O que estivemos lá a fazer e as
mentiras que nos contaram a propósito?
Carlos Matos Gomes* | opinião
A pergunta podia ser feita a
propósito de muitas situações pessoais e das sociedades ao longo da história da
humanidade.
A História tenta responder à
pergunta e desmistificar as mentiras da época. Infelizmente aprendemos pouco
com a História, repetimos os mesmos erros e deixamo-nos aldrabar pelos mesmos
velhos truques.
Este texto é uma adaptação
pessoal e traduzido do artigo Peter
Beaumant, publicado em 14 dez 2019 no jornal Observer, que pode ser lido em Afghanistan papers detail US dysfunction: ‘We did not know what
we were doing’.
O artigo comenta documentos
desclassificados pelas autoridades americanas a propósito da intervenção no
Afeganistão. Mas podia ser a propósito da guerra colonial portuguesa, ou das
invasões americanas do Iraque, ou da Síria, ou da Líbia, ou das primaveras árabes,
ou das revoluções de veludo, ou do Brexit…
Os Documentos do Afeganistão
revelam que o público dos EUA foi enganado sobre uma guerra invencível (Já
tinha sido enganado sobre a Coreia, o Vietname, e seria sobre o Irão-Iraque, o
Irão, a Síria, a Líbia, a Somália, como antes sobre Cuba, Nicarágua e depois a
Ucrânia… e continuará a ser…sobre a Venezuela, o Chile, a Bolívia, o Brasil…)
Em Portugal o engano mais recente
e mais risível é o de um fascista júnior declarar ter vergonha do regime
democrático!
O tema-chave dos documentos
publicados esta semana foi a falta de coerência da abordagem de Washington para
o Afeganistão desde o início das ações de retaliação após o 11 de Setembro
conduzido, ao que parece, por sauditas… mas existem outras versões…
Começa com um episódio que coloca
a ridículo a apregoada onda de vitória anunciada por Barak Obama contra os
talibãs, como primeiro passo da operação de preparação da opinião pública para
a retirada americana do vespeiro em que Bush filho tinha metido os americanos e
alguns acólitos após o ataque às Torres Gémeas e outros locais de que se fala
menos.
Hayam Mohammed, um ancião de
Panjwai, perto da fronteira paquistanesa, confrontou um oficial da 101ª
Airborne dos EUA, que havia entrado na sua aldeia: ”Vocês andam por aqui
durante o dia” disse o ancião ao soldado amargamente, mas à noite os Talibãs
vêm e ameaçam aqueles que colaboram com forças estrangeiras (o mesmo acontecia
na guerra colonial) com as tropas portuguesas e os guerrilheiros. “De dia vem a
tropa, e bate, de noite vem os guerrilheiros e bate, não se pode ser preto
nesta terra! Lamentou-se-me um ancião maconde há muitos anos no norte de
Moçambique.
A vitória virtual dos bravos
americanos sobre os talibãs, como tantas outras iniciativas na longa guerra do
Afeganistão foi anunciada e comemorada pelos dirigentes ianques e pela sua
comunicação social como um enorme sucesso. Os generais portugueses e os políticos
também anunciaram várias vezes a vitória sobre os guerrilheiros em África.
Alguns generais escreveram até uns lamentos a que deram o título de Vitória
Traída! Hoje, esses exercícios de manipulação servem apenas como memórias do
engano e fracasso revelados nos explosivos documentos do Afeganistão,
publicados pelo Washington Post. Em Portugal ainda há quem acredite e defenda
que a guerra estava ganha! Um dos generais mais belicosos, Kaúlza de Arriaga,
confessou em 1973 a um jornalista francês, Dominique De Roux, do Paris Match, e
autor de “O Quinto Império” que necessitava de mais dez anos para uma vitória!
Resultante de 600 entrevistas com
membros-chave recolhidas confidencialmente pelo Gabinete de Inspetor-Geral
Especial para a Reconstrução no Afeganistão, e publicado após uma batalha
judicial de três anos, a investigação foi comparada em importância aos Pentagon
Papers, a história secreta do Departamento de Defesa da guerra do Vietname de
1971.
Tal como a história secreta do
Vietname, a história recolhida nos “Papéis de Afeganistão” descreve uma guerra
de derrotas em contraste com a “história enganadora” contada aos públicos dos
USA e do Reino Unido, em particular. Mas também a outros públicos, por vozes do
dono que incluíram os portugueses Durão Barroso e Paulo Portas.
Mas, mesmo que o engano
deliberado das administrações americanas tenha sido o foco principal da
reportagem do Washington Post, as entrevistas a generais e governadores
afegãos, embaixadores, funcionários e conselheiros políticos, ela também conta
outra história: como sucessivos presidentes de Bush até Obama e a Donald Trump,
rejeitaram o conceito de “construção da nação” para o Afeganistão (como aliás o
fizeram também para o Iraque, a Líbia, a Ucrânia, se preparavam para fazer com
a Síria), e, em vez disso, criaram um estado violento, corrupto e disfuncional
apenas apoiado pelas armas dos EUA e por uns apêndices, para que os jornalistas
possam falar de “coligação”, de que Portugal faz parte…
Estes contributos recolhidos pelo
Washington Post revelam que, tal como a URSS antes deles, também os EUA e seus
aliados vieram, ou foram para o Afeganistão equipados com uma combinação de
arrogância e ignorância, às ordens de lideranças políticas – tanto a de Obama
como a de Bush Jr – mais preocupadas com a política interna do que o impacto de
suas decisões sobre o Afeganistão. As políticas imperiais, como as políticas
coloniais são definidas em função dos interesses dos centros dos impérios e das
metrópoles coloniais. Os Palestinianos sabem disso desde a ocupação romana!
