quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

As mentiras que nos contam a propósito das guerras e de outras “boas” ações


O que estivemos lá a fazer e as mentiras que nos contaram a propósito?

Carlos Matos Gomes* | opinião

A pergunta podia ser feita a propósito de muitas situações pessoais e das sociedades ao longo da história da humanidade.

A História tenta responder à pergunta e desmistificar as mentiras da época. Infelizmente aprendemos pouco com a História, repetimos os mesmos erros e deixamo-nos aldrabar pelos mesmos velhos truques.

Este texto é uma adaptação pessoal e traduzido do artigo Peter Beaumant, publicado em 14 dez 2019 no jornal Observer, que pode ser lido em Afghanistan papers detail US dysfunction: ‘We did not know what we were doing’.

O artigo comenta documentos desclassificados pelas autoridades americanas a propósito da intervenção no Afeganistão. Mas podia ser a propósito da guerra colonial portuguesa, ou das invasões americanas do Iraque, ou da Síria, ou da Líbia, ou das primaveras árabes, ou das revoluções de veludo, ou do Brexit…

Os Documentos do Afeganistão revelam que o público dos EUA foi enganado sobre uma guerra invencível (Já tinha sido enganado sobre a Coreia, o Vietname, e seria sobre o Irão-Iraque, o Irão, a Síria, a Líbia, a Somália, como antes sobre Cuba, Nicarágua e depois a Ucrânia… e continuará a ser…sobre a Venezuela, o Chile, a Bolívia, o Brasil…)  

Em Portugal o engano mais recente e mais risível é o de um fascista júnior declarar ter vergonha do regime democrático!




O tema-chave dos documentos publicados esta semana foi a falta de coerência da abordagem de Washington para o Afeganistão desde o início das ações de retaliação após o 11 de Setembro conduzido, ao que parece, por sauditas… mas existem outras versões…

Começa com um episódio que coloca a ridículo a apregoada onda de vitória anunciada por Barak Obama contra os talibãs, como primeiro passo da operação de preparação da opinião pública para a retirada americana do vespeiro em que Bush filho tinha metido os americanos e alguns acólitos após o ataque às Torres Gémeas e outros locais de que se fala menos.

Hayam Mohammed, um ancião de Panjwai, perto da fronteira paquistanesa, confrontou um oficial da 101ª Airborne dos EUA, que havia entrado na sua aldeia: ”Vocês andam por aqui durante o dia” disse o ancião ao soldado amargamente, mas à noite os Talibãs vêm e ameaçam aqueles que colaboram com forças estrangeiras (o mesmo acontecia na guerra colonial) com as tropas portuguesas e os guerrilheiros. “De dia vem a tropa, e bate, de noite vem os guerrilheiros e bate, não se pode ser preto nesta terra! Lamentou-se-me um ancião maconde há muitos anos no norte de Moçambique.

A vitória virtual dos bravos americanos sobre os talibãs, como tantas outras iniciativas na longa guerra do Afeganistão foi anunciada e comemorada pelos dirigentes ianques e pela sua comunicação social como um enorme sucesso. Os generais portugueses e os políticos também anunciaram várias vezes a vitória sobre os guerrilheiros em África. Alguns generais escreveram até uns lamentos a que deram o título de Vitória Traída! Hoje, esses exercícios de manipulação servem apenas como memórias do engano e fracasso revelados nos explosivos documentos do Afeganistão, publicados pelo Washington Post. Em Portugal ainda há quem acredite e defenda que a guerra estava ganha! Um dos generais mais belicosos, Kaúlza de Arriaga, confessou em 1973 a um jornalista francês, Dominique De Roux, do Paris Match, e autor de “O Quinto Império” que necessitava de mais dez anos para uma vitória!

Resultante de 600 entrevistas com membros-chave recolhidas confidencialmente pelo Gabinete de Inspetor-Geral Especial para a Reconstrução no Afeganistão, e publicado após uma batalha judicial de três anos, a investigação foi comparada em importância aos Pentagon Papers, a história secreta do Departamento de Defesa da guerra do Vietname de 1971.

Tal como a história secreta do Vietname, a história recolhida nos “Papéis de Afeganistão” descreve uma guerra de derrotas em contraste com a “história enganadora” contada aos públicos dos USA e do Reino Unido, em particular. Mas também a outros públicos, por vozes do dono que incluíram os portugueses Durão Barroso e Paulo Portas.

Mas, mesmo que o engano deliberado das administrações americanas tenha sido o foco principal da reportagem do Washington Post, as entrevistas a generais e governadores afegãos, embaixadores, funcionários e conselheiros políticos, ela também conta outra história: como sucessivos presidentes de Bush até Obama e a Donald Trump, rejeitaram o conceito de “construção da nação” para o Afeganistão (como aliás o fizeram também para o Iraque, a Líbia, a Ucrânia, se preparavam para fazer com a Síria), e, em vez disso, criaram um estado violento, corrupto e disfuncional apenas apoiado pelas armas dos EUA e por uns apêndices, para que os jornalistas possam falar de “coligação”, de que Portugal faz parte…

Estes contributos recolhidos pelo Washington Post revelam que, tal como a URSS antes deles, também os EUA e seus aliados vieram, ou foram para o Afeganistão equipados com uma combinação de arrogância e ignorância, às ordens de lideranças políticas – tanto a de Obama como a de Bush Jr – mais preocupadas com a política interna do que o impacto de suas decisões sobre o Afeganistão. As políticas imperiais, como as políticas coloniais são definidas em função dos interesses dos centros dos impérios e das metrópoles coloniais. Os Palestinianos sabem disso desde a ocupação romana!

