domingo, 24 de novembro de 2019

Portugal | "Há psicopatas na banca e nas mais altas esferas da política"


ENTREVISTA

Joana Amaral Dias, autora do 'Psicopatas Portugueses', é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

Psicóloga e comentadora televisiva, Joana Amaral Dias é também conhecida pelos livros que escreve.

O seu mais recente trabalho, 'Psicopatas Portugueses', conta a história de 13 psicopatas que, segundo a autora, deviam "figurar na galeria de horrores de qualquer país".

No entanto, não são muito conhecidos: ou porque se trata de crimes que ocorreram noutros séculos ou porque as autoridades quiseram "varrer para debaixo do tapete".

O interessante desta obra, explicou Joana Amaral Dias, é que aborda a questão do ponto de vista da psicologia forense. Mais do que contar a história destes crimes, a especialista descreve e explica os processos mentais que estiveram na sua origem.

As vendas, contou, estão a ser "espetaculares" com o livro a chegar já à sua quinta edição em apenas cinco meses e "é possível" que a caminho esteja já um segundo volume com mais histórias de psicopatas afinal, disse, "material não falta".

E não falta porque o povo português, ao contrário do que o Estado Novo fez crer, não é assim de "tão brandos costumes".

Como surgiu a ideia para escrever este livro? 

Surgiu de uma forma super natural. Eu faço crónica criminal e a certa altura precisei de consultar informação sobre um caso para mostrar no programa e dei-me conta que não havia nenhum livro sobre os grandes casos de homicidas em Portugal que fosse escrito por alguém da psicologia ou da psiquiatria. Fiquei muito espantada ao descobrir isto e, havendo esse vazio, achei que fazia sentido fazer esse estudo.  

Quanto tempo precisou para concluir o livro? 

A investigação é sempre a parte mais morosa. Havia casos, os mais badalados, sobre os quais havia muita informação, como foi o caso do Rei Ghob, mas depois havia uma série de casos com muito pouca informação. A parte da investigação demorou mais de um ano e depois mais cerca de um ano para escrever.  

Por que razão escolheu estes 13 casos? 

São casos que ilustram bem quadros mentais específicos e essa é uma das preocupações deste livro: mostrar casos com um contexto clínico de funcionamento mental muito diferente. A Luísa de Jesus, a Maria José e o João Barbosa não estavam tão documentados, precisei de fazer muita investigação, mas depois havia o caso do cabo Antunes que tinha sido varrido para debaixo do tapete, sendo que este é um caso muitíssimo ilustrativo daquilo que é um assassino aniquilador, que é o tipo de assassino que estamos habituados a ver nos Estados Unidos, mas que também há em Portugal. 

E qual foi o seu objetivo ao escrever este livro? 

São vários. Primeiro, isto é um livro de divulgação científica para o grande público, para as pessoas que não são da área para, justamente, poder mostrar a quem se interessa o que pode estar por trás destas histórias. Refiro-me não só ao tipo de funcionamento mental de alguém que tira a vida a outra pessoa, mas também ao contexto sociocultural que pode estar na base de tudo isto e daí este ser um livro que conta histórias reais. 

Não há ficção? 

Nenhum facto é ficcionado. O livro conta como é que tudo se passou e que leitura é que isso tem do ponto de vista psicológico. É uma obra muito centrada naquilo que é o funcionamento mental do homicida e menos centrada na vítima, porque há essa curiosidade natural de as pessoas de tentarem perceber que mecanismos são esses e, por outro lado, também para desmistificar aquela ideia que está muito difundida sobre o homicida que ‘era tão bom vizinho’ e que ‘não havia sinais de que pudesse fazer uma coisa destas’. Isso não é verdade. 


Está a dizer que são dados sinais à comunidade? 

Sim, a maior parte destas pessoas psicóticas e psicopatas dão sinais importantes que devem funcionar como alertas à comunidade. Se as pessoas estiverem um pouco mais atentas vão conseguir descortinar estes sinais. Não digo que vão conseguir prevenir determinadas situações, mas estarão certamente mais alertas. 

