Neste contexto, são cada vez mais audíveis as queixas dos patrões e do
próprio Estado quanto a dificuldades de recrutamento de trabalhadores,
mantendo-se os baixos níveis salariais praticados. Todos os dias ouvimos falar
de concursos para médicos que ficam desertos, de professores que, se aceitarem
a colocação que lhes calha, ainda têm de pagar para trabalhar, de operários
qualificados que escasseiam e mesmo de trabalho indiferenciado que não abunda.
Trabalhar onde existe procura de
trabalho tornou-se mais caro. A especulação imobiliária atirou para níveis
incomportáveis rendas e prestações de habitação e as periferias das grandes
cidades são cada vez mais distantes e onerosas. Entretanto, melhores
oportunidades surgem noutras latitudes à medida que o desnível entre os
salários praticados em Portugal e na maioria dos países da União Europeia se
vai acentuando.
São malhas tecidas pelo
"ajustamento", nós cegos que vai ser muito difícil desfazer com um
Estado obcecado em obter excedentes orçamentais e patrões habituados a
"poupar" nos salários. O baixo valor do SMN, o continuado bloqueio a
uma negociação coletiva de harmonização no progresso e enriquecedora de
conteúdos e os baixos salários na Administração Pública são três desses nós
cegos que atrofiam o nosso desenvolvimento.
Se a estes entraves se vier
juntar um acordo de política de rendimentos fechado na agenda de empresários
conservadores, com contrapartidas ou negócios de interesse imediato, mas
despido de respostas estratégicas na saúde, na educação e formação, nos transportes,
o perigo iminente é o retrocesso.
*Investigador e professor
universitário
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