Antonio Martins | OutrasPalavras | Imagem acima: Elifas Andreato
Brasil, Filipinas, Índia, Itália,
Turquia. Espalharam-se por todo o mundo, nos últimos anos, os governantes que
defendem abertamente limitar as liberdades democráticas, tolerar ou estimular
abusos do Estado contra os direitos civis. Por que tantos, ao mesmo tempo?
Haverá algo comum nesta descamba? Será possível encontrar a raiz em que se
origina o surto de regimes, governantes e políticos de ultradireita?
Um julgamento que começou (22/1), no tribunal militar da base norte-americana de Guantánamo, pode ajudar
a encontrar um dos fios da meada. O psicólogo James Mitchell, que ajudou a
conceber, em 2003, os métodos de tortura empregados pelos Estados Unidos a
pretexto da “guerra ao terror”, poderá tornar-se o primeiro agente
norte-americano a testemunhar sobre estes atos. Ele prestará depoimento
convocado pelos advogados de uma de suas vítimas: Khalid Shaik Mohammed, a quem
afogou 183 vezes, numa prisão secreta mantida pela CIA em algum lugar do mundo
ainda incógnito. A história está contada, em tons muito suavizados, em matéria da
repórter Carol Rosemberg, que o New York Times publica hoje.
A defesa de Mohammed quer anular
a “confissão” dele e de alguns corréus, que afirmaram participar das
articulação de redes da Al-Qaeda. Lembra que depuseram, comprovadamente, após
submetidos, além de afogamento, a violência como privação de sono, manipulação
dietária e “abuso retal”. Mas o programa desenvolvido por Mitchell, diz o New
York Times, ia muito além. Incluía confinamento em solitárias, com os
prisioneiros nus, às vezes comprimidos em caixas que apenas lhes permitiam
permanecer em posição fetal, ou pendurados pelos punhos em situação de dor
intensa. Diante destes fatos, os advogados dos torturados pleiteiam a anulação
de seus depoimentos.
Ao contrário do que seria de
esperar, contudo, os homens que desenvolveram o programa norte-americano de
torturas não estão sob julgamento. Seu testemunho servirá apenas para
que a corte militar de Guantánamo decida sobre sua possível condenação à morte
de Mohammed e seus corréus. Os torturadores continuam livres, protegidos e…
enriquecidos. Entre 2003 e 2007, Mitchell e um colega, John Bruce Jessen,
atuaram em Guantánamo como “consultores” de interrogatório. Mas já em 2005,
eles empreenderam. Experimentados e bem relacionados, constituíram uma empresa,
a quem a CIA encarregou de treinar todos os guardas e 80% dos “interrogadores”
que atuavam em seus centros de detenção clandestinos ao redor do mundo.
Mitchel, torurador impune protegido e premiado por contratos com a CIA |
Esta onda institucionalizada de
ataques às liberdades civis foi disparada com o Patriot
Act, assinado pelo então presidente George Bush poucas semanas após o
11 de Setembro (em 26/10/2001). A ideia de restringir a democracia, em nome da
“segurança” espalhou-se pelo mundo. E ainda perdura. Os processos, informa o New
York Times, são escondidos da sociedade norte-americana e global com
métodos que só podem ser chamados de kafkianos. Não se sabe ainda quanto do
julgamento que começa amanhã será tornado público. A CIA não revelou até hoje
nem o que se passou em sua rede de prisões secretas, nem mesmo onde estão
localizadas. Os procuradores encarregados destes e de outros casos semelhantes
invocam a legislação pós-11 de Setembro para evitar que tanto o público quanto
os próprios advogados da defesa tenham acesso a boa parte das informações
constantes dos autos. E até mesmo os juízes são impedidos, segundo
estas mesmas leis, de tomar conhecimento de algumas das circunstâncias
envolvendo os réus.
Há oposição, nos EUA, a este
procedimento. Dror Ladin, um advogado da União Norte-americana pelas Liberdades
Civis (ACLU) comparou o testemunho que o torturador Mitchell prepara a uma
farsa. “Sobreviventes de tortura”, disse ele, “assistirão aos homens que os
torturaram testemunhar num julgamento que decidirá se os réus serão condenados
à morte – em parte com base no testemunho das mesmas pessoas que os
torturaram”.
Mas se os torturadores não foram
perturbados, se as leis que os protegem continuam em vigor e se o aparato que
sustentou a tortura permanece intacto, fica um pouco mais fácil enxergar o
ambiente de degradação da democracia que dá origem aos Bolsonaro, aos Duterte,
aos Salvini e… aos Trump.
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