O que a surpreendeu mais: a perversidade dos crimes ou o facto de estes crimes não serem do conhecimento do público? 

Foi mesmo o facto de alguns destes crimes terem sido completamente esquecidos pela sociedade portuguesa. São crimes que deveriam figurar na galeria de horrores de qualquer país por serem tão marcantes, como são os do João Barbosa ou o da Luísa de Jesus que ombreiam com os piores homicidas da história da Humanidade e, no entanto, desapareceram dos anais da nossa criminologia e isso surpreendeu-me bastante.  

Porquê? 

Porque não deixa de ser estranho esta nossa existência autoformatar-nos como um país de brandos costumes e de gente mole e meiga, mas que se calhar não é bem assim. Estatisticamente temos tantos homicídios como outro país qualquer. Há, inclusive, um tipo de homicídio particular onde os números são negros, que é o da violência doméstica. Se compararmos com Espanha, que tem quatro vezes mais população, nós temos muito mais homicídios de mulheres. Este é um livro de casos, não é um livro estatístico, mas em termos estatísticos Portugal não é diferente e não é de brandos costumes, como o Estado Novo fez acreditar para, assim, controlar melhor a população.  

A sociedade portuguesa tende a esconder os distúrbios mentais? 

Considero pelo menos que há pouca discussão em torno disto. Por exemplo, o número de suicídios entre jovens portugueses foi o mais elevado de sempre. Este é um número que nos devia alertar a todos porque é uma questão de saúde pública muito importante que devia gerar uma tomada de medidas, mas isto parece passar entre os pingos da chuva ao não ser devidamente debatido e, não chegando à arena pública e à discussão partilhada, acaba também por ser esquecido das medidas políticas. A mim parece-me que há uma certa tendência a amenizar e a adocicar estas situações e isso não é bom, nem positivo. Acho que nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem um dramatismo e sensacionalismo do crime, nem o contrário. Varrer o lixo para debaixo do tapete nunca foi bom conselheiro. Os órgãos de comunicação social têm uma diretriz que os impede de noticiar suicídios.

Acha que faz sentido? 

Tenho dúvidas. Esse acordo é definido por se achar que todos os suicídios têm um potencial contagiante. É precisa alguma cautela a dar algumas notícias, mas isso não diz respeito só ao suicídio. Na verdade, o mesmo se pode dizer da violência doméstica. É verdade que pode haver um efeito de contágio, mas não é totalmente verdade e esse argumento não deve levar a um estado de censura.

Importa fazer uma discussão pública do tema. 

Claro. Dar a notícia de uma forma vazia é que é perigoso. Quando surgiu o caso da baleia azul, o tema foi debatido na comunicação social sob o pretexto de que era necessário alertar os pais para os perigos da internet. O tema abriu noticiários e ainda bem que assim foi. Esse é um bom exemplo de como essa regra não pode ser seguida de uma forma tão cega sob pena de o feitiço se virar contra o feiticeiro. 

Regressemos ao tema do livro. Como é que podemos descrever uma pessoa que é psicopata? 

A psicopatia tem várias matrizes e assume formas diferentes, mas de uma maneira geral um psicopata é uma pessoa que tem zero empatia emocional pelo outro, tem zero capacidade de solidariedade, de compaixão e de amor ao outro, mas ao mesmo tempo é capaz de ter uma enorme empatia cognitiva. Ou seja: consegue ler muito bem o que é que o interlocutor quer ouvir, o que precisa, quais os seus sonhos e os seus medos e isso é uma pessoa muito perigosa. 

Perigosa em que medida? 

Perigosa na medida em que consegue intuir facilmente aquilo que o pode levar a manipular, a instrumentalizar e a manietar o outro. Nem todos os psicopatas são homicidas, mas muitos homicidas são de facto psicopatas.
  
Do ponto de vista físico do cérebro há alguma alteração que justifique o desenvolvimento de uma psicopatia? 

