ENTREVISTA
"Os militares estão num governo de opereta. Eles se submeteram a constantes vexames" - diz pesquisador
Os estudos de João Roberto
Martins Filho são a prova de que, no Brasil, os conflitos se repetem, nunca
cessam. Quando ele iniciou o mestrado, nos anos 1970, o país estava sob domínio
dos militares e, nas ruas, a oposição mais ruidosa emergia da ala estudantil.
Na época jovem acadêmico e fã de História, Martins se interessou pelo tema e se
debruçou sobre documentos, entrevistas e livros para entender os grupos de
estudantes na ditadura militar. O resultado lhe rendeu tese de mestrado na
Unicamp, mas o principal fruto que colheu foi o fascínio pelo plano de fundo da
pesquisa: as disputas internas das Forças Armadas do Brasil, assunto pouco
explorado na academia.
Nos anos seguintes, Martins Filho
se tornou uma referência no tema. Foi ele que, no doutorado, refutou a ideia de
que havia apenas dois grupos que explicavam o regime — o moderado, dos
castelistas, e o linha-dura. Na sua tese, adotada até hoje por outros
estudiosos, mostrou como as divisões internas nas casernas eram numerosas e
complexas.
Hoje, 25 anos depois, o
pesquisador se concentra em atividade similar, mas para tratar do governo de
extrema direita de Jair Bolsonaro. Com adaptações ao método de outrora — agora,
além de pesquisas, leituras e conversas, também vasculha redes sociais — ele
busca mapear os diferentes interesses entre os militares no poder. Suas
conclusões não são animadoras: se, de um lado, o alto escalão do Exército que
apoiou Bolsonaro na campanha não está feliz com o governo, de outro, o baixo
escalão está insatisfeito com o próprio Exército. Para Martins Filho, não é
difícil imaginar que, num cenário de extrema crise, Bolsonaro possa usar de sua
influência entre os postos inferiores do Exército para provocar uma revolta,
uma inquietação popular.
A percepção do pesquisador tem
fundamento: o comportamento errático de Bolsonaro. No mês passado, quando
enfrentava sua pior crise de popularidade e via protestos em massa contra os
cortes na educação, o presidente apoiou manifestações favoráveis a seu governo
que tinham como alvo pilares democráticos como a Câmara dos Deputados e o
Superior Tribunal Federal. “Nada impede que, ao se sentir ameaçado, dentro da
sua tradicional irresponsabilidade, o presidente também faça acenos para os
escalões inferiores do Exército”, conta Martins Filho ao Intercept. “Seria
um desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar
profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.”
Martins Filho acredita que parte
da tensão que vivemos agora se deve ao fato de que os militares — sobretudo o
Exército — erraram ao voltar ao protagonismo da política. Hoje são oito
representantes das Forças Armadas nos ministérios, número maior do que todos os
governos da ditadura militar. Para ele, os militares endossaram, em nome do antipetismo,
com o claro objetivo de afastar a centro-esquerda do poder, um candidato que,
agora percebem, é despreparado para funções básicas do cargo. “Me parece que os
militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva entre a
população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra”, diz.
Pouco antes do regresso das
Forças Armadas ao centro do poder, Martins Filho se concentrava em estudar
práticas repressoras da ditadura. Professor titular da Universidade Federal de
São Carlos, em São Paulo, ele destrinchava a colaboração do governo da
Inglaterra com o do Brasil para criar um aparelho de repressão com salas de
tortura no Rio de Janeiro. Com espanto, viu, em 2015, políticos e eleitores de
classe média celebrarem a figura do torturador Coronel Brilhante Ustra durante
o rito que culminou o impeachment de Dilma Rousseff. Ali percebeu que era hora
de mudar seu foco para o presente. “Ninguém pode dizer que a classe média não
sabia quem era Bolsonaro”, fala Martins Filho. “Um homem capaz de elogiar tortura,
de elogiar ditadura, de dizer que ia metralhar os petistas, expulsar os
petistas do Brasil. Todo mundo sabia quem era esse homem. Uma vez eleito com 58
milhões de votos, continuou sendo quem era. E é nesse ponto que estamos.”
Conversei com Martins Filho por
uma hora e meia no começo de junho. Ele falou da demissão do general Santos
Cruz, da relação do governo com Mourão e outros generais e dos possíveis riscos
que Bolsonaro representa à democracia.