Lendo as entrevistas percebe-se o desejo dos participantes de atirar para debaixo do tapete o pecado original da intervenção no Afeganistão – o absurdo estratégico, a cupidez do complexo militar-indústrial e a manipulação da opinião pública por parte das oligarquias – e encontrar desculpas para um conflito que custou um trilião de US $ e as vidas de dezenas de milhares ao longo de quase 20 anos.

A eleição de alguém com base no slogan: “Fazer a América grande de novo!” parece significar que os americanos são adeptos destes políticos gângsteres. Talvez os populismos sejam o reflexo da descrença em políticos como os que levaram a cabo grandes crimes anunciados com o maior descaramento – sem vergonha, já agora – como atos de defesa de grandes princípios e valores para a humanidade. Ou então esta pode ser uma visão muito otimista, porque, de facto, os povos (exceto os agredidos) são afinal ampliações das claques de futebol que seguem dirigentes adeptos da violência cega como primeira e única proposta para se fazerem eleger. Em Portugal já um “claqueiro da bola” se elegeu político e se faz de vítima!

Voltando ao artigo do Washington Post:

À volta da mesa das decisões na Casa Branca, George Bush Júnior preocupava-se com quanto podia ganhar com o conflito no Afeganistão. A propósito desta “altruísta” visão da ação americana diz um membro da administração Bush filho: “Eu não classificaria como cínica  a relação entre investimento e retorno no Afeganistão.” Outros entrevistados, no entanto, colocam o fracasso na decisão original de confundir os Talibãs com a al-Qaeda de Osama bin Laden na sequência dos ataques de 11 de setembro. Este é o ponto-chave. “Por que fizemos dos Talibãs o inimigo quando fomos atacados pela al-Qaeda? Por que queríamos derrotar os Talibãs? Por que achámos que era necessário construir um Estado à nossa medida?” Para Richard Boucher, secretário de Estado adjunto para assuntos do Sul e da Ásia Central entre 2006 e 2007, não havia uma estratégia coerente a longo prazo, acrescentando que os países envolvidos na Força Internacional de Estabilização [Isaf], o comando da OTAN, não tinham tropas suficientes para fazer o trabalho. “Cada nação estava encarregada de proteger uma área maior do que tinha forças para o fazer.” E ninguém na administração americana queria matar a galinha dos ovos de ouro, a Arábia Saudita, o maior comprador de material militar aos EUA!

Não saber definir quem é o inimigo e não ter forças para derrotar aquele que foi eleito como o mais conveniente é exemplificativo do conjunto de incompetentes e irresponsáveis que dirigem as nossas nações apenas pela cupidez. O pior é que estamos amarrados aos mastros desta nave de loucos violentos!

“O sistema dececionou a todos.” Os documentos do Afeganistão revelam mentiras e enganos chocantes apresentadas como verdade pelas administrações dos Estados Unidos. Austin Wright, um académico especializado no Afeganistão na Universidade de Chicago, analisou os registos militares desclassificados da guerra e concluiu que muitos jornalistas e comentadores nos media perceberam que o público dos EUA foi “enganado” consistentemente pela informação oficial do progresso da guerra, mas nada disseram contra a verdade oficial! Também ninguém foi julgado por mentir, nem pelos crimes cometidos para suportar a mentira e muitos ganharam muito dinheiro, que era, afinal, o objetivo!

Obtemos assim um RX da sociedade em que vivemos: somos dirigidos por aldrabões sem escrúpulos, vigarizados por meios de comunicação social vendidos (ou comprados pelos poderes de facto) e desarmados por um sistema judicial cúmplice dos grandes criminosos. Era desta sociedade corrompida até ao âmago que devíamos, mais do que sentir vergonha (um sentimento inútil), ter consciência e tentar alterá-la.

As próximas guerras, a travar por causas climáticas, por acesso a novas fontes de energia, pelos fundos marítimos, pelo espaço, pela água serão dirigidas por bandidos como os que dirigiram estas de que o Afeganistão é o retrato dramático e seguindo os mesmos princípios, noticiadas pelos mesmos difusores e absolvidos pelos mesmos juízes.

Ações aparentemente pueris como as da jovem Greta ajudam-nos a distinguir os caminhos, as propostas e colocam em causa a banditagem de lobos com pele de cordeiro. Por isso ela é tão atacada. Neste Natal podíamos pensar na mentira de todos os dias.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

*Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

*Jornal Tornado | Imagem: Antonio Olmos/The Observer


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