ENTREVISTA
Joana Amaral Dias, autora do
'Psicopatas Portugueses', é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
Psicóloga e comentadora televisiva,
Joana Amaral Dias é também conhecida pelos livros que escreve.
O seu mais recente trabalho, 'Psicopatas
Portugueses', conta a história de 13 psicopatas que, segundo a autora, deviam "figurar
na galeria de horrores de qualquer país".
No entanto, não são muito
conhecidos: ou porque se trata de crimes que ocorreram noutros séculos ou
porque as autoridades quiseram "varrer para debaixo do tapete".
O interessante desta obra,
explicou Joana Amaral Dias, é que aborda a questão do ponto de vista da
psicologia forense. Mais do que contar a história destes crimes, a
especialista descreve e explica os processos mentais que estiveram na sua
origem.
As vendas, contou, estão a ser "espetaculares"
com o livro a chegar já à sua quinta edição em apenas cinco meses e "é
possível" que a caminho esteja já um segundo volume com mais
histórias de psicopatas afinal, disse, "material não falta".
E não falta porque o povo
português, ao contrário do que o Estado Novo fez crer, não é assim de "tão
brandos costumes".
Como surgiu a ideia para escrever
este livro?
Surgiu de uma
forma super natural. Eu faço crónica criminal e a certa altura
precisei de consultar informação sobre um caso para mostrar no programa e
dei-me conta que não havia nenhum livro sobre os grandes casos de homicidas em
Portugal que fosse escrito por alguém da psicologia ou da psiquiatria. Fiquei
muito espantada ao descobrir isto e, havendo esse vazio, achei que fazia
sentido fazer esse estudo.
Quanto tempo precisou para
concluir o livro?
A investigação é sempre a parte
mais morosa. Havia casos, os mais badalados, sobre os quais havia muita
informação, como foi o caso do Rei Ghob, mas depois havia uma série de
casos com muito pouca informação. A parte da investigação demorou mais de um
ano e depois mais cerca de um ano para escrever.
Por que razão escolheu estes 13
casos?
São casos que ilustram bem
quadros mentais específicos e essa é uma das preocupações deste livro: mostrar
casos com um contexto clínico de funcionamento mental muito diferente. A Luísa
de Jesus, a Maria José e o João Barbosa não estavam tão documentados, precisei
de fazer muita investigação, mas depois havia o caso do cabo Antunes que tinha
sido varrido para debaixo do tapete, sendo que este é um caso muitíssimo
ilustrativo daquilo que é um assassino aniquilador, que é o tipo de assassino
que estamos habituados a ver nos Estados Unidos, mas que também há em
Portugal.
E qual foi o seu objetivo ao
escrever este livro?
São vários. Primeiro, isto é um
livro de divulgação científica para o grande público, para as pessoas que não
são da área para, justamente, poder mostrar a quem se interessa o que
pode estar por trás destas histórias. Refiro-me não só ao tipo de funcionamento
mental de alguém que tira a vida a outra pessoa, mas também ao contexto sociocultural que
pode estar na base de tudo isto e daí este ser um livro que conta histórias
reais.
Não há ficção?
Nenhum facto é ficcionado. O
livro conta como é que tudo se passou e que leitura é que isso tem do ponto de
vista psicológico. É uma obra muito centrada naquilo que é o funcionamento
mental do homicida e menos centrada na vítima, porque há essa curiosidade
natural de as pessoas de tentarem perceber que mecanismos são esses e, por
outro lado, também para desmistificar aquela ideia que está muito difundida
sobre o homicida que ‘era tão bom vizinho’ e que ‘não havia sinais de que
pudesse fazer uma coisa destas’. Isso não é verdade.
Está a dizer que são dados sinais
à comunidade?
Sim, a maior parte destas pessoas psicóticas e
psicopatas dão sinais importantes que devem funcionar como alertas à
comunidade. Se as pessoas estiverem um pouco mais atentas vão conseguir
descortinar estes sinais. Não digo que vão conseguir prevenir determinadas
situações, mas estarão certamente mais alertas.
O que a surpreendeu mais: a
perversidade dos crimes ou o facto de estes crimes não serem do conhecimento do
público?
