“Senti nojo do assalto de André
Ventura à manifestação”, diz o ex-dirigente sindical da PSP que denunciou
racismo nas polícias
Manuel Morais, ex-vice-presidente
do maior sindicato da PSP, esteve na manifestação dos polícias, mas a
trabalhar. Afasta-se do Movimento Zero, cujo anonimato serve apenas para “os
responsáveis se desresponsabilizarem”, e está preocupado com o que aí vem
Terem passado cinco dias* desde a
manifestação de polícias não significa que ela tenha acabado. Depois de as
autoridades terem revelado preocupações com a
infiltração do Chega! no Movimento 0 (M0), que ficou com o papel principal
do protesto organizado pelos sindicatos da PSP e da GNR, agora é Manuel Morais
a sublinhar o alarme. Durante 30 anos vice-presidente da ASPP (Associação
Sindical dos Profissionais da Polícia), o maior sindicato da classe, demitiu-se
no ano passado após ter alertado, numa tese de mestrado, para a existência de
racismo nas polícias. Desta vez, Manuel Morais esteve na manifestação, mas a
trabalhar, o que lhe permitiu ver o protesto de fora. “Senti nojo. Houve um
assalto de Ventura à manifestação, o que não é admiração para ninguém atento”,
frisa ao Expresso. “Se este é o caminho, preocupa-me muito.”
Instado a comentar a notícia do
Expresso sobre as ideias do Chega! estarem a ser bem recebidas entre muitos
elementos da PSP e da GNR, muitos deles parte do M0, Manuel Morais não mostra
surpresa. “Claro que estão. Os polícias sentem-se empolgados com estas ideias,
que vão passando.” São elas “castigar mais quem comete um crime, culpar
imigrantes, são as ideias que já todos conhecem”, elenca. E André Ventura
“aproveita isto muito bem”. Manuel Morais vai pontuando a conversa com a frase:
“falo apenas na condição de cidadão atento e preocupado”.
Os responsáveis pelo M0, que
falam sempre de forma anónima, recusam a ideia de que são extremistas, assim
como Ventura recusa colar-se a eles — diz que não sabe quem são. Porém, lembra
Manuel Morais, “quando na manifestação apareceu o Telmo Correia [deputado do
CDS], ninguém ligou. Quando apareceu o André Ventura, que nunca fez nada na
vida, parecia que tinha chegado Deus.” O deputado único do Chega! esforçou-se
por dizer que tudo foi “espontâneo”, mas há quem não acredite. “Ele tinha
avisado que ia lá estar, era mais do que óbvio. Como é que os sindicatos não
perceberam que ia acontecer?”, pergunta o ex-sindicalista. Alguns dos
responsáveis até reagiram, como César Nogueira, presidente da Associação dos
Profissionais da Guarda, que considerou “um erro” Ventura ter tomado a
dianteira “numa manifestação apartidária”. Para Morais, “reagir depois de
acontecer é tarde demais”.
ALGUNS AGENTES “NEM SABEM NO QUE
SE ESTÃO A METER”
No sábado, o Expresso noticiou
que a relação entre o M0 e o Chega! é tida pelas forças de segurança como
“muito próxima”. Alguns dos líderes informais do M0 estão ligados ao partido de
André Ventura — pelo menos um deles fez parte das listas do Chega! nas últimas
legislativas — ou são membros da chamada direita nacionalista.
A colagem das forças policiais às
ideias ultranacionalistas e de extrema-direita não é uma evidência para Manuel
Morais, que estudou a atuação policial em zonas urbanas sensíveis, no âmbito da
tese de mestrado acima citada. Também antropólogo, o agente acredita que muitos
colegas “nem sabem no que se estão a meter” ao juntar-se ao M0 e ao aceitar a
ligação ao Chega!. Estão longe de movimentos radicais ou de ideias extremistas.
Sentem-se, simplesmente, “atraídos pela promessa de mais poder”. Outros não só
estão próximos dessas ideias como parecem estar a ‘profissionalizar-se’. “São
mais discretos”, explica Manuel Morais. “Antes ia-se ao perfil de Facebook
deles e viam-se logo símbolos, frases nacionalistas. Agora têm cuidado. Há
muitos apelos [dos responsáveis do M0] à discrição. Mas a ideologia continua
lá.” Para o agente da PSP, o Movimento Zero não é nada além de uma forma de
“desresponsabilização”, porque permite “dizer tudo e depois despir o fato”,
sempre sob a capa do anonimato.
Ainda assim, Manuel Morais faz
questão de lembrar que não é o único a pensar assim. “Estamos em minoria”, crê,
mas não vê nas polícias nada diferente do que vê na sociedade. “As pessoas
esqueceram-se do mal que certos movimentos nos fizeram. A falta de
solidariedade, de preocupação com os problemas do outro, é transversal e é
ensinada em casa.” Para Manuel Morais, “aquela ideia de que os impostos servem
para pagar a pessoas que não fazem nada e passam o dia no café é como um
credo.”
Atualmente desligado de qualquer
atividade sindical, o agente avança que não participará em mais nenhuma
manifestação, a não ser em trabalho. “Já fiz todas as manifestações que tinha a
fazer.” Continuará a assistir-lhes, mas “muito preocupado” com “a nova dinâmica
social”. A dar corpo a essas preocupações está o facto de um grupo sem rosto,
“um grupo qualquer de indivíduos, sem formação de coisa nenhuma, conseguir
direitos que os sindicatos, em 30 anos, não conseguiram”. Dá como exemplo o
pagamento do trabalho policial em jogos de futebol, uma causa
antiga da ASSP, em que “o corpo de intervenção era o único que não recebia”,
ao contrário dos stewards e de outros elementos externos ao jogo.
“Este grupo conseguiu reunir com o diretor nacional [da PSP, Luís Farinha], que
prometeu que o problema seria resolvido.” E já está: “Agora, nos dias de
reforço, em que nos chamam das folgas, já vamos receber”, avança o agente. É
assim que, talvez inesperadamente, Manuel Morais e André Ventura coincidem numa
ideia. Explica o agente da PSP: “Isto é a morte do sindicalismo.”
*João Diogo Correia | Expresso –
26.11.19
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