Há uma velha discussão na comunidade científica entre o que é a influência do meio e da genética. O que sabemos é que a influência da genética existe, mas não é absoluta, por isso é que em gémeos monozigóticos um pode ser psicopata e o outro não, porque basta às vezes pequenas diferenças no meio e no tratamento para fazer o psicopata. 

Quando refere “diferenças no meio” refere-se a quê concretamente? 

Refiro-me a uma educação pobre e errada, a uma dificuldade precoce na observação de regras, no sadismo com animais em crianças relativamente pequenas. Se houvesse um pouco mais de atenção a esses sinais da saúde mental, se calhar podíamos prevenir algumas dessas situações ou amenizá-las. Há efetivamente uma carga genética, mas o meio é decisivo na formação da psicopatia. 

Podemos dizer que, pelo menos no que diz respeito à psicopatia, as aparências enganam? 

Sim, claro. Há um desconhecimento muito grande e alguma falta de consciência cívica porque há sinais que são evidentes e aos quais as pessoas devem estar alertas. O Rei Ghob passeava-se com adolescentes no seu carro e comprava-lhes presentes. A comunidade observava isto e devia ter percebido que não é um comportamento normal. Por outro lado, há sinais mais subtis até porque os psicopatas com a empatia cognitiva muito elevada muitas vezes são grandes sedutores e conseguem levar a água ao seu moinho.   

Disse que nem todos os psicopatas são homicidas. Onde é que andam então estes psicopatas? 

Os psicopatas estão presentes em muitos setores da sociedade. Há psicopatas na banca e nas mais altas esferas da política. A maior parte dos psicopatas, aliás, estão muitíssimo bem integrados na sociedade justamente devido a essas características, porque socialmente são muito ágeis e altamente camaleónicos. Por isso era bom que as pessoas desconfiassem de quem é extremamente simpático, porque numa fase inicial tanto altruísmo, benevolência e compreensão é de desconfiar. 

Quando a esmola é grande, o santo desconfia’, é isso? 

Sim, todos os sinais que não são razoáveis, dentro daquilo que é o bom senso, devem deixar as pessoas alerta. Por exemplo, no que diz respeito a pedófilos, não é normal um adulto ter uma extrema adoração pelas crianças dos outros. Tudo o que são sinais que fogem ao bom senso vale a pena olhar duas vezes e é preciso responsabilizar a comunidade também. Aliás, é por isso que a violência doméstica se torna um crime público, justamente para responsabilizar a comunidade. E com a psicopatia é a mesma coisa, porque os psicopatas estão muitíssimo bem integrados e fazem parte do quotidiano de muitas pessoas. Eu recebo pessoas no meu consultório que foram vítimas de psicopatas que entraram nas suas vidas e levaram-lhes tudo – energia, boa-vontade, dinheiro – deixando-as exauridas, sem recursos materiais, sociais e familiares.

Como é feita a recuperação de uma vítima de um psicopata? 

É complicado, porque muitas vezes as vítimas culpam-se a elas próprias por se terem deixado enganar. A maior parte das vítimas são pessoas bem-sucedidas, aliás, para terem sido alvo da atenção de um psicopata é porque alguma coisa de importante ou valioso tinham, porque a perspetiva de um psicopata é sempre utilitarista. E as vítimas ficam desapossadas de uma série de recursos, incluindo a sua autoestima, e reconstruir essa autoconfiança e a confiança nos outros é complicado. 

Pode dizer-se que a sociedade atual favorece o surgimento de psicopatas?  

Há pessoas que podem interpretar essa pergunta como populista, mas eu acho que ela merece reflexão. Há um dado estatístico que é: não existiram psicopatas antes do advento da modernidade. O psicopata que mata por prazer ou por sadismo é efetivamente um produto e fenómeno da contemporaneidade. Agora, nós, como sociedade, temos de nos interrogar sobre que tipo de civilização é que construímos para haver este subproduto que é a psicopatia. A sugestão da sua pergunta é pertinente e merece reflexão. Porque é que acontece isto com as sociedades industriais? Porque efetivamente há uma série de condicionantes nas nossas comunidades que favorecem isso. 