Foi mesmo o facto de alguns
destes crimes terem sido completamente esquecidos pela sociedade portuguesa.
São crimes que deveriam figurar na galeria de horrores de qualquer país por
serem tão marcantes, como são os do João Barbosa ou o da Luísa de Jesus que
ombreiam com os piores homicidas da história da Humanidade e, no entanto,
desapareceram dos anais da nossa criminologia e isso surpreendeu-me
bastante.
Porquê?
Porque não deixa de ser estranho
esta nossa existência autoformatar-nos como um país de brandos
costumes e de gente mole e meiga, mas que se calhar não é bem assim.
Estatisticamente temos tantos homicídios como outro país qualquer. Há,
inclusive, um tipo de homicídio particular onde os números são negros, que é o
da violência doméstica. Se compararmos com Espanha, que tem quatro vezes mais
população, nós temos muito mais homicídios de mulheres. Este é um livro de
casos, não é um livro estatístico, mas em termos estatísticos Portugal não é
diferente e não é de brandos costumes, como o Estado Novo fez acreditar para,
assim, controlar melhor a população.
A sociedade portuguesa tende a
esconder os distúrbios mentais?
Considero pelo menos que há pouca
discussão em torno disto. Por exemplo, o número de suicídios entre jovens
portugueses foi o mais elevado de sempre. Este é um número que nos devia
alertar a todos porque é uma questão de saúde pública muito importante que
devia gerar uma tomada de medidas, mas isto parece passar entre os pingos da
chuva ao não ser devidamente debatido e, não chegando à arena pública e à
discussão partilhada, acaba também por ser esquecido das medidas políticas. A
mim parece-me que há uma certa tendência a amenizar e a adocicar estas
situações e isso não é bom, nem positivo. Acho que nem tanto ao mar, nem tanto
à terra. Nem um dramatismo e sensacionalismo do crime, nem o contrário. Varrer
o lixo para debaixo do tapete nunca foi bom conselheiro. Os órgãos de
comunicação social têm uma diretriz que os impede de noticiar
suicídios.
Acha que faz sentido?
Tenho dúvidas. Esse acordo é
definido por se achar que todos os suicídios têm um potencial contagiante. É
precisa alguma cautela a dar algumas notícias, mas isso não diz respeito só ao
suicídio. Na verdade, o mesmo se pode dizer da violência doméstica. É verdade
que pode haver um efeito de contágio, mas não é totalmente verdade e esse
argumento não deve levar a um estado de censura.
Importa fazer uma discussão
pública do tema.
Claro. Dar a notícia de uma forma
vazia é que é perigoso. Quando surgiu o caso da baleia azul, o tema foi
debatido na comunicação social sob o pretexto de que era necessário alertar os
pais para os perigos da internet. O tema abriu noticiários e ainda
bem que assim foi. Esse é um bom exemplo de como essa regra não pode ser
seguida de uma forma tão cega sob pena de o feitiço se virar contra o
feiticeiro.
Regressemos ao tema do livro. Como é
que podemos descrever uma pessoa que é psicopata?
A psicopatia tem várias matrizes
e assume formas diferentes, mas de uma maneira geral um psicopata é uma pessoa
que tem zero empatia emocional pelo outro, tem zero capacidade de
solidariedade, de compaixão e de amor ao outro, mas ao mesmo tempo é capaz de ter
uma enorme empatia cognitiva. Ou seja: consegue ler muito bem o que é que o
interlocutor quer ouvir, o que precisa, quais os seus sonhos e os seus medos e
isso é uma pessoa muito perigosa.
Perigosa em que medida?
Perigosa na medida em que
consegue intuir facilmente aquilo que o pode levar a manipular, a
instrumentalizar e a manietar o outro. Nem todos os psicopatas são homicidas,
mas muitos homicidas são de facto psicopatas.
Do ponto de vista físico do
cérebro há alguma alteração que justifique o desenvolvimento de uma psicopatia?
