Pedro Ivo Carvalho
| Jornal de Notícias | opinião
É uma esquizofrenia que se renova
todo o santo ano. Uns veem tudo a preto, outros veem tudo a branco. E, no
final, o Orçamento do Estado forra única e exclusivamente o coração de quem o
apresenta envolvido em papel dourado: o Governo.
Há várias formas possíveis de
qualificar o documento que servirá de bússola ao país em 2020, mas talvez a
expressão mais apropriada seja a da continuidade passiva. O que, parecendo um
defeito conjuntural, não é de todo uma tragédia, em particular se atendermos à
necessidade de acautelar o impacto económico de uma prometida crise
internacional.
Mas, lá está: se virmos tudo a
preto, é o apocalipse; se virmos tudo a branco, vamos transformar-nos na
Suécia. Nem uma coisa nem outra. Aliás, quem, a cada ano que passa, sonha com
revoluções à boleia do Orçamento do Estado já devia ter aprendido que ele não
serve para isso. E este, em particular, é uma antítese reforçada desses estados
de alma, porque está assente em dois pilares de betão pragmático: cobrança
vigorosa de impostos e proteção leonina das contas públicas. Desígnios, de
resto, que se interligam: o histórico saldo orçamental conquistado, como notou
Mário Centeno, só se garante à custa dos contribuintes.
A carga fiscal aumenta (para o
patamar mais alto desde 1995) e as mexidas nos escalões do IRS vão traduzir-se
numa perda efetiva de poder de compra para muitos cidadãos (porque a
atualização fica abaixo dos valores da inflação). Donde se conclui que o
primeiro Orçamento do Estado da era pós-geringonça não está preocupado em
cumprir os mínimos ideológicos da devolução de rendimentos.
O que, num contexto político de
maior perenidade à Esquerda, não deixa de ser arriscado, ainda que António
Costa tenha distribuído bodo por BE e PCP (reforço das pensões mais baixas,
mais oxigénio nos transportes e na saúde, contratação de pessoal em
áreas-chave, subida do IVA das touradas, etc...). As negociações mais duras
começam agora, na especialidade, mas ninguém antevê uma crise no momento da
votação final. Se BE e PCP não disserem "sim", poderão dizer
"nim". A união de facto sobrevive na mesma.
Na continuidade passiva, este
Orçamento é mais do mesmo. Mas é, sobretudo, mais dos mesmos. Dos que trabalham
para pagar impostos para sustentar um Estado que não lhes retribui o esforço na
mesma medida. Não se esperam revoluções em 2020, mas é imperioso que na saúde e
nos transportes, órgãos vitais do nosso quotidiano que mais gritam por socorro,
sejam dados sinais de mudança.
*Diretor-adjunto
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