A que condicionantes se refere? 

À perda de laços sociais. Nós passámos de ser quatro ou cinco gerações a conviver na mesma casa para ter famílias monoparentais ou até sem filhos. As famílias estão cada vez mais reduzidas, há cada vez menos espaço de socialização e de capacidade de convívio. Os ritmos de trabalho estão cada vez mais exigentes com horários desregulados, sem tempo para as crianças que necessitam de tempo e disponibilidade por parte dos pais, nomeadamente nesta questão da empatia, do outro e da observação das regras. Há uma série muito longa de condicionantes da nossa sociedade que podem efetivamente favorecer a psicopatia.  

Por que motivo o caso do cabo Antunes foi abafado? 

Por ser um militar da GNR, porque na altura as pessoas que estavam no poder – Cavaco Silva como primeiro-ministro e Mário Soares como Presidente da República – sentiram que isso beliscava a honra e a reputação da GNR. O cabo Antunes tem todas as características de um aniquilador, porque ele prepara o ataque metodicamente. Não só tinha disponibilidade de armas, como ainda foi adquirir mais numa loja na Baixa de Lisboa. Ele preparou tudo ao pormenor, gizou um plano socorrido dos seus conhecimentos bélicos e disparou sobre 300 pessoas. Matou algumas e suicidou-se no fim, o que é típico dos aniquiladores. 

Além do cabo Antunes temos também o cabo Costa. São dois elementos da GNR em 13 casos. Isto diz-nos alguma coisa ou é só uma coincidência? 

Penso que é uma mera coincidência, se bem que nós sabemos – e aí não é coincidência – que existem muitos problemas de saúde mental nas forças policiais. O número de suicídios é muito elevado, não só pela disponibilidade do recurso à arma de fogo, mas também porque é uma profissão com um desgaste a nível psicológico e social muito acentuado. E essa tem sido uma das minhas batalhas: que as forças policiais possam ter as terapêuticas a nível da saúde mental que precisam para o bem da comunidade, porque eles são a linha da frente para nos proteger. É bom que se reflita sobre a forma como estas forças são tratadas e muitas vezes abandonadas em situações delicadas. É muito difícil estar na linha da frente, lidar com cadáveres, crimes, disparos… isto deixa cicatrizes muito sujas a qualquer pessoa. 

As forças de segurança estão preparadas para lidar com psicopatas? 

Elas têm alguma formação, mas o que eu acho que deveria acontecer – como já acontece em muitos países da Europa – é apertar-se a malha do recrutamento e da seleção para estas forças porque nós sabemos que as motivações para procurar este trabalho podem não ser as melhores. E depois, claro, tem que haver um acompanhamento mais próximo, uma resposta consistente e sistemática aos seus problemas. A verdade é que as forças de segurança precisam de apoio e atenção, pois têm sido alvo de ataques cada vez mais frequentes, têm morrido mais ao serviço… isto em si mesmo justificaria uma resposta em particular, mas recordo que há seis meses o ministro da Administração Interna negou estes números. Não se pode resolver um problema enfiando a cabeça na areia.  

O que diz da nossa sociedade o estado atual em que se encontram as nossas forças de segurança? 

Que há ainda um estigma em que mais facilmente se entende que as forças policiais sejam criticadas pelo abuso de autoridade do que apoiadas. Tem muito a ver com esse conceito, mas eu defendo que a questão do abuso da autoridade está diretamente relacionada com a falta de apoio psicológico e psiquiátrico. E há a questão do bom senso: não se pode por as forças policiais acima de qualquer suspeita porque também erram, mas também não as podemos deixar ao abandono. Muitos abusos policiais acontecem quando os elementos das forças de segurança estão já em descompensação e se fossem atendidos na devida altura e acompanhados como deve ser, possivelmente esses abusos não aconteceriam.

Patrícia Martins Carvalho | Notícias ao Minuto | Imagem: © Global Imagens

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