Há uma velha discussão na
comunidade científica entre o que é a influência do meio e da genética. O que
sabemos é que a influência da genética existe, mas não é absoluta, por isso é
que em gémeos monozigóticos um pode ser psicopata e o outro não,
porque basta às vezes pequenas diferenças no meio e no tratamento para fazer o
psicopata.
Quando refere “diferenças no
meio” refere-se a quê concretamente?
Refiro-me a uma educação pobre e
errada, a uma dificuldade precoce na observação de regras, no sadismo com
animais em crianças relativamente pequenas. Se houvesse um pouco mais de
atenção a esses sinais da saúde mental, se calhar podíamos prevenir algumas
dessas situações ou amenizá-las. Há efetivamente uma carga
genética, mas o meio é decisivo na formação da psicopatia.
Podemos dizer que, pelo menos no
que diz respeito à psicopatia, as aparências enganam?
Sim, claro. Há um desconhecimento
muito grande e alguma falta de consciência cívica porque há sinais que são
evidentes e aos quais as pessoas devem estar alertas. O Rei Ghob passeava-se
com adolescentes no seu carro e comprava-lhes presentes. A comunidade observava
isto e devia ter percebido que não é um comportamento normal. Por outro lado,
há sinais mais subtis até porque os psicopatas com a empatia cognitiva muito
elevada muitas vezes são grandes sedutores e conseguem levar a água ao
seu moinho.
Disse que nem todos os psicopatas
são homicidas. Onde é que andam então estes psicopatas?
Os psicopatas estão presentes em
muitos setores da sociedade. Há psicopatas na banca e nas mais altas
esferas da política. A maior parte dos psicopatas, aliás, estão muitíssimo bem
integrados na sociedade justamente devido a essas características, porque
socialmente são muito ágeis e altamente camaleónicos. Por isso
era bom que as pessoas desconfiassem de quem é extremamente simpático, porque
numa fase inicial tanto altruísmo, benevolência e compreensão é de desconfiar.
Quando a esmola é grande, o santo
desconfia’, é isso?
Sim, todos os sinais que não são
razoáveis, dentro daquilo que é o bom senso, devem deixar as pessoas alerta.
Por exemplo, no que diz respeito a pedófilos, não é normal um adulto ter
uma extrema adoração pelas crianças dos outros. Tudo o que são sinais que fogem
ao bom senso vale a pena olhar duas vezes e é preciso responsabilizar a
comunidade também. Aliás, é por isso que a violência doméstica se torna um
crime público, justamente para responsabilizar a comunidade. E com a psicopatia
é a mesma coisa, porque os psicopatas estão muitíssimo bem integrados e fazem
parte do quotidiano de muitas pessoas. Eu recebo pessoas no meu consultório que
foram vítimas de psicopatas que entraram nas suas vidas e levaram-lhes tudo –
energia, boa-vontade, dinheiro – deixando-as exauridas, sem recursos materiais,
sociais e familiares.
Como é feita a recuperação de uma
vítima de um psicopata?
É complicado, porque muitas vezes
as vítimas culpam-se a elas próprias por se terem deixado enganar. A maior
parte das vítimas são pessoas bem-sucedidas, aliás, para terem sido alvo da
atenção de um psicopata é porque alguma coisa de importante ou valioso tinham,
porque a perspetiva de um psicopata é sempre utilitarista. E as
vítimas ficam desapossadas de uma série de recursos, incluindo a sua autoestima,
e reconstruir essa autoconfiança e a confiança nos outros é
complicado.
Pode dizer-se que a sociedade atual favorece
o surgimento de psicopatas?
Há pessoas que podem interpretar
essa pergunta como populista, mas eu acho que ela merece reflexão. Há um dado
estatístico que é: não existiram psicopatas antes do advento da modernidade. O
psicopata que mata por prazer ou por sadismo é efetivamente um
produto e fenómeno da contemporaneidade. Agora, nós, como sociedade, temos de
nos interrogar sobre que tipo de civilização é que construímos para haver este
subproduto que é a psicopatia. A sugestão da sua pergunta é pertinente e merece
reflexão. Porque é que acontece isto com as sociedades industriais? Porque efetivamente há
uma série de condicionantes nas nossas comunidades que favorecem isso.
