Thierry Meyssan*
A Declaração universal dos
Direitos do Homem expõe um ideal que qualquer pessoa responsável tenta
colocar em prática. Mas não se pode combater todos os males ao mesmo tempo.
Assim, ela institui uma hierarquia entre estes direitos para que nós possamos
melhorar as coisas em concreto. Certas potências acusam outras de violação dos
Direitos do Homem para melhor esconder os seus crimes. Acontece que a árvore
esconde a floresta.
Os Direitos do Homem
Progressivamente, a humanidade
formulou o ideal de igualdade da pessoa humana : os «Direitos do Homem».
Inúmeras nações reclamam tê-lo antecipado antes de eles terem sido
estabelecidos pelas Nações Unidas. Com o tempo, muitos empregaram esta noção
sem a compreender na sua dimensão etimológica e deformaram-na.
O debate acalorado, de 19 de
Setembro de 2019, no Conselho de Segurança mostrou como os «Direitos do Homem»
foram desprezados até serem mesmo utilizados a contrasenso.
Por todo o mundo e em todas as
épocas, os líderes tentaram afirmar que os homens eram iguais em direitos. Os
mais antigos exemplos conhecidos são atestados pelo cilindro do Imperador persa
Ciro (século V AC) —do qual uma réplica adorna a sede das Nações Unidas— que
representa a liberdade de culto; ou pelos Éditos do Imperador indiano Asoka
(século II AC), os quais proibiram a tortura de todos os animais, inclusive os
humanos. Estes monarcas transformaram as leis dos seus países em nome de regras
que imaginavam universais.
Se nos referimos à construção do
Direito moderno, a Magna Carta inglesa (século XIII) afirma que
nenhum súbdito poderá ser preso sem um processo justo. Ela foi, nomeadamente,
completada pelo Bill of Rights (Lei dos Direitos) que no século XVII
enumera os direitos das pessoas e os do Parlamento. Foi com esse mesmo estado
de espírito que James Madison redigiu, um século depois, o Bill of Rights norte-americano.
Este último limita unicamente o Poder do Governo federal, mas não o dos Estados
federados. A tradição anglo-saxónica afirma direitos individuais e protege-os
face à «razão de Estado».
A questão foi colocada de uma
maneira radicalmente nova pela Assembleia Constituinte francesa em 1789.
Segundo ela, para afirmar a igualdade ontológica entre os súbditos e o seu
soberano, não bastava limitar o poder absoluto do monarca, era preciso
estabelecer que o Poder procede do Povo e não pode ser exercido contra ele.
Este texto foi aprovado por unanimidade, inclusive pelos representantes da
Igreja de França (embora posteriormente rejeitado algum tempo pelo Papado),
pelos da Nobreza e pelo Rei Luís XVI. Já não se trata mais de «Direitos do
Homem», mas de «Direitos do Homem e do Cidadão».
O Suíço Henry Dunant tentou
proteger, no século XIX, os Direitos dos homens implicados nas guerras, quando
os Estados violam as suas próprias regras. Tratou-se do Direito humanitário.
Foi os dados deste conjunto de
diferentes culturas, e ainda muitas outras, que as Nações Unidas sintetizaram
na sua Declaração Universal dos Direitos do Homem. Ela é «universal», não
porque desejada por Deus ou originada pela Natureza, mas apenas porque é
partilhada pelos 193 Estados-Membros.
Ela estabelece em primeiro lugar
que todos os seres humanos nascem «livres e iguais em dignidade e direitos»,
depois que são responsáveis não apenas por si mesmos, mas, também, uns pelos
outros (art. 1). Pela primeira vez, ela afirma que os Direitos do Homem são não
apenas idênticos em qualquer país, mas independentes do seu país (art. 2); o
que a Sociedade das Nações havia recusado fazer a fim de proteger o sistema
colonial. E, por fim, que existe uma hierarquia entre estes Direitos, dos quais
os mais importantes são «a vida, a liberdade e a segurança» (art. 3); pois não
se trata de estabelecer um catálogo de boas intenções contraditórias, mas de
organizar a sociedade mundial. Depois vem a luta contra a escravatura (art. 4)
e somente então a luta contra a tortura (art. 5). Todos estes princípios são
importantes, mas apenas podem ser alcançados por esta ordem.
Hoje em dia, nos países
desenvolvidos, em paz e libertos da escravatura, apenas pensamos nos Direitos
do Homem para uma justiça mais justa e como uma luta contra a tortura. É um
luxo que muitos outros homens não têm.
Desde a sua assinatura, este
edifício foi contestado pelos mesmos que o haviam elaborado, em particular pelo
Reino Unido e a sua «ingerência humanitária». No século XIX, o Império
Britânico havia inventado este conceito não para ir em socorro de populações
oprimidas, mas para abater o Império Otomano. Retomou-o durante a Guerra Fria
para lutar contra a China e a URSS. A História quis que fosse usado pelo
francês Bernard Kouchner, para instrumentalizar o infortúnio dos boat
people. Ele encenou o salvamento de refugiados que vagueavam em barcos
superlotados, não hesitando em atirar esses homens ao mar para «refazer um
resgate» em frente das câmaras. A emoção provocada por essas imagens suscitava
automaticamente uma empatia por eles. Mas a horrível sorte destas vítimas não
nos dizia nada sobre a suposta justeza da sua luta e, ainda menos, sobre a
suposta ilegitimidade dos seus governos. Esta é a mesma técnica que é hoje
utilizada para a comunicação quanto ao infortúnio dos migrantes no
Mediterrâneo. O atroz afogamento de milhares deles nada nos diz sobre as causas
da sua partida e não valida o seu direito a entrar em casa dos outros. Talvez
eles tenham razão, talvez estejam errados. Só a investigação e não a emoção o
poderá confirmar.