Ao contrário da Amazónia, a
floresta seca é mais sujeita ao fogo. Mas catástrofe atual foi produzida também
por um governo que nega o aquecimento global, incentiva os combustíveis fósseis
e desmonta o sistema público de prevenção
Carolyn Kormann, no The New Yorker |
Outras Palavras | Tradução: Antonio Martins
O atual primeiro ministro da
Austrália, Scott Morrison, assumiu o posto, em agosto de 2018. Seu antecessor,
Malcolm Turnbull, igualmente do Partido Liberal, era pressionado havia meses,
quiçá anos, pela própria coligação de direita no poder, que reúne os partidos
Liberal e Nacional. Mas o golpe final veio quando Turnbol apoiou um plano
nacional de energia que, para controlar a emissão de gases de efeito estufa,
teria reduzido, ainda que de forma moderada, a dependência do setor de energia
em relação aos combustíveis fósseis. Numa tentativa de salvar seu mandato, na
décima primeira hora, Turnbull desistiu de tornar a redução das emissões
obrigatória por lei.
Era muito tarde. Morrison foi
eleito pelos parlamentares liberais numa espécie de golpe
de bastidores e logo declarou que o plano energético de Turnbull
estava morto. Seu compromisso com os combustíveis fósseis já era conhecido. Em
2017, quando exercia o posto equivalente ao de ministro das Finanças [threasurer]
– e a Austrália tornou-se, segundo a Agência Internacional de Energia, o maior
exportador de carvão do mundo – ele levou uma pedra de carvão ao Parlamento e a
apresentou a seus colegas, como se fossem alunos de escola primaria. “Isto é
carvão. Não tenham medo! Não se assustem! Não vai machucar vocês”, disse. Não
mencionou que a pedra havia sido laqueada,
para evitar que suas mãos se sujassem…
O mandato de Morrison como
primeiro ministro é marcado, desde então, pela recusa em admitir a relação,
cientificamente confirmada, entre o uso de petróleo e carvão e a mudança
climática. No final de 2018, uma seca severa e ondas de calor então inéditas fizeram
dezenas de milhares de morcegos tombarem mortos do céu. Naquele ano, o Painel
Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), descobriu, entre outros
impactos terríveis, que a Grande Barreira de Coral perecerá inteiramente se o
aquecimento superar 1,5ºC (já convivemos com vasta morte e branqueamento de
corais). A primavera de 2019 foi a mais seca de todos os tempos na Austrália.
Porém, ao invés de mudar de atitude, Morrison liderou uma política em favor dos
combustíveis fósseis. Ela incluiu planos para uma nova nova usina termoelétrica
a carvão e 10 milhões de dólares para um estudo destinado a ressuscitar uma
outra, desativada, no estado de Queensland. O Partido Trabalhista voltou-se
contra ele, defendendo uma plataforma eleitoral de maior ação climática –
inclusive metas de redução de emissões efetivas. Ninguém esperava que Morrison
se reelegesse; as pesquisas sugeriam que a maioria dos eleitores preocupava-se
com a mudança climática. Mas um baixo comparecimento ás urnas e a apatia,
devida em parte à natureza em geral instável da política australiana (nenhum
primeiro ministro completa seu mandato, há mais de uma década) contribuíram
para uma vitória surpreendente de Morrison, em maio de 2019. Na noite da
eleição, ele disse a seus apoiantes: “Sempre acreditei em milagres”.
Talvez seja este o motivo para
insistir que o carvão “não vai ferir vocês”, quando o mineral, obviamente, irá
fazê-lo. O carvão é o combustível mais sujo e o que mais produz CO². Fechar
todas as termoelétricas que o utilizam o é imperativo para limitar o aumento da
temperatura global. Eliminar o carvão, especialmente em países da OCDE como a
Austrália, é o primeiro passo na transição para energias renováveis. (Segundo
um relatório, os países da OCDE deveriam eliminar inteiramente o uso de carvão
em 2030). Há consenso científico generalizado em que o aumento das temperaturas
já ocorrido – uma média global de 1,1ºC – contribuiu para a devastadora onda de
incêndios na Austrália, ao criar condições ainda de ainda mais seca e calor.
Mas, ainda em novembro, Morrison ameaçou criminalizar o ativismo climático, um
dia depois de protestos diante de uma conferência de mineradores em Melbourne
terminar em escaramuças com a polícia. “Estamos trabalhando para identificar
mecanismos capazes de colocar fora da lei estas práticas, egoístas e
indulgentes, que ameaçam a vida dos australianos”, disse ele…
Em dezembro, o país atingiu sua
média de temperatura mais alta, com algumas localidades registando 46,1ºC.