A que condicionantes se refere?
À perda de laços sociais. Nós
passámos de ser quatro ou cinco gerações a conviver na mesma casa para ter
famílias monoparentais ou até sem filhos. As famílias estão cada vez
mais reduzidas, há cada vez menos espaço de socialização e de capacidade de
convívio. Os ritmos de trabalho estão cada vez mais exigentes com horários
desregulados, sem tempo para as crianças que necessitam de tempo e
disponibilidade por parte dos pais, nomeadamente nesta questão da empatia, do
outro e da observação das regras. Há uma série muito longa de condicionantes da
nossa sociedade que podem efetivamente favorecer a psicopatia.
Por que motivo o caso do
cabo Antunes foi abafado?
Por ser um militar da GNR,
porque na altura as pessoas que estavam no poder – Cavaco Silva como
primeiro-ministro e Mário Soares como Presidente da República – sentiram que
isso beliscava a honra e a reputação da GNR. O cabo Antunes tem todas as
características de um aniquilador, porque ele prepara o ataque metodicamente.
Não só tinha disponibilidade de armas, como ainda foi adquirir mais numa loja
na Baixa de Lisboa. Ele preparou tudo ao pormenor, gizou um plano socorrido dos
seus conhecimentos bélicos e disparou sobre 300 pessoas. Matou algumas e
suicidou-se no fim, o que é típico dos aniquiladores.
Além do cabo Antunes temos também
o cabo Costa. São dois elementos da GNR em 13 casos. Isto diz-nos
alguma coisa ou é só uma coincidência?
Penso que é uma mera
coincidência, se bem que nós sabemos – e aí não é coincidência – que existem
muitos problemas de saúde mental nas forças policiais. O número de suicídios é
muito elevado, não só pela disponibilidade do recurso à arma de fogo, mas
também porque é uma profissão com um desgaste a nível psicológico e social
muito acentuado. E essa tem sido uma das minhas batalhas: que as forças
policiais possam ter as terapêuticas a nível da saúde mental que precisam para
o bem da comunidade, porque eles são a linha da frente para nos proteger. É bom
que se reflita sobre a forma como estas forças são tratadas e muitas
vezes abandonadas em situações delicadas. É muito difícil estar na linha da
frente, lidar com cadáveres, crimes, disparos… isto deixa cicatrizes
muito sujas a qualquer pessoa.
As forças de segurança estão
preparadas para lidar com psicopatas?
Elas têm alguma formação, mas o
que eu acho que deveria acontecer – como já acontece em muitos países da Europa
– é apertar-se a malha do recrutamento e da seleção para estas forças
porque nós sabemos que as motivações para procurar este trabalho podem não ser
as melhores. E depois, claro, tem que haver um acompanhamento mais próximo, uma
resposta consistente e sistemática aos seus problemas. A verdade é que as
forças de segurança precisam de apoio e atenção, pois têm sido alvo de ataques
cada vez mais frequentes, têm morrido mais ao serviço… isto em si
mesmo justificaria uma resposta em particular, mas recordo que há seis meses o
ministro da Administração Interna negou estes números. Não se pode resolver um
problema enfiando a cabeça na areia.
O que diz da nossa sociedade o
estado atual em que se encontram as nossas forças de segurança?
Que há ainda um estigma em que
mais facilmente se entende que as forças policiais sejam criticadas pelo abuso
de autoridade do que apoiadas. Tem muito a ver com esse conceito, mas eu
defendo que a questão do abuso da autoridade está diretamente relacionada
com a falta de apoio psicológico e psiquiátrico. E há a questão do bom senso:
não se pode por as forças policiais acima de qualquer suspeita porque também
erram, mas também não as podemos deixar ao abandono. Muitos abusos policiais
acontecem quando os elementos das forças de segurança estão já em
descompensação e se fossem atendidos na devida altura e acompanhados como deve
ser, possivelmente esses abusos não aconteceriam.
Patrícia Martins Carvalho | Notícias
ao Minuto | Imagem: © Global Imagens
Leia em Notícias ao Minuto:
Sem comentários:
Enviar um comentário