Lendo as entrevistas percebe-se o
desejo dos participantes de atirar para debaixo do tapete o pecado original da
intervenção no Afeganistão – o absurdo estratégico, a cupidez do complexo
militar-indústrial e a manipulação da opinião pública por parte das oligarquias
– e encontrar desculpas para um conflito que custou um trilião de US $ e as
vidas de dezenas de milhares ao longo de quase 20 anos.
A eleição de alguém com base no
slogan: “Fazer a América grande de novo!” parece significar que os americanos
são adeptos destes políticos gângsteres. Talvez os populismos sejam o reflexo
da descrença em políticos como os que levaram a cabo grandes crimes anunciados
com o maior descaramento – sem vergonha, já agora – como atos de defesa de grandes
princípios e valores para a humanidade. Ou então esta pode ser uma visão muito
otimista, porque, de facto, os povos (exceto os agredidos) são afinal
ampliações das claques de futebol que seguem dirigentes adeptos da violência
cega como primeira e única proposta para se fazerem eleger. Em Portugal já um
“claqueiro da bola” se elegeu político e se faz de vítima!
Voltando ao artigo do Washington
Post:
À volta da mesa das decisões na
Casa Branca, George Bush Júnior preocupava-se com quanto podia ganhar com o
conflito no Afeganistão. A propósito desta “altruísta” visão da ação americana
diz um membro da administração Bush filho: “Eu não classificaria como
cínica a relação entre investimento e retorno no Afeganistão.” Outros
entrevistados, no entanto, colocam o fracasso na decisão original de confundir
os Talibãs com a al-Qaeda de Osama bin Laden na sequência dos ataques de 11 de
setembro. Este é o ponto-chave. “Por que fizemos dos Talibãs o inimigo quando
fomos atacados pela al-Qaeda? Por que queríamos derrotar os Talibãs? Por que
achámos que era necessário construir um Estado à nossa medida?” Para Richard
Boucher, secretário de Estado adjunto para assuntos do Sul e da Ásia Central
entre 2006 e 2007, não havia uma estratégia coerente a longo prazo,
acrescentando que os países envolvidos na Força Internacional de Estabilização
[Isaf], o comando da OTAN, não tinham tropas suficientes para fazer o trabalho.
“Cada nação estava encarregada de proteger uma área maior do que tinha forças
para o fazer.” E ninguém na administração americana queria matar a galinha dos
ovos de ouro, a Arábia Saudita, o maior comprador de material militar aos EUA!
Não saber definir quem é o
inimigo e não ter forças para derrotar aquele que foi eleito como o mais
conveniente é exemplificativo do conjunto de incompetentes e irresponsáveis que
dirigem as nossas nações apenas pela cupidez. O pior é que estamos amarrados
aos mastros desta nave de loucos violentos!
“O sistema dececionou a todos.”
Os documentos do Afeganistão revelam mentiras e enganos chocantes apresentadas
como verdade pelas administrações dos Estados Unidos. Austin Wright, um
académico especializado no Afeganistão na Universidade de Chicago, analisou os
registos militares desclassificados da guerra e concluiu que muitos jornalistas
e comentadores nos media perceberam que o público dos EUA foi “enganado”
consistentemente pela informação oficial do progresso da guerra, mas nada
disseram contra a verdade oficial! Também ninguém foi julgado por mentir, nem
pelos crimes cometidos para suportar a mentira e muitos ganharam muito dinheiro,
que era, afinal, o objetivo!
Obtemos assim um RX da sociedade
em que vivemos: somos dirigidos por aldrabões sem escrúpulos, vigarizados por
meios de comunicação social vendidos (ou comprados pelos poderes de facto) e
desarmados por um sistema judicial cúmplice dos grandes criminosos. Era desta
sociedade corrompida até ao âmago que devíamos, mais do que sentir vergonha (um
sentimento inútil), ter consciência e tentar alterá-la.
As próximas guerras, a travar por
causas climáticas, por acesso a novas fontes de energia, pelos fundos
marítimos, pelo espaço, pela água serão dirigidas por bandidos como os que
dirigiram estas de que o Afeganistão é o retrato dramático e seguindo os mesmos
princípios, noticiadas pelos mesmos difusores e absolvidos pelos mesmos juízes.
Ações aparentemente pueris como
as da jovem Greta ajudam-nos a distinguir os caminhos, as propostas e colocam
em causa a banditagem de lobos com pele de cordeiro. Por isso ela é tão
atacada. Neste Natal podíamos pensar na mentira de todos os dias.
Por opção do autor, este artigo
respeita o AO90
*Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
*Jornal Tornado | Imagem: Antonio Olmos/The
Observer
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