Estas condições logo criaram um inferno de incêndios devastadores, os quais
continuam e cujo fim não está à vista. Milhares de casas já foram reduzidas a
cinzas; muitos vilarejos, aniquilados; 28 pessoas morreram. A fumaça cobriu
cidades. Em dezembro, a qualidade do ar em Sydney atingiu onze vezes o nível de
risco; no dia do Ano Novo, na capital, Camberra, onde Morrison tem sua residência
oficial de primeiro ministro, a qualidade do ar foi mais de 25 vezes pior que o
nível de risco. Os moradores foram aconselhados a ficar em casa. Os incêndios
mataram aproximadamente 1 bilião de animais, varrendo um terço dos
koalas em New South Wales e possivelmente colocando algumas espécies
perigosamente próximas à extinção – entre elas a felosa do oriente (um
pássaro), o sapo corroboree e o gambá pigmeu das montanhas. Os
incêndios são tão quentes, e se espalharam tanto (megaincêndios surgem quando
dois fogos se encontram), que geraram seu próprio clima — inclusive
incontroláveis tornados de fogo, formados quando ventos em espiral criam
colunas maciças de fogo, cinzas, vapor e detritos. Área que quase nunca
queimam, inclusive florestas húmidas que abrigam espécies endémicas e raras,
estão em chamas. Mesmo os climatologistas australianos, cientes há anos de que
o aquecimento global agravaria a severidade da estação de incêndios, estão
atónitos com a escala do fogo. Virginia Young, uma estudiosa das florestas
australianas, disse ao Washington Post acreditar que o país está à
beira de uma “enorme mudança ecológica”.
O governo australiano, com
Morrison no comando, não lidou bem com a crise. O primeiro ministro ignorou
pedido de um grupo de ex-bomberios para um encontro na última primavera, em que
pretendiam alertá-lo sobre a necessidade de mais água para o combate ao fogo.
Em dezembro, a despeito do intensidade e velocidade crescentes com que muitos
incêndios se espalhavam, ele tirou férias no Havaí, decidindo voltar apenas
após a morte de dois bombeiros voluntários. Em seu primeiro dia após o retorno,
disse a uma emissora de rádio de Sydney que ainda cogitava termoelétricas a
carvão. “É preciso usar todas as fontes de energia. Sou muito agnóstico,
importo-me que sejam confiáveis e baratas”. Acrescentou: “Haverá muito barulho
em toda parte, mas tendo a ouvir as vozes quietas, caladas”. Ele foi repudiado
em visitas a cidades destruídas, com os moradores e bombeiros recusando-se a
apertar sua mão. Quando passou por Cobargo, um vilarejo chamuscado, um
manifestante disse-lhe que deveria “ter vergonha de si mesmo” por “deixar o
país arder”. Na última sexta-feira, dezenas de milhares de cidadãos caminharam
pelas ruas para protestar contra seu governo, opor-se a novas minas de carvão –
incluindo a gigante Carmichael, de propriedade do grupo indiano Adani, que o
governo aprovou em junho – e para exigir políticas que reduzam as emissões
causadas por fósseis. A multidão cantava: “Scomo [Scott Morrison] tem de ir
embora” [Scommo has to go], enquanto avançava nas redes sociais a hashtag irónica
#scottyfrommarketing, uma referência a seu passado de empresário de marketing,
que inclui uma passagem como diretor da Tourism Australia.
Morrison não se sensibilizou. No
domingo, depois de outro bombeiro voluntário morrer, ele deu entrevista de
rádio em que chamou esta estação de incêndios e a mudança climática de “o novo
normal”. Não deu indicação alguma de que mudará sua política e se engajará numa
transição que supere os combustíveis fósseis. Também enfatizou a prevenção e as
medidas adaptativas, para lidar com os impactos. “Não são só incêndios”, disse:
“tem a ver com inundações, ciclones, secas, que terão impacto sobre muitos
temas. A adaptação e a resiliência são chaves. A construção de represas, o
manejo da vegetação nativa a limpeza da terra ou onde você constrói as casas
são chaves”. Embora a adaptação seja de fato necessária e urgente, ela não
pode, de modo algum, ser tudo o que os governos limitam-se a fazer para
prevenir os piores efeitos da mudança climática.
Por enquanto, ao que parece, a
Austrália permanecerá atada ao carvão. Na quarta-feira, Morrison disse a
repórteres em Canberra: “Nosso setor de recursos é incrivelmente importante
para a Austrália”. O país é o segundo maior exportador global de carvão termal
(o tipo usado para produzir eletricidade), perdendo apenas para a Indonésia. Em
2018, a Austrália exportou 200 milhões de toneladas métricas, cotadas em 26
biliões de dólares, para a China, Japão e outros países do sudeste asiático. O
volume está caindo vagarosamente, à medida em que a China utiliza suas fontes
internas e tanto a China quanto o Japão distanciam-se do carvão. Mas a própria
Austrália ainda obtém um terço de sua eletricidade de termoelétricas a carvão, o
que faz dela um dos maiores emissores de CO² per capita do planeta.
O governo de Morrison, além
disso, foi parcialmente responsável, nas conversações climáticas da ONU, em
dezembro, por bloquear a negociação de políticas voltadas a combater o
aquecimento global. Se países como a Austrália continuarem a agir como peso morto
na transição energética, todas as adaptações que Morrison mencionou – a
totalidade de sua “resposta à mudança climática” – será inconsequente. O
aquecimento permanecerá e grandes extensões do continente, e do resto do
planeta, irão tornar-se inabitáveis. Tragédias como os incêndios já não podem
ser consideradas desastres naturais. Em 2 de janeiro, Morrison assistiu ao
funeral de Geoffrey Keaton, um dos bombeiros mortos em trabalho. Numa
entrevista coletiva que concedeu na sequência, ele afirmou: “Não podemos
controlar os desastres naturais; o que podemos fazer é controlar nossa
resposta.”
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